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O inacreditável trânsito indiano

Poluição. Foi só isso que vi quando olhei pela janela, logo depois que o piloto do voo 257 da British Airways avisou que sobrevoávamos Nova Delhi, capital da Índia. Adoro esses momentos em que, ainda dentro do avião, você olha pra cidade e tenta imaginar o que te espera. Madrid, Londres, Paris, Roma, Cape Town… não sou exatamente um novato no tal do choque cultural. Mas nada, nem inúmeras leituras e conversas com quem já conhecia o país, me preparou para a Índia.

Sabe aquele clichê que diz que a primeira impressão é a que fica? Não vou mentir pra você, a primeira impressão que tive da Índia foi péssima – mesmo porque a camada grotesca de poluição impediria até os não míopes de ter qualquer impressão que fosse. A nuvem de poluição que paira sobre Nova Délhi atingiu índices alarmantes este ano (2011): em muitos momentos o ar da capital indiana esteve mais poluído que o de Pequim. E vamos concordar que a cidade chinesa não é exatamente famosa pela boa condição atmosférica…

Índices altos de poluição em Agra, na entrada do Taj Mahal. Crédito: Justin Morgan – (CC BY-SA 2.0)

Mas e o trânsito indiano? Como é?

Passado o momento vou-morrer-de-infecção-pulmonar, a segunda impressão foi ótima. Pena que durou pouco. É que o Indira Gandhi humilha todos os aeroportos do Brasil, mas como logo cruzamos os portões do terminal de desembarque isso não significou muita coisa. Foi neste momento que presenciamos o caos extraordinário, a desordem máxima, a confusão que na terra dos rios sagrados e dos bovinos santificados é chamada simplesmente de… trânsito.

Não, nada que você conheça no Brasil se compara ao trânsito indiano. Carros, vacas, motos, bicicletas, caminhões, vacas, ônibus, tuk-tuks, pessoas, lixo e, é claro, mais vacas, tomam conta de todas as ruas, lutando por um espaço, um lugar no grande fluxo de todos os dias de um país com 1 bilhão e 200 milhões de habitantes. Se você é do tipo que, numa sexta-feira, véspera de feriado, chama qualquer engarrafamentozinho de caos, um conselho: venha para Índia. Esse país muda seus parâmetros.

Os motoristas de tuk-tuk (que se você ainda não descobriu é esse triciclo simpático usado como taxi) falam em média quatro palavras em inglês, sendo que três delas você não quer ouvir (five hundred rupees). Ou seja, é uma boa ideia evitar momentos de mímicas e desespero nos seus primeiros minutos no país. Por isso, escolhemos um taxi pré-pago do aeroporto até a rodoviária de Delhi, onde pegaríamos um ônibus para Chandigarh, uns 200 km ao norte da capital indiana.  Foi caro, mas melhor assim. Dentro de um carro com apenas 20 anos de uso e todos os pneus carecas tivemos muito mais conforto para começar a entender o mandamento máximo do trânsito por aqui:

Foto: Meena Kadri, Creative Commons

1) Buzinarás em vão. Buzinarás para xingar o outro. Buzinarás para a vaca que passa na sua frente. Buzinarás quando estiverdes sozinho na estrada e nada mais tiverdes para fazer. Tens o recurso da seta no teu carro, mas buzinarás sempre que quiseres virar à esquerda. E também caso a conversão seja à direita. Enfim, buzinarás. Sempre.

Isso  foi a essência do meu choque cultural. Mais do que o lixo nas ruas, do que as vacas nas portas das casas e a falta de vacas nos supermercados; bem pior do que a falta de água quente nos banheiros e muito, muito mais impactante do que os homens de turbante ou as mulheres de sari. Sim, a forma como eles usam a buzina foi a coisa mais complicada de me acostumar. Por quê?

Bem, motorista brasileiro que sou, encaro uma buzinadinha como um “oi”. Duas equivalem pra mim a um “muda de faixa que quero passar”. Mas aquela com força, em que você mete a mão na buzina até que o mundo acabe em aparelhos de surdez tem apenas um significado: “vai pro Butão, filho dos sete círculos do inferno.” E logo aqui, quando estamos tão perto do Butão, motoristas afundam a mão na buzina a cada 5 segundos simplesmente para dizer um educado “cara, espera que vou passar, tik?”.

Mas a buzina não é a única parte do transito indiano que merece cuidados. A Índia foi uma colônia britânica, o que significa que aqui teoricamente rola a tal da mão inglesa. Ou seja, motoristas dirigem no lado esquerdo da via. Ou não. Mão e contramão, conceitos abstratos demais, são até respeitados em muitos momentos, mas não estranhe se, após ficar 2 minutos na beira da rua tentando entender a tal da mão inglesa, um tuk-tuk passar buzinando enlouquecedoramente na direita da via. This is India.

Mas o trânsito flui, certo? Eles dirigem loucamente, mas no fim, dotados de uma lógica própria, nunca batem, não é? Claro que batem. E muito. Basta ver a quantidade de carros amassados em Nova Delhi. Sabe aquela história de que na Índia mais pessoas morrem pisoteadas por elefantes do que em acidentes de trânsito? Bem, digamos que se isso fosse verdade a população do país, massacrada pelos terríveis elefantes assassinos, seria bem menor.

A Índia lidera o ranking de mortes no trânsito. Segundo a Organização Mundial de Saúde, 125 mil pessoas morrem todos os anos nas estradas da Índia. Muito antes de ser uma questão cultural, o trânsito indiano deveria ser tratado como uma questão de saúde publica. Os números deixam ao menos um grande motivo para admirar o povo indiano: no meio do caos, nada de brigas e confusões. Eles podem até dirigir loucamente, mas ao menos fazem isso com a tranquilidade típica desse povo que é conhecido pelo equilíbrio espiritual.

P.S:  Não entre em pânico. Estamos bem e realmente gostamos da Índia. O primeiro post sobre o país foi pensado com base apenas em nossos primeiros dias aqui, o que torna mais do que normal o susto expresso em minhas palavras. A Índia é muito mais do que poluição e trânsito louco.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Estive na Índia no fim do ano passado, a trabalho, e endosso tudo o que foi dito sobre a suntuosidade do Aeroporto Internacional Indira Gandhi, a poluição de Nova Delhi e o trânsito caótico nas grandes cidades indianas. Só não acho que o trânsito em Niterói (RJ) seja tão diferente assim: se eliminarmos os semáforos, dirigirmos em mão inglesa e colocarmos vacas na pista, fica igualzinho!

  • Gente, vocês estão cada vez mais encontrando o tom dos textos! Estou feliz de ver como eles estão passando da linguagem jornalística, fria, pra um tom pessoal, cheio de sentimento. Não que nos primeiros posts vocês tenham falado de forma distante, mas é que cada texto tem ficado melhor e melhor. Agora, cada vez mais, dá pra ouvir cada um de vocês pronunciando as frases que escrevem e, já no início do texto, dá pra saber quem escreveu qual! Estou adorando esse jogo de adivinhação! :)

    Saudades imensas de vocês e uma pontinha de tristeza de não ter vocês no nosso Explosion de Natal, semana que vem. Beijos!

  • This is India: hahahaha!
    Ainda bem que vocês foram de Londres pra ìndia, já estavam acostumando com a mão iglesa =)

  • Ronan, em Chandigarh o cycle-rickshaw não é tão comum. Nunca entramos em um, pra você ter ideia. Mas aposto que eles morrem de vontade de buzinar também... hehehe

  • Verdade. Acho que o lance da buzina é mais uma questão de "meu veículo é maior, então saiam da frente veículos menores", né? Ainda mais que retrovisor aqui é artigo de luxo. No final, todo mundo buzina pro pobre cycle-rickshaw, que é a base da cadeia alimentar :-)

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Rafael Sette Câmara

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