Caminhávamos pelos becos de Rishikesh, cidade sagrada no norte da Índia conhecida por ser a capital mundial do yoga, quando um homem claramente europeu aproximou-se do nosso grupo: pele clara, olhos azuis, cabelos loiros. Imediatamente, ele começou a fazer um discurso sobre espiritualidade e religião. No final, o arremate: queria vender panfletos sobre o tema para se manter num retiro e seguir com sua viagem. Eu não sei bem o que ele disse, porque me afastei logo que percebi suas intenções.
No entanto, algumas pessoas do meu grupo não foram tão rápidas. Logo o sujeito empurrou um livro/panfleto na mão deles e meio que exigiu alguma grana. Foram embora algumas rúpias nessa brincadeira, todas dadas por quem desejava evitar o constrangimento da negativa. Só que nosso dinheiro era contado e várias vezes não dávamos nem para crianças indianas pobres. Ficamos revoltados porque um europeu viajante qualquer conseguiu nos constranger a ponto de levar o dinheiro.
Eu me lembrei dessa história quando, semana passada, li uma matéria no The Telegraph que me causou o mesmo sentimento de raiva. Falava sobre europeus que vão para países pobres do sudeste asiático e pedem dinheiro na rua para financiar suas viagens. Descobri que existe um nome para essa tendência: Begpackers. Para quem não fala inglês Beg = mendigar e packers tem a ver com backpacking, que é o clássico mochilão. Pois é, o mochileiro-pedinte é uma realidade a ponto de ser notícia no jornal.
A tendência, apesar de antiga, começou a ser divulgada pelo @IamSoloTraveller no Twitter, que compartilhou fotos de turistas em Bangkok segurando placas como “Por favor, me dê dinheiro para ajudar a minha viagem”. Outros tentavam vender fotos ou tocar instrumentos para arrecadar uma grana. Foi a partir daí que a notícia se espalhou e vários veículos na última semana cobriram o assunto.
Em primeiro lugar, o que significa de fato ser mendigo, morador de rua, sem abrigo? Com a palavra, a especialista: “Os sem-abrigo ou população de rua são vistos, especialmente nas sociedades ocidentais, de diferentes modos, mas tem destaque o olhar sobre a falta de ocupação: inúteis, vagabundos, mendigos, pobres; indigentes; à adição: bêbados, drogados; e à doença mental e ao descumprimento da lei: loucos, criminosos, desintegrados, etc.” explica Valéria Barancelli, psicóloga cuja dissertação de mestrado em Portugal abordou trabalho social com população de rua. Ainda segundo ela, esse tipo de designação é baseada no senso comum: “na mesma medida em que denunciam olhares que culpabilizam e individualizam o problema como uma escolha de vida, denotam a necessidade de compreender a complexidade deste fenômeno como um produto da exclusão social.”
Esse olhar da sociedade sobre essa população e a situação de exclusão social e miséria na qual vivem são graves problemas para grande parte dos países (sejam em desenvolvimento ou não). Por isso, é no mínimo insensível que viajantes se aproveitem de uma situação de privilégio para ocupar esse espaço de mendicância, mas obviamente sem sofrer o mesmo tipo de preconceito.
É muito comum recebermos emails ou comentários de gente que sonha em viajar, mas não tem muito dinheiro e quer fazer uma aventura com a menor quantidade de grana possível. Isso não é errado. Começa a virar um erro quando um viajante acha que tem o mesmo direito de implorar por dinheiro do que uma pessoa numa condição social de extrema exclusão.
O que leva alguém a achar que é legítimo pedir dinheiro na rua para sustentar uma viagem quando existem pessoas nesses mesmos países que precisam pedir dinheiro para sobreviver?
“Parece com algo tipo ‘turismo na favela’. Claro, a proposta é totalmente diferente, mas se formos analisar o efeito do colonialismo nessa mentalidade, na relação hierárquica num sentido econômico, dá pra dizer que é a mesma falta de consciência”, conclui Barancelli. “Só o fato da pessoa ter para onde voltar e como pagar um hostel, já os diferencia”. Além disso, de uma forma generalizada, são uma categoria privilegiada: “Têm a segurança de terem para onde voltar e potencial para realizarem uma viagem sem ser nesses moldes. Possivelmente com escolaridade superior e com boa capacidade de inserção no mercado de trabalho, o que os diferencia muito dos sem abrigo”.
“Acredito que sempre que há uma troca, há uma relação mais justa entre quem oferece arte e quem se sensibiliza.” Explica a psicóloga. “Há quem dê mesmo não se sentindo contemplado com a arte oferecida. Eu particularmente gosto de retribuir quando gosto da apresentação”. É muito complicado definir o que é arte. Ainda mais porque o que comove algumas pessoas não interessa outras.
Na minha opinião não tem nada de errado em querer viajar e viver da própria arte na estrada, desde que o artista em questão tenha a sensibilidade para respeitar a cultura ou as questões sociais do local em que estiver. E não tentar extorquir pessoas e constrangê-las a te dar dinheiro, tal como o sujeito do início do post.
Quem levantou essa bola foi uma articulista de outro jornal inglês, dizendo que situações extremas podem acontecer e que, às vezes, pedir dinheiro na rua é o último recurso. De fato, mas depois de tudo o que explicamos aqui no post, fica claro que há uma divisão muito clara entre pedir ajuda por uma emergência e pedir ajuda para viajar mais.
Além disso, a forma como se pede ajuda também faz toda a diferença, assim como há uma enorme diferença em quem passa fome e mora na rua e quem está viajando por conta (e diversão) própria e se meteu numa roubada.
*Crédito imagens post: Shutterstock
*Por Silvia Paladino No dia 12 de outubro de 2023, eu cheguei ao acampamento base…
– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia…
Chegar no povoado Marcelino é uma atração à parte na visita aos Lençóis Maranheses. Depois…
A Domestika é uma comunidade criativa e que oferece diferentes categorias de workshops: do desenho…
“Na Pedra Furada, abaixo de um local onde havia pinturas, escavamos tentando encontrar marcas do…
“Muita gente acha que comer saudável é cortar açúcar, por exemplo, entrar num mundo de…
Ver Comentários
Muito bom o artigo! É realmente revoltante europeus e pessoas com boas condições financeiras pedindo dinheiro para poder viajar mais...
Eu vejo esses bagpackers quando chega o verão aqui na praia. Quando sobem no ônibus para ficar cantando e passando o chapéu.A maioria vem da Argentina, Uruguai.
Seu texto tb serve para aqueles que sob o título de "trote" pedem dinheiro em semáforo por terem ingressado na faculdade. Concordo com o que vc disse, seja no trote ou no begpacker não deixam de ser privilegiados ocupando um espaço de pessoas que realmente necessitam.
Tirando os folgados e os mimados, não vejo problemas em quem escolhe esse estilo de viagem. Tem uma galera que sai de casa sem grana, mas se vira com base nas trocas. Ganham carona em troca de companhia. Comem e dormem em troca de algum bico. Arrumam algumas esmolas em troca de um sentimento de bem estar. É uma viagem baseada em relações pessoais. Não vejo mal nisso.
Oi Renato,
Tb não vejo mal nisso. Não é a crítica feita no post. A crítica é feita para quem se posiciona pedindo dinheiro na rua para financiar uma viagem sendo que tem gente que não tem casa, comida e é muito mal visto por fazer o mesmo por necessidade e não diversão.