Toda vez que alguma coisa chata, triste ou cansativa acontece comigo numa viagem eu penso: bom, pelo menos daqui alguns meses, quando a raiva e a tristeza passarem, essa será uma boa história para o blog. Eu acho que essa é uma forma, digamos, positiva de ver a vida, afinal, no fundo, todas as nossas histórias podem se tornar um relato da comédia da vida.
Essa história começa num trem noturno, que partiu de Brasov, na Romênia, em direção a Budapeste. Estava tudo muito bem planejado. Eu comprei uma passagem de trem um pouco mais cara, para ir dormindo numa cabine e chegar descansada na Hungria.
De manhã, encontraria minha amiga na estação de trem, iria para a casa dela, onde descansaria mais um pouco, tomaria um banho e seguiria para meu dia de turista. Mas todos nós sabemos, ou pelo menos deveríamos saber, que Murphy não é muito fã de planejamentos milimetricamente perfeitos.
Para começar, a minha preciosa cabine do trem mais parecia uma sauna, com um ar-condicionado pifado e um calor tão absurdo que só me permitia transpirar. Dormir, nem pensar. Quando eu finalmente consegui pegar no sono, isso lá para 4h da manhã, fui acordada completamente desgrenhada pelos funcionários da imigração, que queriam conferir se eu era eu mesma e carimbar meu passaporte antes de seguir viagem. Até aí tudo bem, a vida é assim.
Eu também não contava que haveria uma tempestade daquelas que arranca árvores e gera quedas de energia na região de Budapeste, bem na noite da minha viagem. O trem que estava previsto para chegar às 8h30 em Budapeste Keleti, depois de 13 horas de viagem. Porém, às 8h30 a gente estava parado nos trilhos no meio do nada. Desde que amanheceu, o trem estava andando numa velocidade tão lenta, mas tão lenta, que se eu fosse andando chegaria mais rápido. #exagerada
A questão toda é que eu só cheguei em Budapeste às 10h30. Foi só ao chegar na estação que tive internet e pude falar com minha amiga. Ela, depois de ficar preocupada e me esperar por mais de uma hora, teve que ir para o trabalho. O resultado é que eu estava exausta e suada, mas só poderia ir para casa deixar minha mala e tomar um banho depois das 17h30.
Selfie nesse mesmo dia, mais tarde, ainda sem banho
Sim, seriam longas sete horas. “Mas eu estou em Budapeste”, pensei. Bora respirar fundo, lavar esse rosto e aproveitar a cidade. Eu achei um banheiro para me ajeitar e depois segui para a estação de trem mais próxima da casa da minha amiga, onde decidi deixar a mala num daqueles escaninhos pagos e voltar lá para buscar mais tarde. E foi aí que o verdadeiro drama desta história começou.
Eu não sei vocês, mas tenho um problema sério com primeiras impressões. Se as pessoas de uma cidade são mal educadas e toscas comigo logo de cara, eu tomo birra e tenho dificuldades sérias em superar. Mas estou me adiantando na história. Eu tinha algumas moedas, que basicamente eram a conta exata para pagar o escaninho.
Então, seguindo o passo a passo sugerido pela máquina, coloquei lá meus ricos 600 forints (cerca de 8 reais), apertei o botão e fui girar a chave: NADA. Tentei mais uma vez. Nada. A porta simplesmente não trancava. Eu dei umas batidinhas nela para ver se funcionava e nadica. Eu já devia estar começando a fazer barulho, porque o guardinha da estação se aproximou para tentar me ajudar.
Ele também tentou e tentou, até que concluiu que a máquina tinha mesmo comido meu dinheiro. E sugeriu que eu ligasse para o número que tinha escrito lá para o caso de mal funcionamento. O problema, eu expliquei para ele, é que meu celular não estava funcionando de jeito nenhum e eu estava sem internet também. Eu perguntei se ele poderia, talvez, ligar para mim. Ele disse: “Não, não posso.” Eu pensei em argumentar, mas ponderei que talvez ele não tivesse créditos, sei lá, ele nem me conhecia. Ele sugeriu que eu pedisse ali no “Customer Service”. Eles certamente poderiam fazer a ligação para mim.
Então lá fui eu para a fila, quando tudo o que eu queria era um chuveiro e uma cama. E tudo o que o universo estava me dando era um pepino para resolver em forma de mala. E antes que vocês me perguntem: mas por que você não tentou outro escaninho? Essas moedas húngaras não valem muita coisa mesmo… Bom, eu não tinha mais moedas e não queria esbanjar meu dinheiro numa máquina que talvez não funcionasse.
E a fila demorou séculos. Pacientemente aguardei, até que chegou a minha vez. E com a minha melhor cara de sofrimento eu expliquei a situação para a senhora do guichê e pedi que ela fizesse a ligação para mim. Ela me olhou de cima a baixo e respondeu: “você tem que resolver com o pessoal dos cacifos.”
Mais uma vez eu expliquei toda a situação: eu estava sem moedas e sem telefone. Era só uma ligação. Ela falou: “eu não resolvo nada dos escaninhos”. Eu disse: “mas você trabalha no customer service e essa ligação não vai te custar nada”. E então ela me olhou nos olhos com profundo desdém e disse: “Eu sei, mas não é meu problema!”
A própria Budapeste tem uma representação de uma ave de mal agouro rondando sua cabeça
Quando essa criatura soltou essa frase, minha bile subiu até a garganta. Eu não acho que ninguém tem obrigação de ajudar outros. Mas esse era o trabalho dela e eu não estava pedindo nada que ia custar muito tempo ou esforço. Como diria minha amiga horas depois: “Me desculpe aí te incomodar com trabalho nas suas horas de trabalho”.
Afinal, os escaninhos estavam dentro da estação que ela prestava atendimento ao cliente. Eu olhei nos olhos dela de volta e fiz algo que eu não me lembro de fazer há anos. Disse em alto e bom português: SUA VACA. E virei as costas, já meio chorando, de raiva, de cansada, de inconformada com a falta de prestatividade humana.
E todo esse meu ódio provavelmente teria resvalado em todos os habitantes de Budapeste, não fosse um anjo que mudou o curso dessa história e me fez lembrar que minhas frustrações não são motivo para generalizar a babaquice alheia a centenas de milhares de pessoas. O menino que estava atrás de mim na fila e ouviu todo o imbroglio saiu do seu lugar e cutucou meu ombro, oferecendo uma nota de dinheiro.
Entre minhas lágrimas, eu agradeci, ainda surpresa com o gesto e expliquei que não precisava de dinheiro, que eu só queria fazer uma ligação. O menino então me ofereceu o telefone. Mas é claro que o número que estava lá no cacifo não ia funcionar.
Como as lágrimas não paravam de cair, o jovem me ofereceu um abraço e disse que ia ficar tudo bem. Entre soluços eu agradeci, disse que ele era uma pessoa muito boa e que eu ia tomar um café e me acalmar. Eu me afastei enquanto ele me olhava meio assustado e provavelmente se perguntando de onde essa louca tinha saído.
Depois que eu descarreguei toda a minha frustração e cansaço em lágrimas, fui comprar um pouco de cafeína para clarear a mente. Mais calma, decidi esquecer das moedas perdidas e tentar outro escaninho, um menor e mais barato. Funcionou e eu deixei minha mala lá e saí para caminhar e ver a cidade.
Felizmente, Budapeste é lindíssima. A ponto de me fazer esquecer o estresse, a falta de sono e banho. E toda vez que eu me pegava lembrando da raiva das pessoas, focava no menino que me ajudou. Porque eu realmente quero e prefiro acreditar que há mais pessoas boas do que más nesse mundo. E também que qualquer viagem nunca será perfeita, mas o que valem são as boas histórias e as boas pessoas que conhecemos na jornada.
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Nas situações apropriadas, adoro xingar no meu bom e velho português alguém que não vai entendê-lo! Na verdade, eles entendem o desabafo e devem imaginar que foram xingados, só não sabem o quanto. Heheheheheh Dá um certo alívio nessas horas de aperto.
Sim, o melhor de xingar em português é que a pessoa entende que está sendo xingada, mas não entende o conceito. E você desabafa da forma mais familiar possível! hahaha
Me desculpe Luiza mas não pude conter as gargalhadas da desgraça alheia! hahahahaha
Mas fico feliz em saber que essas coisas não acontecem somente comigo. E se te consola um pouco eu também tentaria recuperar as moedas que eu já havia usado antes de tentar outro escaninho, afinal, cada centavo parece valer muitooo mais durante uma viagem. hehehe
Abraço,
Murilo
hahahahah
Sim, cada moedinha vale ouro na minha cabeça!
Muito bom o relato! Pena mesmo ter de passar por tudo isso, mas é com o sempre digo: depois de um tempo muita coisa vira história e motivos para risada :-)
Estive em Budapeste ano passado (também entrei pela Keleti, via Viena) e a princípio achei o povo um tanto estranho, mas após algumas horas na cidade fui pedir informação (eu queria cortar o cabelo) e todos na rua - sem exceção - foram amáveis e prestativos ao me indicarem um barbeiro pelas imediações. Infelizmente desdém, arrogância e indiferença não são típicos de um só povo... mas o seu caso mesmo com essa atendente do guichê foi revoltante, ainda bem que passado tudo isso você teve Budapeste toda linda para você relaxar :-)
Ótimo blog o de vocês! Abraços!
Daniel
Gostei muito do blog e do relato de viagem. Estudo húngaro e quase dois anos, sou descendentes de húngaros do sul da Hungria (atual Norte da Sérvia) e sempre gosto de ver relatos deste lindo país dos meus ancestrais.
Aproveito para deixar um comentário sobre a "ave de mal agouro".
O corvo é uma homenagem a Matthias Corvinus (Hunyadi Mátyás), que foi Rei da Hungria de 1458 a 1490.
Parabéns pelo blog, pelos comentários, e realmente espero que tenham melhores experiências nas próximas viagens à Hungria.
Continuarei acompanhando 0 360 Meridianos.
Grato,
Cyro Filka
Oi Cyro,
Muito obrigada por comentar e também por explicar tão bem a história por trás da minha piadinha infame!
Abraço
Ciro obrigada pela aula de história, achei fantástico saber esse detalhe. Muito interessante.
Um abraço
florisbela