Há lugares nesse mundo que são sem-par, e a Turquia é um deles. Tem um pé na Europa e um pé no Oriente Médio. Um flerte progressista daqui, um abraço conservadorista dali. Ora o pêndulo se inclina para uma democracia estável e cheirosa, ora aponta pro autoritarismo mais empoeirado. Para um viajante LGBTQI+, um mistério: como devo me comportar? Acredito nas juras de amor para a União Europeia, e estou liberado para ser pintosa? Ou me lembro de episódios homofóbicos, como a repressão policial contra uma parada do orgulho, e faço o machinho?
Parada LGBTQI+ em Istambul, 2016. Crédito: Shutterstock
Lembro que já pousei em Istambul com meu ex-namorado pisando em ovos, a começar pelo guichê da imigração. Estão juntos? Qual é a relação? Devemos mentir? E se nos descobrem? Será que viram as últimas bitocas inocentes que trocamos no avião? “Somos amigos”, respondemos oficialmente, e o guarda carimbou satisfeito nossos passaportes sob seu bigode grosso, como se tivéssemos acertado a resposta de um milhão.
Perdidos feito dois bons turistas pré-smartphone, rodamos pelo bairro de Sultanahmet em busca do nosso hotel. No caminho, cruzamos com homens de braços entrelaçados, até de mãos dadas. Seria a descoberta da cura hétero? “Ó lá, talvez aqui seja mais tranquilo do que pensamos”, disse. “Eles não parecem gays, deve ser cultural”, fui alertado. O check-in no hotel logo tiraria a prova.
Depois das burocracias mais longas do que a inscrição para receber a carteirinha gay, subimos, exaustos, ao nosso quarto. Duas camas de solteiro. Murchamos feito dois bonecos de posto em fim de expediente. Buscamos a reserva, um pedaço de papel amarfanhado, onde constava, sem o menor espaço para dúvidas: cama de casal. Discutimos se deveríamos descer e brigar, nos colocando em riscos desconhecidos, e decidimos que valia a tentativa. Poxa vida, era uma semana de hospedagem (que incluía o réveillon) e achamos que tínhamos o direito de dormir juntos como fazíamos todos os dias em casa. Não estávamos sequer preocupados com o sexo, porque a prática não exige leito, sabemos todos.
Voltamos tensos à recepção e perguntamos da forma mais evasiva. “Há um problema com nosso quarto, como ele consta na reserva?” A mulher revirou seus arquivos, olhou, e cravou: “está correto”. “Tem certeza?”, argumentamos, “dá uma olhadinha no que fala a respeito da cama”. Ela murmurou reafirmando sua posição, com cara de poucos amigos. Nós nos entreolhamos e achamos melhor deixar para lá. Nos dias seguintes faríamos o mesmo ritual: jogávamos o criado-mudo que as separava para o canto e juntávamos as duas camas, com um pequeno vão entre elas. A governança arrumava o quarto e lá estavam separadas novamente pelo bendito móvel. Sete vezes.
Quando o 360meridianos me convidou para escrever uma coluna sobre viagem LGBTQI+, eu fiquei refletindo se havia necessidade de ela existir. Me parece que os destinos estão preparados para receber esse nicho de turistas. Mais do que isso, estão mesmo é almejando o tal do “pink money”, que já movimenta US$ 3 trilhões ao ano no mundo. Ouso dizer que, em cidades como Berlim ou Amsterdã, divisão de gênero e orientação sexual já é assunto do passado. Consultei amigos viajantes gays e a resposta foi unânime: quando caímos na estrada, geralmente pesquisamos como qualquer pessoa. Talvez umas festas, onde rola o nosso agito, perigos, mas no fundo somos mais comunzinhos do que se imagina. Quase enfadonhos.
Casal na Parada LGBTQI+, em Istambul, 2014. Crédito: Shutterstock
Redescobri a urgência em escrever esta coluna ao lembrar da emblemática história do quarto em Istambul. E percebi quantos assuntos ainda pedem para ser discutidos dentro do tema. Escrevo a primeira edição torcendo para que um dia a coluna se torne obsoleta e deixe de existir. Mas, enquanto houver um criado-mudo entre duas camas, estarei por aqui.
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Eu tenho tanto pra lhe falar, mas...., vou deixar pra outra hora porque agora seu pai disse tudo! Te amamos eternamente!!!
Parabéns pela narrativa, Victor! Que venha boas dicas de viagem.
Meu filho... é muito bom saber que vc está sempre pronto para viajar fisicamente ou viajar pelas memórias que não são poucas. Realmente é como a Fenix que se renova sempre e sempre com capacidade de se renovar e criar. Parabéns pela nova jornada e parabéns sempre por todas empreitadas desafiadoras (ou não), mas sempre caracterizadas pela dedicação, responsabilidade e capacidade. Felicito então essa "mais uma" dentre tantas investidas em benefício de esclarecer e "ajudar" o próximo com um potencial invejável que naturalmente, com maestria nos brinda com seus escritos fáceis,muito envolventes e elucidativos. De seu pai que o ama de verdade e incondicionalmente.
O que dizer né, pai? Que privilégio poder ser apoiado assim pela família, e rodeado de tanto amor. Que sirva de exemplo pro mundo, amar também é resistir. Obrigado por tudo <3
Dizer o que diante dessa sua nova empreitada que já começa contando uma história dessas. 2017 e, como diz você um criado mudo no meio. Vi, sei do seu potencial, dom, criatividade e capacidade, então, felicidades.
Bora tirar todos os criados-mudos de todos os meios. Um beijão e volte sempre! =)