As cinco piores viagens de ônibus da minha vida

Só quem ficou longos períodos viajando sabe que a vida na estrada nem sempre é glamorosa. Quem viaja por muito tempo precisa encolher o orçamento para dar conta do roteiro, o que reduz consideravelmente o conforto. Além disso, existem países com problemas bem maiores que os nossos. Bastam algumas semanas na Índia para você sentir falta da infraestrutura do Brasil, por exemplo.

Um bom exemplo está nos deslocamentos por terra. Se num avião há um nível de mínimo de conforto (sim, até mesmo na saudosa Webjet), por terra o bicho pega. Criamos um ranking com as cinco piores viagens de busão que já fizemos na vida. Te garanto que a concorrência pelo topo da tabela foi intensa.

5 – O nôitibus andante

Estávamos em Mumbai, maior cidade da Índia e queríamos ir para a Goa, importante região de praias do país. Com os trens lotados e as passagens de avião custando o equivalente a um mês de nossos salários, resolvemos ir de ônibus. “Existem duas opções. Um é o ônibus tradicional, com cadeiras. O outro tem camas. É mais caro, mas você vai deitado e tem uma ótima noite de sono”, explicou um amigo.

“Que ideia fantástica”, pensei. Dá para dormir de boa no ônibus, como se eu estivesse na cama de casa. Por que não temos isso no Brasil?”

Porque é uma péssima ideia.

Você viaja deitado num compartimento em que é impossível ficar sentado. E, claro, o busão é guiado por um motorista que dirige loucamente.

Em alta velocidade, o ônibus fazia uma curva para a esquerda. Todos os meus objetos caiam para a direita. Eu acordava deseperado e tentava segurar a tralha. Aí o motorista fazia uma curva para a direita. Tudo ia para esquerda – inclusive eu, que por pouco não caia de cara no corredor do busão.

Enquanto eu exercia a empatia e pensava como minha bagagem devia se sentir enjoada no compartimento de carga, tomei três decisões sensatas: 1) amarrar todos os meus objetos na parede do ônibus. 2) Dormir me segurando em algum lugar e sonhando com o mantra “não rolarás para fora da cama”. E 3) NUNCA mais viajar num ônibus desses.

4 – A viagem com as baratas

Foi uma viagem curta entre duas cidades do Tâmil Nadu, estado do sul da Índia. Mesmo assim, aquelas três horas se pareceram com um filme. Estávamos em “Joe e as baratas”.

“Olha, a parede do ônibus está cheia de manchas!”, apontou alguém.

As machas se mexeram.

Baratas por todos os lados. Elas estavam nas paredes, andavam pelo chão, subiam por nossas roupas. Se no norte da Índia é possível achar ônibus mais confortáveis que atendem turistas estrangeiros, em alguns lugares do Tâmil Nadu esse mercado praticamente não existe. É preciso viajar com as baratas.

Espremidos, nos sentamos nos bancos estilo caminhão de guerra. Uma barata subia pela perna da Naty. Dei um tapinha para afastar o bicho, assim, meio como quem não quer nada.

“O que foi?”, ela perguntou.

“Nada”.

Uma barata subia pelo ombro da Lu. Afastei o inseto, fingindo que estava tudo ok. Sorria e acene.

“O que foi?”, ela perguntou.

“Nada”.

E foi assim até chegarmos ao destino.

3 – “Essa coisa anda?”

A Índia mudou completamente os meus padrões: eles ficaram muito mais baixos. Moramos lá durante seis meses. O que no começo era chocante, logo virou normal. “Entrar nesse ônibus com todos os pneus carecas? De boa!”. O motorista dirige loucamente? Beleza!”

Só que existem coisas que assustam até mesmos os que alcançaram o nível avançado do estilo de vida mochileiro. Tipo o busão que pegamos para ir de Rishkesh para Nova Delhi.

“Queremos um ônibus de luxo”, dissemos. E pagamos mais por isso.

O que encontramos não era exatamente um ônibus. Era uma sucata, se é que isso não seria uma ofensa aos lixos de família.

“Ele anda?”, perguntavam insistentemente todos os passageiros que tinham caído na pegadinha – desnecessário dizer, todos estrangeiros.

O ônibus estava completamente amassado. Tinha marcas de batida em cada centímetro da lataria, uma coisa inexplicável até mesmo para o caótico trânsito da Índia, onde carro sem amassados é raridade. Além disso, pneus carecas, cadeiras quebradas e janelas que não fechavam direito.

Insistimos para trocarem de busão. Óbvio, não rolou. Nos apegamos com Ganesha e seguimos viagem – um dos estrangeiros teve um ataque de risos quando viu que de fato o ônibus conseguia andar. E andava rápido! Se você leu Harry Potter, vou repetir a analogia: fomos para Nova Delhi no nôitibus andante. Só que no nosso caso as calçadas, vacas e outros veículos não saiam do caminho por mágica. Tudo bem, eram tantos amassados que mais uma batida seria quase um reparo na lataria.

Podia ser pior: E se eu fosse esse cara?

2 – O ônibus de merda da Tailândia

Será que alguma coisa poderia ser mais desafiadora do que a Índia? Claro que sim: a terra das vacas livres tem seus problemas com higiene, mas foi na Tailândia que viajamos na merda. Estávamos em Phuket e precisávamos voltar para Bangkok, capital do país. Não seria fácil: por volta do 13h  pegaríamos o ônibus 1, que nos levaria até a rodoviária de Phuket. Lá pegaríamos o ônibus 2, que em algumas horas nos levaria até o busão 3, esse sim responsável por nos levar até Bangkok. A chegada estava prevista para o começo da manhã do dia seguinte.

Exaustos, chegamos no ônibus 3, um confortável veículo de 2 andares que era todo decorado com cortinas do ursinho Pooh. Fora esse aspecto, errr, assustador, o restante parecia ser ótimo: o ônibus tinha ar-condicionado e as janelas não abriam, o que impedia o terrível vento frio da noite de entrar. Além disso, o veículo estava equipado com uma televisão e tinha até mesmo um banheiro. Legal, né?

Não.

Um dos passageiros do busão 3 teve que usar o banheiro para fazer o número 2. Vai ver ele comeu no mesmo lugar que outros quatro caras, que também tiveram que ficar na posição mais democrática da humanidade, afinal, como diria minha vó, na posição fecal todos se igualam. Inigualável mesmo foi o cheiro que veio de lá. Não faço ideia de quantos passageiros usaram o recurso, só sei que o busão do ursinho Pooh tinha cheiro de merda.

Pior: as janelas não abriam, o que não deixava o desejado vento da noite tailandesa entrar. Orei pelo fim do olfato e tentei dormir, mas a televisão, que estava num volume assustador, exigiria também o fim de outros sentidos. Olhei ao redor – ninguém assistia ao filme. Fui até o motorista e, com gestos, pedi que ele abaixasse o volume. Ele aumentou. Ahh, o filme era “Guerra ao Terror”. Ou seja: Dormi com explosões. E bosta.

No meio da noite eles desligaram o ar-condicionado e o busão virou uma sauna. No lugar do cheirinho de sais, aroma de merde, para deixar tudo mais sofisticado. E explosões. Bombas. Tiros, tudo no volume máximo.

“Merda!”, reclamei.

“Mais?, disse o ursinho Pooh.

Chegamos em Bangkok com algumas horas de atraso. Pelo menos os deuses tinham atendido ao meu pedido: eu já não era capaz de sentir cheiro nenhum.

1 – Rumo a McLeod Ganj: a primeira viagem na Índia

Estávamos na Índia há 15 dias e resolvemos fazer nossa primeira viagem pelo país. Tiramos um fim de semana prolongado e fomos até McLeod Ganj, vila no Himalaia indiano que serve de casa para o Dalai Lama e para o governo em exílio no Tibet.

Os desafios começaram na rodoviária de Chandigarh, cidade onde morávamos. Como comprar as passagens num lugar onde o conceito de fila indiana não existe? Superado esse problema, erramos no tipo de busão. É que existem várias formas de viajar de ônibus pelo país, desde veículos confortáveis e com várias regalias até o chamado local bus.

Imagine um ônibus da década de 40: janelas que não fecham direito, bancos fixos que mais parecem ser de veículos usados na segunda guerra e uma estrutura que aparentemente vai desmontar: leitores, esse é o local bus. Fujam, seus tolos.

Típico local bus (Foto: BazaNews, Wikimedia Commons)

Nós entramos num deles. Para piorar, as estradas que levam para o norte da Índia estão entre as piores do mundo. Buracos para todos os lados e curvas de todos os tipos – você está subindo o Himalaia num veículo que parece que vai desmachar. As paredes do ônibus faziam tanto barulho que era simplesmente impossível dormir. A cada curva, a janela abria e o vento gelado do Himalaia cortava nossas caras.

No meio da noite, me lembro de olhar pela janela e perceber que estávamos no meio do nada. Do lado de fora, um pastor cuidada de alguns animais, brancos como a neve das montanhas da região. Só não me pergunte quais eram os bichos – julgando pelo frio eu diria que eram ursos polares.

McLeod Ganj é um lugar tão especial que deve ser complicado chegar lá de propósito: vai ver os ônibus são horríveis e a estrada é inexistente para que cada visitante prove que tem o valor necessário para conhecer um dos lugares mais fantásticos do mundo. Vai ver é isso, uma jornada que só os bravos aguentam e que dá um baita prêmio no final – vai dizer que não explica todas as dificuldades que passamos na estrada? Ou então foi burrice de principiante mesmo: “local bus? Nem morto”, diria o Dalai Lama. Eita cara sábio.

*Foto destacada: Wikimedia Commons, Crispin Semmens.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Gostaria de saber se existe como se locomover entre India e Tailandia de trem ou onibus?? ou é melhor ir de avião mesmo??

    • Oi, Soraia.

      Seria bastante complicado, por conta das fronteiras com o Myanmar, que vira e mexe estão fechadas por causa de problemas políticos. E com certeza seria muito demorado e talvez até mais caro do que ir de avião.

      Para evitar o Myanmar, a única alternativa é ir para a China, de lá para o Nepal, do Nepal para a Índia. Enfim, pegue um avião, a não ser que seja esse tipo de aventura que você esteja procurando.

      Abraço.

  • Rafael, suas histórias são muito boas! Parabéns !!!
    Confesso que, como vários outros colegas, eu ri muito dessas pitorescas aventuras rodoviárias, inclusive porque já passei por algumas situações semelhantes. A ida ao salar de Uyuni na Bolívia que o diga. Tem um texto no meu blog.
    Por excesso de trabalho, larguei um bocado meu blog, mas já tenho alguns textos prontos que em breve serão publicados.
    Estou traçando uma viagem pela Ásia e teu site ajudou bastante. Minha mochila está quase pronta.
    Grande abraço.

    • Que bom, que gostou (e se divertiu), Rui.

      A ideia é essa mesma! Na hora da raiva, mas depois a gente dá risadas.

      Cuidar de um blog não é fácil mesmo não, sei bem, mas não desista. =p

      Boa viagem!

  • Rafa...parabens cara...eu to aqui me preparando para uma viagem de 40 dias pela india e arredores e o blog ta me ajudando muito...to rindo sozinha pq a maneira que tu escreve é hilária, mas acho que nao hora que eu estiver passando por isso nao vai ser tao engraçado hahahahahha...mas enfim...depois disso, acho q to preparada para o pior! muito obrigada! abraço!

    • Oi, Carol.

      Obrigado! E que legal sua viagem. Te garanto que você vai passar por muitas das coisas que falei no blog. hahahaha

      Quando voltar aparece aqui e conta pra gente suas histórias. =)

      Abraço e boa viagem!

  • Hahahahahahahaha, muito boas as histórias.
    Te confesso que semana passada eu e minha namorada encaramos um busão do naipe das suas peripécias. Foi na venezuela, indo de Puerto Ordaz para Santa Elena de Uairén, na fronteira com o Brasil. Inimaginável pensar que um percurso de 600 km pode ser feito por um verdadeiro pau de arara, caindo aos pedaços. Detalhe, algumas pessoas fizeram boa parte do trajeto em pé, em meio a uma série de objetos. Encaixa perfeitamente nesse seu post. Abraços para você, Lu e Nat.

  • Também ri muito lendo! Como moro em Belém, as distâncias são enormes daqui pra qquer lugar. Já enfrentei 24h pra chegar/voltar a Fortaleza, 36h pra Salvador. Dentro de um onibus a intimidade com estranhos é inevitável! Uma vez voltando de Fortaleza, vinha uma família de retirantes que estavam de mudança para o interior do Pará. Eram pai, mãe e filhos. O mais velho, que devia ter uns 18 anos, no máximo, sentou-se ao lado de uma senhora que voltava das férias. À noite ouço sons estranhos, era a tal senhora "bolinando" o rapaz! hahahahahaha

  • São 2 da matina pessimo horario para ler este post eu ri tanto tanto que a minha mulher levantou para saber porq eu ria tanto rsrs!
    Passei coisa semelhante no Egito alem do cheiro de mer.. todo mundo fumava dentro do onibus e as janelas não abriam!

    • hahaha! Que bom que você gostou, Wellington. Quem já viveu coisas parecidas entende bem como é, né?
      Abraço e obrigado pelo comentário!

  • Acho que já vi esse filme antes hahaha.

    Ótimo post Rafa!!

    Tive um flashback não muito agradável. Também enfrentei esse bus na Índia e um sleeping bus com motorista alucinado no Vietnã.

    Abraço!!!

    • A Ásia sempre rende histórias incríveis, não é, Douglas? Hoje até dou risada com algumas coisas! hehehe

      Abraço!

  • Ri muito! E alto! Olha peguei local bus na India e no Sri lanka. QUE AVENTURA. Mas o da India foi no Kerala, então ele era mais bonitinho do que o da foto, o que não significa que era exatamente decente(mas o do Sri Lanka, só Jesus salvava). Mas enquanto couber uma mosca entra gente, como eles conseguem? Como a gente conseguiu? Não tem onde colocar a mala e eu fiquei com a perna dormente e grudando depois de algumas horas com a ela no colo. Muito antropológico.

    • O Kerala é tão mais tranquilo que parece a Suiça! hahaha

      Hoje eu fico pensando em como a gente teve coragem de entrar nesses ônibus. Pelo menos ficaram boas histórias, né?

      Abraço!

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Rafael Sette Câmara

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