No início de junho, desembarquei em uma pequena estação de trem no meio do nada na região dos Alpes Italianos. Conforme o combinado, o dono da fazenda veio me buscar. No caminho, identifiquei as primeiras plantações de avelãs enquanto observava a paisagem montanhosa e cercada no horizonte pelos Alpes. Começava ali a experiência mais transformadora da minha vida. Seriam três semanas de intercâmbio nas montanhas da região de Piemonte. Depois, mais dez dias em outra fazenda na costa da Ligúria, próxima ao mar mediterrâneo.
Chegamos em tempo para o almoço. A minha expectativa era grande. Sem falar nada da língua, me esforçava para entender os outros, todos italianos. Serviram uma massa que era tão fresca e saborosa, quanto misteriosa em seus ingredientes. Tinha tomates, azeitonas pretas, alho e … funcho – depois de algumas garfadas, identifiquei o sabor das folhas da erva que no Brasil usamos para o preparar um chá digestivo.
Alcachofras
Depois da refeição, fiz um pequeno tour pela fazenda. Na dispensa, encontrei as respostas para tamanho frescor. Conservas caseiras de vegetais, de sardinha ou de anchovas, geleias e vidros com polpa de tomates – a passata italiana – tudo produzido com frutas e legumes das estações passadas. Os peixes haviam sido pescados no início da primavera no mar mediterrâneo. Fora da casa, na caverna – uma adega e salumeria à moda antiga – eram conservados os vinhos, salames e azeite, além de dezenas de potes com geleias variadas e polpa de tomate. A fazenda era quase autossustentável, o que não produziam ali, trocavam com vizinhos, amigos ou compravam de cooperativas de produtores agrícolas.
A proximidade do verão deixava os dias mais quentes e, por isso, quase todas as tardes eram de descanso. Nesse primeiro dia, aproveitei o intervalo para me acomodar. A casa era antiga, tive que limpar o quarto e espantar alguns insetos. Confesso que nesse momento cheguei a pensar: “O que eu tô fazendo aqui?!”. Sem ter como voltar para trás, segui no fim da tarde com os outros intercambistas para o estábulo e para minha primeira função: a ordenha da tarde das ovelhas. O trabalho é completamente manual e exige concentração, prática, técnica e bastante força nas mãos. Em seguida, partimos para o pasto com os animais correndo e gritando bée. A próxima uma hora e meia foi um longo exercício de observação e calma. No caminho encontramos morangos silvestres, cerejas e amarena, uma cereja bem mais ácida e de coloração vermelho vibrante.
Groselhas e morangos
Nas próximas semanas, fui ao pasto dia sim, dia não, revezando com os outros. Fui aprendendo que os animais confiam em nós e que nosso estado de espírito influencia na agitação do rebanho. Por isso, transmitir segurança é a principal função do pastor. Era um tempo de pausa e descobertas. Nas idas ao pasto, aprendi a identificar alho e cebola selvagens, vi lindas orquídeas, evitei vespas e moscas e colhi muitas frutinhas silvestres. Era também o momento que eu aproveitava para apreciar a paisagem dos Alpes com o Monte Viso apontando no fim do horizonte.
Os dias de trabalho que se seguiram foram muito intensos, mas de um aprendizado único. Conheci o calendário biodinâmico que considera as fases da lua e outros conhecimentos ancestrais para a organização da lavoura e da colheita. Colhi frutas, como a groselha, pela primeira vez. E passei três dias cuidando da produção da geleia. Aprendi a preparar alcachofras e a cozinhar segundo a tradição italiana. Vivenciei uma tradição que remonta à Idade Média: o preparo dos queijos e seu processo de maturação em uma caverna.
Estar completamente inserida numa paisagem tão diversa daquela a qual estou acostumada me tirou do automático e me proporcionou um cotidiano de constante descoberta de sabores e saberes tradicionais. O primeiro grande aprendizado foi respeitar o tempo justo para a realização de cada tarefa. No dia a dia de trabalho, aos poucos, substitui a ansiedade de cumprir metas pelo exercício da observação. Assim aprendi a priorizar o que era fundamental. As ovelhas e a produção do queijo eram as principais atividades diárias e o que gerava renda para a fazenda. Nada era mais importante, ainda que parecesse urgente.
Dependendo do clima, o planejamento mudava por completo. E, se isso acontecesse, os imprevistos eram resolvidos sem maiores dramas. O trabalho era coletivo e compartilhado e o resultado disso percebia-se com facilidade. A tarefa de uma pessoa refletia diretamente no que tínhamos para comer, no conforto da casa, na tranquilidade dos animais, nas hortaliças e legumes que prosperavam, ou não, depois da semeadura.
Escolhi a Itália por afinidade e para realizar um sonho. Além disso, o país preenchia os pré-requisitos para colocar no meu currículo a experiência que eu buscava. Uma tradição culinária fortíssima e o berço do movimento Slow Food são duas características que resumem a relação da Itália com a comida. Desde a valorização de pequenos produtores à implementação efetiva de técnicas para tornar a agricultura mais sustentável, a Itália é uma nação precursora quando o assunto é a promoção da comida de verdade. Mas, até chegar lá e mergulhar no universo de referências que constitui a história culinária do país, eu não tinha dimensão do que isso realmente significava.
Fazendo conserva de alcaparras
O almoço começava na horta. Colher as hortaliças, legumes e frutas do dia era o primeiro passo. A escolha é menos pautada pelo desejo do comensal do que pela disponibilidade da natureza. Já na cozinha e com os ingredientes colhidos é que o cozinheiro reunia seus conhecimentos de paladar, memória afetiva e criatividade para arquitetar os pratos que serviria.
As refeições duravam em média uma hora e meia, fora o preparo e organização da cozinha, que também eram compartilhados. Fazíamos todas as refeições juntos e sentados à mesa. Durante esses momentos a partilha não era só da comida, mas também de aprendizado. Lembro-me de conversas sobre as microrregiões da Itália e como isso influencia nas tradições e na culinária de cada região, quando descobri sobre os Tedescos, um povo que habita o nordeste da Itália, na fronteira com a Áustria, e que fala uma língua muito similar ao alemão. Em outra refeição, contei sobre a diversidade da flora brasileira e tentei descrever o sabor exato da goiaba, que intrigava meus companheiros que conheciam a fruta apenas de nome.
Cozinha mediterrânea direto da horta
A comida era o assunto principal, indo da degustação dos queijos que saiam direto da queijaria da fazenda para a “prova final” na sala de jantar até a importância de ter consciência sobre o impacto ambiental de nossas escolhas relacionadas à alimentação. Carne era artigo raro e que, quando consumido, não produzia lixo, tudo era utilizado – ossos viravam caldo, o músculo incorporava a dieta dos cães e a gordura virava sabão. Conversávamos sobre alimentação e como nossas escolhas podem mudar o mundo. Mas o mais gostoso era apreciar a refeição preparada com o protocolo do cozinheiro do dia e com os mais frescos ingredientes.
Acredito que o motivo que mais nos instiga a viajar é a curiosidade pela cultura do outro. A vontade de vivenciar tradições diversas, experimentar sabores novos, falar outra língua e ver paisagens deslumbrantes passa sempre pela curiosidade que marca o que nos difere do outro.
Uma viagem imersiva revela a surpresa de descobrir na cultura do outro o que nos une, nos torna familiar e que, sendo parte dessa outra tradição, podemos – e desejamos – acolher. Vivendo nas fazendas eu não só trabalhei. Por algumas semanas, fui parte daquelas famílias.
Sachés perfumados de lavanda natural: presentes produzidos para os vizinhos
Fui à festa de inauguração da pousada de uma fazenda vizinha. Lá, como nas festas da minha família no interior, cada um levou um prato salgado ou doce para compartilhar. Em outro momento, tive a chance participar de um campeonato de queijos da Província de Cuneo e me recordo ainda o quanto me emocionei e vibrei quando recebemos a medalha de prata. Numa terça-feira qualquer, assisti a uma palestra sobre economia e política para discutir a situação de emprego dos jovens e o futuro da Itália na chamada “Zona do Euro”. Saindo de lá, tomamos uma taça de vinho no bar. Cada um desses momentos me fez me sentir parte dos lugares e das famílias, porque cada um deles revela o quanto somos parecidos, o quanto o mais importante da vida é compartilhar histórias, conversar, conviver.
A escolha do meu intercâmbio foi guiada por essa vontade de imersão cultural. Conheci o wwoof (World-Wide Opportunities in Organic Farms) de uma forma despretensiosa. Uma amiga me contou que iria viajar por seis meses pela Ásia para estudar permacultura. Achei uma aventura incrível, mas em seguida pensei que não era para mim. Morar em fazendas sem saber como dormir, insetos, roupas muito sujas, trabalho braçal com lenha… mesmo listando as desvantagens a ideia romantizada não saiu da minha cabeça.
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Fui pesquisar sobre o programa e me encantei com os relatos que encontrei a internet. O wwoof é um programa que hoje já existe em mais de 100 países. A ideia e concepção da organização é de uma inglesa, que em 1971 fundou a organização para criar uma ponte entre habitantes de grandes cidades e pequenos produtores rurais que, em troca de trabalho voluntário no campo, oferecessem moradia e alimentação para os hóspedes. A ideia se desenvolveu e as trocas que wwoof proporciona são cada vez mais procuradas por pessoas que desejam vivenciar uma relação mais forte com a natureza ou até uma mudança definitiva para a vida campesina.
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Xanda, que experiência mais linda! <3 E deliciosa, né!
O texto foi quase uma refeição, daquelas que a gente termina satisfeito, mas querendo provar mais e mais! A cada garfada deu pra sentir os sabores, o brilho nos olhos e seu carinho por esta vivência tão rica! <3 Deu vontade de estar por perto pra provar [e aprender a preparar algumas d]estas iguarias! (:
Viver e trabalhar em uma fazenda também povoa meu imaginário cheio de desejo por uma vida mais simples e tranquila. Vou acompanhando os textos por aqui e depois vou querer saber mais detalhes pessoalmente!
Amei o texto! Que experiência linda, dá vontade de ir experimentar também! Além disso, o texto tem um lirismo lindo, adorei!
Beijos!
Adorei o texto e você despertou em mim uma vontade imensa de fazer o mesmo, me identifico muito com atividades do campo :)
Adorei! Deu muita vontade de experimentar essa vivência!
Muito legal a experiência, só fiquei com uma dúvida: se o intercâmbio foi no Piemonte e na Ligúria, como foi possível ver o Monte Vesúvio, já que ele fica perto de Nápoles?
Olá Dudu,
Você tem toda razão. Esse pico é o Monte Viso,o pico mais alto dos Apeninos. Escrevi Vesúvio porque confundo o nome dos dois. Ainda bem que você reparou. Já vamos alterar no texto. ;) obrigada!