O melhor cartão-postal de um lugar é o sotaque das pessoas

Governos e empresas até tentam criar lugares turísticos marcantes, mas o melhor cartão de visitas, não importa a cidade, está no sotaque das pessoas. Não foi o Guaíba, a Usina do Gasômetro ou o Mercado Público: a primeira coisa que me fez gostar de Porto Alegre foi o jeito de falar do taxista que me levou do aeroporto para a Cidade Baixa. Eu, que visitava Poa pela primeira vez, nem bem tinha saído do avião, mas já estava ali, ouvindo bahs, tris e conversando sobre o futebol gaúcho. Isso é que é choque cultural.

Essa viagem foi em 2015, quando eu não fazia ideia que bergamota é mexerica, que frio de renguear cusco é um inverno que faz até cachorro tremer, que tchê é interjeição exclamativa com significado bem diferente do bah e que chegar na padaria e pedir um cacetinho equivale a querer um pão francês.

Quase três anos e várias visitas depois, me habituei com o sotaque do Rio Grande do Sul e até incorporei uma coisa ou outra ao meu jeito de falar, garantem amigos e familiares, o que foi uma consequência óbvia de namorar uma gaúcha. Mas isso não quer dizer que eu estava preparado para visitar uma cachoeira com um grupo de gaúchos.

Porto Alegre

Até que chegou a viagem para Pirenópolis, cidade histórica de Goiás que fica pertinho de Brasília e onde estive em fevereiro. Sabe o que cinco gaúchos falam quando avistam uma cachoeira lindona? Bahhh! Assim mesmo, um bah alongado, daqueles que deixam claro a beleza do lugar. Mais do que o chimarrão, mais do que a comida, é o jeito de falar que entrega o gaúcho – e que faz a gente não querer ir embora do sul, jamais.

Com o mineiro não é diferente. Seja no uso das palavras – como o trem, que em Minas pode ser qualquer coisa, mas raramente é uma locomotiva – seja no ato de encurtá-las, que é a característica linguística por excelência em terras mineiras. Tipo o ônibus, que vira ons, ou o cafezinho, que vira cafezin. Eu achava que isso era preguiça linguística e pronto, até ver uma reportagem do Jornal Hoje em que pesquisadores garantem que o mineiro encurta o final da palavra porque alonga o meio dela – aí o único jeito é compensar.

Minas também é um dos estados brasileiros onde as pessoas trocam as vogais, com o “e” sendo pronunciado como “i” e o “u” entrando no lugar do “o”. Quando for beber em BH, procure por um bom buteco, assim mesmo, com u. E prepare-se para tentar entender o sutaque falado pelas terras de cá. E, se for ao norte do estado, anote um novo verbo, o tarrar. “Eu tarra fazendo não sei quê”, assim mesmo, com os dois erres subsistindo o “v”, uma frase comum no norte de Minas e no nordeste brasileiro.

Ouro Preto, MG

Em São Paulo, além de conviver com aquele jeito de falar típico do paulistano nato, cheio de meus e manos, tive contato pela primeira vez com uma infinidade de dialetos do português brasileiro – não é à toa que São Paulo é a nossa Nova York, o centro financeiro para onde milhões de imigrantes vão. Toda vez que estou ali, não tem dia que eu fique sem ouvir a mistura de sotaques que tornam o PT-BR único. Dos mais variados sotaques nordestinos (quem disse que o melhor do nordeste são as praias?) ao carioca com seu “s” chiado e a tendência de acrescentar vogais – o 12 que vira douze ou o Vasco que vira Vaisco.

Ao viajar para o norte, encontramos outro povo que gosta de fazer o “s” chiar. Segundo os pesquisadores do Atlas Linguístico do Brasil, somente os cariocas chiam mais que os paraenses – e nos dois casos a explicação está na imigração portuguesa. Se no Rio de Janeiro foi a mudança da corte que afetou a forma de falar, no Pará o que pegou foi a imigração açoriana, que ali se misturou com a cultura indígena e com a negra. O resultado é um dialeto próprio e que exige um verdadeiro dicionário de Papa Xibé.

Belém do Pará

No Pará, quem levou o farelo se deu mal, pitiú é cheiro de peixe, tipo aquele que existe perto do Ver-o-peso. Se alguém disser “te acoca”, pode saber, é para você se abaixar, enquanto quem está na pedra está na seca, se é que você me entende. Como em Minas, no Pará arreda é chega pro lado, se afasta, e égua é tudo, quase vírgula – o que também ocorre com o uai mineiro, que só não é vírgula porque é ponto de interrogação.

Desça de volta para o sul e passe por Santa Catarina, onde fica a terceira capital que mais chia o “s”, outra herança açoriana. Dali, suba para o Mato Grosso, onde há um jeito de falar que, confesso, eu nem sabia que existia: em Cuiabá, chuva é tchuva, cachorro é catchoro e fechar se pronuncia fetchar. De novo, é na imigração que encontramos os porquês – essa forma de falar já existia no norte de Portugal.

E faltou o tu. No Atlas Linguístico do Brasil, Porto Alegre é apontada como a cidade onde tutear, para importar uma expressão espanhola, é mais comum – em Poa, de cada 10 pessoas, seis tratam o outro como tu e não você. Mas Floripa e São Luís também são campeãs no tu, que no Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, tem menos a ver com proximidade de tratamento e mais a ver com aspectos regionais. Ele desaparece em outros estados, mas volta um pouco acima.

O Brasil é muitos e uma das provas disso está nas várias formas que o português toma por aqui. Tem horas, sei bem, que não dá para entender nada de primeira. Aí o jeito é abrir o ouvido, pedir para explicarem a fala e sentir o gostinho de uma viagem ao exterior, mas sem sair de casa. Na dúvida, peça por um tradutor.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Ótimo texto! Viajo muito e sempre observo essas coisas. É realmente mais uma coisinha especial que a gente traz na bagagem de volta.

  • Sou de Minas e durante o curso técnico de Laticinista, fiz estágio de um mês em Florianópolis. Nas primeiras duas semanas eu não conseguia me comunicar com os funcionários da fábrica pois nosso sotaque era bastante diferente.
    Eis que logo nos primeiros dias, me perguntaram "tu já fostes em Jurerê"? Mineiros não estão acostumados com o "Tu", com o "fostes" e muito menos com "Jurerê", que depois de muito tempo fiquei sabendo que era um local famoso. O rapaz teve que repetir, que me lembro, umas 4 vezes até que eu entendesse. Por fim, as pessoas já me olhavam estranho por que eu nunca entendia e achavam aquilo estranho.
    Óbvio que depois me acostumei e parei de perguntar. Mas foi uma experiência incrível! Realmente, o melhor cartão-postal de um lugar é o sotaque das pessoas.

    Amo o blog e achei essa matéria incrível!

    (Quando "falô" dos "sutaques" fiquei imaginando "direitin" a cena. )

    • hahaha. Sei como é, Roger. Minha namorada é do Rio Grande do Sul e já tivemos alguns problemas de comunicação, então imagino chegando num estado novo, pra trabalhar. hehehe

      Abraço e obrigado pelo comentário.

  • sério, esse blog é só amor <3 meu favorito de longe! amo todas as matérias que vcs publicam, parabéns!! E obrigada por dividir com a gente tanto texto, curiosidades e culturas! um abração daqui do sul do brasil!

  • O melhor é comer umas bergas lagartiando no sol. No finde a gente passa no super e compra uns refris e umas cevas pra fazer um churras, que a gente ta de banda. Gurias e guris estão convidados, vai te chimas também.
    Legal o texto, abraços de uma porto alegrense na Alemanha

  • Cara, bah, uai, tchê, mano, véi, oxi... cada curva do Brasil tem uma vírgula/exclamação diferente. O legal é quando vc convive com pessoas do país inteiro e começa a falar tudo junto.
    - Oxi, véi, que coisa estranha.
    - Uai, isso é riqueza, cara.

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Rafael Sette Câmara

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