Imagine o seguinte: 30 pessoas fecham uma importante avenida. Em forma de protesto, eles colocam pneus no meio da via e ateiam fogo. Além disso, espalham uma série de blocos de concreto pela avenida.
Esse protesto foi real. Ocorreu na última terça-feira, no Barreiro, região de Belo Horizonte. E não foi por conta da falta d’água. Tampouco contra a violência ou por causa da baixa presença do governo (seja municipal, estadual ou federal) na vida daquela comunidade. Nada disso. O protesto foi contra uma obra pública. Foi contra a instalação de uma ciclovia de pouco mais de um quilômetro. Comerciantes e moradores protestaram porque vagas de estacionamento iriam desaparecer, entre outros argumentos.
Enquanto as ciclovias são apontadas por especialistas como uma das soluções para resolver o problema do trânsito nas grandes cidades de todo o mundo, no Brasil impera o ódio. Faça um teste: digite “Ciclovias Protesto” no Google e veja o que você vai encontrar. “Moradores vão à delegacia contra ciclovia (e fazem boletim de ocorrência)”. “Moradores prometem protesto e luta contra ciclovias”. “Motoboys fecham avenida em protesto contra ciclovias”.
Até aí tudo bem. Por mais que esses protestos estejam muitas vezes na contramão do que defendem engenheiros de trânsito, ainda é o uso do legítimo direito de expressão. Viver em sociedade é assim – todos têm direito a mostrar seus argumentos. Mas não são incomuns os casos em que o ódio contra as ciclovias é transformado em ódio contra o ciclista.
No bairro Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, ciclistas já foram surpreendidos por tachinhas espalhadas na ciclovia, resultando em pneus furados e dor de cabeça. Isso para não falar dos ciclistas que são diariamente atropelados, muitos deles enquanto pedalam por faixas exclusivas para bicicletas. Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, um ciclista morre por semana na cidade.
É óbvio que projetos de ciclovias que sejam defeituosos e com erros de planejamento merecem protestos da população, principalmente dos próprios ciclistas, os maiores prejudicados em situações assim. Mas, como fica evidente pelos exemplos listados acima, não é isso que motiva muitos dos que lutam contra as ciclovias.
Um meio de transporte limpo e que ocupa muito menos espaço que outras opções. Além disso, a bicicleta comprovadamente faz bem à saúde, afinal tira pessoas do sedentarismo e ajuda a diminuir a poluição atmosférica. Junte isso ao preço mais baixo – seja para implantar uma ciclovia ou comprar uma bicicleta – e pedalar parece ser uma boa alternativa para resolver o problema do transporte público nas grandes cidades.
E é mesmo. Só não é o único. O investimento em faixas exclusivas para ônibus e num metrô eficiente também são fundamentais na criação de um sistema de transporte público de qualidade. “Uma boa cidade não é aquela em que até os pobres andam de carro, mas aquela em que até os ricos usam transporte público. Cidades assim não são uma ilusão hippie. Elas já existem”, costuma dizer Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá e responsável por realizar uma intensa mudança na cara da cidade, nos anos 90. Numa entrevista recente para a Folha, ele completou o pensamento: “Quando falamos de bicicletas, não estamos falando que vão substituir os ônibus, os trens nem nada disso. Mas as bicicletas podem chegar a ter um percentual importante nas viagens”.
Para Jan Gehl, arquiteto e professor universitário que se tornou famoso ao melhorar a qualidade de vida na Dinamarca, as ciclovias são uma das respostas para um dos maiores problemas das grandes metrópoles: os engarrafamentos. “Se todas as cidades desenvolverem um sistema de ciclovias e de transporte público eficiente, se reduzirem a ênfase do transporte privado, conseguirão reduzir o trânsito”, diz ele
Ciclistas em Budapeste (Foto: becherpig, Wikimedia Commons)
É evidente que ciclovias não são a saída para todo mundo e nem em todas as ocasiões. Um idoso pode ter dificuldade de pedalar, uma pessoa que precisa fazer compras no supermercado pode não querer ir de bicicleta. Mas nem por isso elas deixam de ser uma saída para muita gente – mesmo que não a sua – em várias situações.
Um trabalhador que mora longe do centro pode optar por percorrer alguns quilômetros até a estação de metrô mais próxima, guardar a bicicleta lá, pegar o metrô para o trabalho e fazer o percurso inverso no fim do expediente. Uma pessoa que precisa ir até a padaria pode fazer isso pedalando, evitando usar o carro para distâncias nem tão grandes assim.
Para especialistas, esse é o grande segredo das ciclovias: a maioria das pessoas não vai usá-las para percorrer grandes distâncias, mas para fazer trajetos mais curtos. O detalhe é que uma grande quantidade de deslocamentos dentro de grandes cidades é para distâncias assim. Segundo Guilherme Wisnik, professor de Arquitetura e Urbanismo da USP, “25% do congestionamento que temos hoje (em São Paulo) se deve a percursos curtos feitos de carro – menos de três quilômetros”.
Vou repetir: 25% dos deslocamentos dentro de nossa maior metrópole são para curtas distâncias. Um em cada quatro carros. O que impede esses motoristas de pedalar? Embora sempre existam os casos em que o carro, mesmo para distâncias curtas, é necessário, uma pesquisa do Ibope mostrou que 63% dos paulistanos que nunca usam bikes fariam isso se houvesse mais segurança. Antes que alguém diga que falta de segurança é algo muito amplo, 27% dos entrevistados indicaram expressamente que essa falta de segurança reflete uma necessidade de ciclovias.
Apesar desses dados, basta ler os comentários de qualquer texto sobre esse assunto para perceber que muitos leitores se apressam a afastar a possibilidade de usarem as ciclofaixas, que são chamadas de “aberração”, “populistas” e “coisa de pseudoprogressistas jovens que não têm compromissos sérios e só sabem vadiar”. Para essas pessoas, gente séria não pedala. É por isso que em Amsterdam não tem gente séria.
São Paulo
“Mas São Paulo não é Amsterdam! Lá é tudo plano, não tem morro, não faz calor, você não chega suado no trabalho”, garantem muitos dos que protestam contra as ciclovias. E eles têm um ponto: São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, enfim, nenhuma das nossas cidades é Amsterdam. Começando pelo clima.
Se o Brasil é o país do verão de 40 graus, partes da Europa são dominadas pelo inverno rigoroso. Não tem sentido usar o clima para argumentar que o uso maior de bicicletas como meio de transporte é inviável no Brasil. Holandeses e dinamarqueses pedalam para ir ao trabalho mesmo com temperaturas muito baixas, chuva e vento contrário. E, como diz o Daniel, autor do blog Ducs Amsterdam, “o vento é a subida da Holanda – é sempre contra”. Só quem nunca viveu em lugares onde o inverno é rigoroso diz que o calor de 40 graus é pior que o frio congelante. E com vento contrário.
Amsterdã
Sobre chegar suado ao trabalho, quem resolve pedalar até a empresa costuma tomar banho por lá, antes de começar o expediente, principalmente quando uma grande distância é percorrida ou o calor é muito intenso. Isso é inviável? Provavelmente não – e atualmente muitas empresas já são pensadas com banheiros adaptados para isso. Mas exige uma mudança de comportamento das pessoas.
Se a falta de morros ajuda a vida de ciclistas de cidades como Amsterdam, lugares nem tão planos também provam que as ciclovias podem fazer parte do transporte urbano. Um bom exemplo é São Francisco, nos Estados Unidos, frequentemente apontada como uma das melhores cidades do planeta para pedalar. E que é famosa por seus morros e colinas. Já Bogotá, na Colômbia, prova que a implantação de ciclovias não é coisa de países ricos, algo distante da realidade de países em desenvolvimento.
O jornalista André Trigueiro, da Rede Globo, chamou atenção para esse ponto numa entrevista para a CBN, que você pode escutar aqui: “Por mais absurdo que o paulistano hoje em dia diga: ‘Imagina se uma cidade desse tamanho, do jeito que está, um dia vai oferecer conforto, segurança para o ciclista? Duvido!’ Bom, é a parte do copo vazia. Todo mundo tem o direito de ser pessimista, de ser cético. Agora, Bogotá, eu não estou falando de Europa, estou falando de Bogotá, aqui pertinho, estou falando da Cidade do México, do lado de cá, nossos irmãos latinos, mexicanos, e a Cidade do México é uma cidade que lembra muito São Paulo, em certos aspectos, tomaram a decisão, assumiram e custearam políticas públicas para abrir espaço para a bicicleta e não se arrependeram”.
E ele completa: “Não é inteligente, para uma cidade saudável, abrir mão da bicicleta, da bicicleta sem estar ligado ao lazer e ao entretenimento”.
Ciclistas em São Franciso ( Foto: Mwparenteaur, Wikimedia Commons)
Mesmo cidades com relevo montanhoso, como Belo Horizonte, têm vales e áreas planas, locais que podem ser transformados em áreas de circulação de ciclistas. E subidas de menor intensidade podem ser encaradas pedalando, como qualquer site especializado no assunto costuma mostrar. E nas subidas muito íngremes, como fazer? Bem, se nem todo mundo vai encarar um morro acima pedalando, tem quem encare morro abaixo. Para voltar, basta fazer outro percurso, optando por ruas menos íngremes.
A questão dos morros é algo que exige do poder público planejamento na hora de implantar ciclovias, mas ainda ficam no ar as questões: por que cidades brasileiras que são planas não fazem uso da bicicleta como meio de transporte? Por que há oposição contra a instalação de ciclovias mesmo em áreas planas?
Assim como no Brasil, a implantação de ciclovias em cidades da Europa e dos Estados Unidos (entre outros lugares) não foi algo que nasceu da noite pro dia, mas ocorreu por conta de muita luta da sociedade e de diversos governos.
Copenhague, Dinamarca (Foto: Leif Jørgensen, Wikimedia Commons)
Ninguém gosta de ser tirado da própria zona de conforto. Quando uma ciclovia é instalada na porta de uma casa, é provável que esse morador se incomode caso não possa mais parar seu carro em frente à residência. Só que não há mudança sem impacto. Ou, melhor dizendo, não há mudança sem mudanças.
É claro que muitas vagas de estacionamento irão desaparecer por conta das ciclovias. É claro que motoristas e pedestres terão que se adaptar, aceitando essa nova realidade. Com o tempo, muitos deles tendem a aderir ao uso, mesmo que ocasional, das bicicletas. Segundo uma pesquisa do Ibope, o uso de bicicletas na capital paulista subiu 50% em 2014.
Além de uma questão de costume, algo que vem com o tempo, o aumento do número de lugares para guardar as bicicletas, o aumento da segurança do ciclista, a conclusão e interligação de todas as ciclovias nos grandes centros urbanos e a criação de campanhas de conscientização pelos direitos do ciclista tendem a fazer esse número aumentar ainda mais.
Belo Horizonte
O que não pode ser feito é transformar o assunto numa questão partidária. Não é. Em São Paulo é o PT, de Fernando Haddad, que acredita na implantação das ciclofaixas. Em Belo Horizonte, o prefeito Márcio Lacerda, do PSB e aliado de Aécio Neves, do PSDB, dedica esforços em seu segundo mandato para a implantação de ciclofaixas, com gastos que podem chegar a 50 milhões de reais – o plano é alcançar 380 km de ciclovias até 2020. E na capital mineira o diretor da BHTRANS, empresa que cuida do transporte e do trânsito em Belo Horizonte, está no cargo dentro da chamada cota do PSDB.
Não importa qual seja o partido ou político por trás das ciclovias, ele enfrenta oposição, sempre com os mesmos argumentos. E não só aqui no Brasil. No exterior também foi assim. Na Alemanha as ciclovias foram implantadas ao longo da década de 1980. Lá também houve protestos contra o fechamento de ruas e perda de vagas de estacionamento, alguns deles violentos e com demonstração de ódio contra ciclistas.
Em Copenhague, na Dinamarca, aconteceu algo parecido. Quando a prefeitura resolveu fechar o trânsito para carros numa das principais ruas da cidade, população e jornais bradaram: “Não somos italianos”. “Usar espaços públicos é contrário à mentalidade escandinava”. Essas manchetes lembravam que, ao contrário da Itália, na Escandinávia faz muito frio. Quem iria querer enfrentar o inverno pedalando?
Copenhague (Foto, Wikimedia Commons)
Ao contrário do que pregavam os céticos, muita gente. Hoje 36% dos deslocamentos dentro da cidade são feitos de bike, número que ajuda Copenhague a ser a capital europeia com menores índices de engarrafamento. Mudou só o continente: quem protesta contra ciclovias no Brasil não se cansa de garantir que não somos holandeses ou dinamarqueses.
E Nova York, até ela, também fechou ruas e tirou espaços dos carros para criar ciclovias. A partir de 2007, NYC criou 320 quilômetros de ciclovias, não sem muita polêmica e reclamação popular. Segundo John Orcutt, ex-diretor de transportes da cidade, a aceitação só veio seis anos depois. “Criticar o governo é o esporte favorito da população de Nova York. A rede de ciclovias foi um desses projetos. Construímos 320 km e surgiram brigas por causa delas. Em 2011, algumas pessoas ameaçaram nos processar por causa das ciclovias”, disse ele (entrevista completa aqui).
Criar ciclovias é uma tendência em muitas metrópoles do mundo, independente do partido ou posição política que está no governo. No entanto, mesmo gente inteligente parece não perceber isso, como a professora de semiótica da PUC, Lucia Santaella, que no ano passado disse que as ciclovias de São Paulo são vermelhas não por conta do vermelho ser a cor usada em quase todo o mundo para ciclofaixas, mas para fazer propaganda do PT.
O pior tipo de ódio é o político, aquele que só existe contra as ações de determinado partido, mesmo que essas ações sejam positivas e necessárias para a sociedade. A pessoa não é contra algo por acreditar nisso ou ter argumentos. É contra pelo simples fato de se opor. O comentário de um leitor num texto sobre ciclovias, na Veja São Paulo, ilustra o problema: “Eu andava de bicicleta antes, mas depois que isso virou modinha de esquerdopata filhinho de papai, parei. Não quero ser confundido com estes idiotas.”
Não concordar ou querer fazer uso das ciclovias é um direito válido. Ser contra por mera oposição política é idiotice.
*Imagem destacada: Hora do Rush em Copenhague, Mikael Colville-Andersen (Wikimedia Commons)
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Post perfeito! O que mais tem é gente criticando, mas felizmente eu vejo cada dia mais bicicletas nas ruas de BH. Ainda são poucas, mas o número está aumentando. Perto da minha casa tem até muitas ciclovias, mas ainda estou esperando os dias que elas serão interligadas. Aí sim vai ficar bom!
Estou em Porto Alegre agora e estou impressionado, Camila.
Sim, as ciclovias não estão cheias, mas já tem muita gente de bike nas ruas, principalmente gente mais nova.