Viagens de antes da era dos smartphones

Eu só queria um hotel bom, barato e bem localizado, mas acabei passando dois dias numa zona de prostituição, tentando dormir com o barulho que vinha dos quartos ao lado – o hotel era um motel, e ainda por cima um ruim, mas só descobri isso ao chegar lá. Isso foi em 2009, na minha primeira passagem por São Paulo. E a diária nem foi tão baratinha assim não, viu. O erro de escolha na hospedagem, hoje incompreensível, ocorreu porque o mundo era outro.

Nada de smartphones. Nada de wifi aberta e disponível. Meu primeiro notebook só chegaria meses depois. Não é que esses equipamentos ainda não existissem, claro, mas eles eram caros demais para a maioria das pessoas e ainda não tinham se popularizado, o que significa que, olha o horror, era preciso depender de ligações de celular e contar somente com guias e mapas impressos durante a viagem.

Parece óbvio, mas a gente se acomoda com a realidade e se esquece de como eram as coisas na década passada. A existência de um mundo menos conectado, lá no Jurássico, tinha implicações na quantidade de conteúdo disponível online. Em 2007, o G1, portal de notícias da Globo, era criado como um projeto experimental, enquanto os blogs de viagem podiam ser contados nos dedos. Com isso, achar informações de viagem na internet, mesmo de cidades grandes, como São Paulo, era bem mais complicado. Reservar hotéis, passagens aéreas e outros serviços por conta própria e online, embora já fosse possível, não era tão comum.

A constatação de que viajar ficou bem mais fácil – pelo menos no modus operandi e se ignorarmos os efeitos da crise – veio durante as semanas que passei no México, em junho. Há três anos, na Argentina, pegar um táxi do aeroporto para o hotel era um desafio. Na Cidade do México, este ano, bastou abrir o mesmo app de motoristas de sempre e pedir o carro como se eu estivesse no Brasil, sem necessidade de já ter moeda local. Corrida finalizada e pronto: o app do banco já me informava quanto tinha sido cobrado em meu cartão – em reais e somando com o IOF.

Em 2009, enquanto o Michael Jackson se preparava para voltar aos palcos e o Obama assumia a presidência dos Estados Unidos, encerrando a era Bush, turistas de passagem pela Europa enchiam os locutórios, então a forma mais barata de ligar para casa. Ainda faltavam alguns anos para que o WhatsApp quebrasse as casas de telefonia, fazendo com que locutórios seguissem o caminho dos orelhões e das videolocadoras. (Tá vendo esse terreno ali, onde está o WhatsApp? Era tudo mato).

Dois anos depois, quando eu estive na Europa pela primeira vez, o Skype e o Viber já facilitavam as coisas, mas o negócio era tão inicial que eu me lembro de frequentar locutórios para conseguir falar com certas pessoas – não adiantava nada eu ter um smartphone e um app de ligações gratuitas se boa parte da minha família não fazia ideia do que eram essas coisas.

Fora que internet wi-fi, mesmo na Europa, era coisa que só existia nos hotéis e em um ou outro restaurante mais moderninho. Hoje, muita gente já usa um chip com 4G mesmo no exterior, o que acaba com os mapas de papel, permite que você chame um uber/cabify/táxi de qualquer lugar e escolha em qual restaurante vai comer pelas resenhas online, tudo ao mesmo tempo.

Os perrengues certamente diminuíram, mas eu entendo quem disser que certos charmes da viagem também. O mapa de papel, item essencial das primeiras viagens internacionais do 360, faz falta, como a Luíza contou nesse texto aqui. E no campo da fotografia há também uma contradição: nunca tiramos tantas fotos, nunca imprimimos tão poucas. Apenas o Instagram tem 500 milhões de usuários, gente que publica 95 milhões de fotos por dia. Já no Facebook são postadas outras 300 milhões de fotografias. Por dia. Mas os porta-retratos e os álbuns de fotografias se tornaram bem menos comuns.

Em tempo: minha primeira câmera digital, uma Sony Cyber Shot, veio em 2008, mais ou menos a mesma época em que os celulares começaram a fotografar. E a sua?)

Veja também: Saudade em forma de fotografia

Quem viaja há mais tempo vai dizer que meu saudosismo é coisa de criança. Complicado era viajar na época dos travel checks, dirão eles. E dos filmes de 12 poses, da lira, do franco, do marco ou da dracma – e todas as outras coisas da antiguidade, digo, da era a.E. (antes do Euro).

Eles provavelmente têm razão.  Minha geração, que começou a viajar nos últimos 10 anos, ainda vai testemunhar muitas mudanças. Que o futuro nos surpreenda. Mas, se eu pudesse pedir alguma coisa, sugeriria a volta do Concorde e a popularização das máquinas do tempo. Falta pouco, mas esse dia chegará.

*Imagens: Shutterstock

Inscreva-se na nossa newsletter

Avalie este post
Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Sem dúvida, algumas ferramentas são muito convenientes. Mas sinceramente, com a tecnologia veio uma grande homogeneização de culturas e hábitos. Não há muito mais coisas que sejam chamadas de típicas. A inocência e alegria de lidar com um turista que muitas vezes era uma novidade para os nativos da região se transformou em estresse para a população local. Com a visitação em massa criada pelo excesso de informação, diversos lugares que eram considerados paraísos hoje são desagradáveis. Está quase impossível achar um lugar tranquilo e sem impacto turístico. Hoje, quanto mais difícil o acesso, melhor. Ler blogs de viagem é para saber quais atrações evitar. Com tantas fotos e vídeos na internet, visitar um local é como ir ao cinema já tendo assistido ao final do filme. Eu gostaria de ver os blogs começarem a escrever sobre a real situação dos lugares visitados? Que a população de Veneza não quer mais turistas, que nas Maldivas existe uma ilha de lixo deixado pelos turistas, que na Europa está impossível achar um lugar para morar porque os imóveis estão virando acomodação no Airbnb, que Machu Picchu está igual a um formigueiro, que em Arraial do Cabo acabaram com as dunas da Praia do Pontal de tanto fazerem Sandboard, que na Tailândia tem mais mergulhador que peixe... Um grande problema é que cada nova geração de viajantes começa a experimentar o mundo com base na sua experiência pessoal: se você cresce em um mundo poluído e sem diversidade, esse será o seu padrão. Se você não conheceu algo melhor, como perceber a degradação causada?
    Eu adoro viajar, apenas não gosto da direção que a tecnologia está dando a atividade e ao planeta.

  • E no ritmo que vai, fico imaginando como serão as coisas daqui mais alguns anos.
    Fiz meu primeiro mochilão internacional para o Panamá e Costa Rica em 2010. São apenas 7 anos, mas pra ir comprei guias de papel, o celular apenas fazia chamadas e mandava SMS e nem usei em momento algum no exterior. A câmera era uma Sony Cybeshot também. Os hostels e hotéis onde fiquei foram todos escolhidos na hora, já no local. E para meu principal destino, as ilhas de San Blás, havia apenas um único texto em português na internet, no mochileiros.com, que por sinal era praticamente o único local com informações sobre mochilão, além de alguns grupos do Orkut... Comunicação com a família foi através de cabines telefônicas para chamadas internacionais...

    • Nossa, verdade, Luciano! Em 2011, quando fui para a Ásia, o único lugar que tinha informações em Português era no Mochileiros.com! E lembro que mesmo pra Europa era uma das fontes mais completas.

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • Meu primeiro passaporte tinha um imenso carimbo: "Não é válido para Cuba". Qdo comecei a viajar sem pai nem mãe, tinha que pegar a fila do orelhão e ligar a cobrar pea casa, avisando que estava viva. Minha primeira viagem à Europa foi fotografada em uma Kodak vagabundinha e minha primeira câmera digital (comprada em um free shop, em 2002), era tão safadamente ruim que eu ressuscitei a Kodak ?.
    Viagens abalógigas tinham lá seu charme.
    Mas, já na época do e-mail, eu adorava ir ao cybercafé ver as msgs que meu sobrinho, com seus 4 aninhos, me mandava (certamente, a pedido de minha mãe): "Ti acyn tia, onde vocés tá?".

  • A máquina do tempo vá lá, vamos tentar viabilizar ela mas o Concorde já é bem mais contraditório não? Avião gastador e barulhento, que claro tinha lá seu glamour mas olhando o lado ruim dele dá para desistir fácil-fácil talvez unir o presente de um A380 na classe executiva com serviço de bordo dos anos 70/80 fosse uma boa volta não? Não vivi este tempo mas pelos vídeos era um luxo só comida e mimos (claro sem o cigarro).
    Um vídeo sobre o Concorde de uma canal muito interessante: https://www.youtube.com/watch?v=nUtwkJaEPoE

    • Nesse sentido você tem razão, William. Só queria uma forma de chegar mais rápido nos lugares. Por mim rola de trocar o avião por qualquer outro transporte fácil, fácil. Até rede de flu ou teletransporte estão valendo. haha

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • É, Rafael, a democratização da internet mudou tudo. Há uns tempos, publiquei um texto sobre ser blogger de viagens nos dias de hoje, em que escrevi, a propósito dessa voracidade de partilhar tudo de agora e de como era viajar antigamente: "... o foco da viagem era o ato de viajar propriamente dito, não o de relatar. " Tenho pensado muito nisso. A internet, as redes sociais, os smartphones mudaram tudo. Sã muito úteis, é certo, mas às vezes é too much...
    Grande abraço,
    Filipe

Compartilhar
Publicado por
Rafael Sette Câmara

Posts Recentes

O que eu vi do alto do campo base do Everest

*Por Silvia Paladino No dia 12 de outubro de 2023, eu cheguei ao acampamento base…

1 ano atrás

Como é a relação dos iranianos com o álcool

– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia…

1 ano atrás

Lençóis Maranhenses e o artesanato com fibra de Buriti

Chegar no povoado Marcelino é uma atração à parte na visita aos Lençóis Maranheses. Depois…

3 anos atrás

Como são os Cursos Domestika? Descubra como funciona a plataforma

A Domestika é uma comunidade criativa e que oferece diferentes categorias de workshops: do desenho…

3 anos atrás

Niède Guidon, a arqueóloga que mudou a Serra da Capivara

“Na Pedra Furada, abaixo de um local onde havia pinturas, escavamos tentando encontrar marcas do…

4 anos atrás

Comida saudável pra todos: comer bem e descolonizar o paladar

“Muita gente acha que comer saudável é cortar açúcar, por exemplo, entrar num mundo de…

4 anos atrás