Só quem ficou longos períodos viajando sabe que a vida na estrada nem sempre é glamorosa. Quem viaja por muito tempo precisa encolher o orçamento para dar conta do roteiro, o que reduz consideravelmente o conforto. Além disso, existem países com problemas bem maiores que os nossos. Bastam algumas semanas na Índia para você sentir falta da infraestrutura do Brasil, por exemplo.
Um bom exemplo está nos deslocamentos por terra. Se num avião há um nível de mínimo de conforto (sim, até mesmo na saudosa Webjet), por terra o bicho pega. Criamos um ranking com as cinco piores viagens de busão que já fizemos na vida. Te garanto que a concorrência pelo topo da tabela foi intensa.
Estávamos em Mumbai, maior cidade da Índia e queríamos ir para a Goa, importante região de praias do país. Com os trens lotados e as passagens de avião custando o equivalente a um mês de nossos salários, resolvemos ir de ônibus. “Existem duas opções. Um é o ônibus tradicional, com cadeiras. O outro tem camas. É mais caro, mas você vai deitado e tem uma ótima noite de sono”, explicou um amigo.
“Que ideia fantástica”, pensei. Dá para dormir de boa no ônibus, como se eu estivesse na cama de casa. Por que não temos isso no Brasil?”
Porque é uma péssima ideia.
Você viaja deitado num compartimento em que é impossível ficar sentado. E, claro, o busão é guiado por um motorista que dirige loucamente.
Em alta velocidade, o ônibus fazia uma curva para a esquerda. Todos os meus objetos caiam para a direita. Eu acordava deseperado e tentava segurar a tralha. Aí o motorista fazia uma curva para a direita. Tudo ia para esquerda – inclusive eu, que por pouco não caia de cara no corredor do busão.
Enquanto eu exercia a empatia e pensava como minha bagagem devia se sentir enjoada no compartimento de carga, tomei três decisões sensatas: 1) amarrar todos os meus objetos na parede do ônibus. 2) Dormir me segurando em algum lugar e sonhando com o mantra “não rolarás para fora da cama”. E 3) NUNCA mais viajar num ônibus desses.
Foi uma viagem curta entre duas cidades do Tâmil Nadu, estado do sul da Índia. Mesmo assim, aquelas três horas se pareceram com um filme. Estávamos em “Joe e as baratas”.
“Olha, a parede do ônibus está cheia de manchas!”, apontou alguém.
As machas se mexeram.
Baratas por todos os lados. Elas estavam nas paredes, andavam pelo chão, subiam por nossas roupas. Se no norte da Índia é possível achar ônibus mais confortáveis que atendem turistas estrangeiros, em alguns lugares do Tâmil Nadu esse mercado praticamente não existe. É preciso viajar com as baratas.
Espremidos, nos sentamos nos bancos estilo caminhão de guerra. Uma barata subia pela perna da Naty. Dei um tapinha para afastar o bicho, assim, meio como quem não quer nada.
“O que foi?”, ela perguntou.
“Nada”.
Uma barata subia pelo ombro da Lu. Afastei o inseto, fingindo que estava tudo ok. Sorria e acene.
“O que foi?”, ela perguntou.
“Nada”.
E foi assim até chegarmos ao destino.
A Índia mudou completamente os meus padrões: eles ficaram muito mais baixos. Moramos lá durante seis meses. O que no começo era chocante, logo virou normal. “Entrar nesse ônibus com todos os pneus carecas? De boa!”. O motorista dirige loucamente? Beleza!”
Só que existem coisas que assustam até mesmos os que alcançaram o nível avançado do estilo de vida mochileiro. Tipo o busão que pegamos para ir de Rishkesh para Nova Delhi.
“Queremos um ônibus de luxo”, dissemos. E pagamos mais por isso.
O que encontramos não era exatamente um ônibus. Era uma sucata, se é que isso não seria uma ofensa aos lixos de família.
“Ele anda?”, perguntavam insistentemente todos os passageiros que tinham caído na pegadinha – desnecessário dizer, todos estrangeiros.
O ônibus estava completamente amassado. Tinha marcas de batida em cada centímetro da lataria, uma coisa inexplicável até mesmo para o caótico trânsito da Índia, onde carro sem amassados é raridade. Além disso, pneus carecas, cadeiras quebradas e janelas que não fechavam direito.
Insistimos para trocarem de busão. Óbvio, não rolou. Nos apegamos com Ganesha e seguimos viagem – um dos estrangeiros teve um ataque de risos quando viu que de fato o ônibus conseguia andar. E andava rápido! Se você leu Harry Potter, vou repetir a analogia: fomos para Nova Delhi no nôitibus andante. Só que no nosso caso as calçadas, vacas e outros veículos não saiam do caminho por mágica. Tudo bem, eram tantos amassados que mais uma batida seria quase um reparo na lataria.
Podia ser pior: E se eu fosse esse cara?
Será que alguma coisa poderia ser mais desafiadora do que a Índia? Claro que sim: a terra das vacas livres tem seus problemas com higiene, mas foi na Tailândia que viajamos na merda. Estávamos em Phuket e precisávamos voltar para Bangkok, capital do país. Não seria fácil: por volta do 13h pegaríamos o ônibus 1, que nos levaria até a rodoviária de Phuket. Lá pegaríamos o ônibus 2, que em algumas horas nos levaria até o busão 3, esse sim responsável por nos levar até Bangkok. A chegada estava prevista para o começo da manhã do dia seguinte.
Exaustos, chegamos no ônibus 3, um confortável veículo de 2 andares que era todo decorado com cortinas do ursinho Pooh. Fora esse aspecto, errr, assustador, o restante parecia ser ótimo: o ônibus tinha ar-condicionado e as janelas não abriam, o que impedia o terrível vento frio da noite de entrar. Além disso, o veículo estava equipado com uma televisão e tinha até mesmo um banheiro. Legal, né?
Não.
Um dos passageiros do busão 3 teve que usar o banheiro para fazer o número 2. Vai ver ele comeu no mesmo lugar que outros quatro caras, que também tiveram que ficar na posição mais democrática da humanidade, afinal, como diria minha vó, na posição fecal todos se igualam. Inigualável mesmo foi o cheiro que veio de lá. Não faço ideia de quantos passageiros usaram o recurso, só sei que o busão do ursinho Pooh tinha cheiro de merda.
Pior: as janelas não abriam, o que não deixava o desejado vento da noite tailandesa entrar. Orei pelo fim do olfato e tentei dormir, mas a televisão, que estava num volume assustador, exigiria também o fim de outros sentidos. Olhei ao redor – ninguém assistia ao filme. Fui até o motorista e, com gestos, pedi que ele abaixasse o volume. Ele aumentou. Ahh, o filme era “Guerra ao Terror”. Ou seja: Dormi com explosões. E bosta.
No meio da noite eles desligaram o ar-condicionado e o busão virou uma sauna. No lugar do cheirinho de sais, aroma de merde, para deixar tudo mais sofisticado. E explosões. Bombas. Tiros, tudo no volume máximo.
“Merda!”, reclamei.
“Mais?, disse o ursinho Pooh.
Chegamos em Bangkok com algumas horas de atraso. Pelo menos os deuses tinham atendido ao meu pedido: eu já não era capaz de sentir cheiro nenhum.
Estávamos na Índia há 15 dias e resolvemos fazer nossa primeira viagem pelo país. Tiramos um fim de semana prolongado e fomos até McLeod Ganj, vila no Himalaia indiano que serve de casa para o Dalai Lama e para o governo em exílio no Tibet.
Os desafios começaram na rodoviária de Chandigarh, cidade onde morávamos. Como comprar as passagens num lugar onde o conceito de fila indiana não existe? Superado esse problema, erramos no tipo de busão. É que existem várias formas de viajar de ônibus pelo país, desde veículos confortáveis e com várias regalias até o chamado local bus.
Imagine um ônibus da década de 40: janelas que não fecham direito, bancos fixos que mais parecem ser de veículos usados na segunda guerra e uma estrutura que aparentemente vai desmontar: leitores, esse é o local bus. Fujam, seus tolos.
Típico local bus (Foto: BazaNews, Wikimedia Commons)
Nós entramos num deles. Para piorar, as estradas que levam para o norte da Índia estão entre as piores do mundo. Buracos para todos os lados e curvas de todos os tipos – você está subindo o Himalaia num veículo que parece que vai desmachar. As paredes do ônibus faziam tanto barulho que era simplesmente impossível dormir. A cada curva, a janela abria e o vento gelado do Himalaia cortava nossas caras.
No meio da noite, me lembro de olhar pela janela e perceber que estávamos no meio do nada. Do lado de fora, um pastor cuidada de alguns animais, brancos como a neve das montanhas da região. Só não me pergunte quais eram os bichos – julgando pelo frio eu diria que eram ursos polares.
McLeod Ganj é um lugar tão especial que deve ser complicado chegar lá de propósito: vai ver os ônibus são horríveis e a estrada é inexistente para que cada visitante prove que tem o valor necessário para conhecer um dos lugares mais fantásticos do mundo. Vai ver é isso, uma jornada que só os bravos aguentam e que dá um baita prêmio no final – vai dizer que não explica todas as dificuldades que passamos na estrada? Ou então foi burrice de principiante mesmo: “local bus? Nem morto”, diria o Dalai Lama. Eita cara sábio.
*Foto destacada: Wikimedia Commons, Crispin Semmens.
*Por Silvia Paladino No dia 12 de outubro de 2023, eu cheguei ao acampamento base…
– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia…
Chegar no povoado Marcelino é uma atração à parte na visita aos Lençóis Maranheses. Depois…
A Domestika é uma comunidade criativa e que oferece diferentes categorias de workshops: do desenho…
“Na Pedra Furada, abaixo de um local onde havia pinturas, escavamos tentando encontrar marcas do…
“Muita gente acha que comer saudável é cortar açúcar, por exemplo, entrar num mundo de…
Ver Comentários
hahahhahahah ótimas histórias Rafa!
Curti demais o post
abraço
Jonathan Padua
Que bom que gostou, Jonathan!
Abraço!
Hahaahah confesso que eu ri (desculpa, rs). A gente se enfia em cada uma, né? Fiz uma viagem da Bolívia para a Argentina pra nunca mais lembrar. Foram 50h de puro terror em uma estrada de terra, gente dormindo no chão e aquele cheiro de comida. Foram tantos buracos e "sacolejos" que dali fui pro hospital! Parabéns pelo post, abraços, Rafa
Que bom que você gostou, Rafa.
Devia contar essa história toda depois, hein?! Meu máximo de tempo num ônibus foram 27 horas. Ainda tenho muito pra aprender! hehehe
Abraço