O outro lado do mundo e o encontro entre oriente e ocidente

A primeira vez que eu visitei o outro lado do mundo foi no Aeroporto de Guarulhos. Isso aconteceu no final de 2010, quando peguei meu primeiro voo internacional. Foi só passar pelas máquinas de raio-x para encontrar outro planeta – a porta da sala de embarque é quase uma entrada para o Beco Diagonal.

Do outro lado encontrei não mais o Brasil, mas um ponto de encontro entre o oriente e o ocidente. Na madrugada de Guarulhos, enquanto a capital paulista dorme, convivem juntos sikhs, muçulmanos e hindus, todos com suas roupas típicas. Viajantes europeus dividem cadeiras com asiáticos; norte-americanos buscam o mesmo portão de embarque que brasileiros e africanos. E todos caminham juntos para fila, ao primeiro chamado da companhia aérea.

Não sou o maior fã de aeroportos. Por mais modernos e grandiosos que sejam, eles nunca deixam de ser lugares de despedidas, o local de dar adeus para familiares, amigos, para casa ou mesmo para as férias – entre portões de embarque e aviões, nos despedimos de quem fomos durante a viagem e nos preparamos para voltar ao mundo real. Mas se tem um aspecto que faz de aeroportos lugares especiais é que eles são portais para outros mundos, fendas no espaço onde os mais diversos personagens contam histórias parecidas.

Todo aeroporto que se preze é um Mos Eisley Cantina, aquele bar que aparece em Uma Nova Esperança, o mais antigo filme de Star Wars. A última parada de Han Solo, Luke Skywalker e Chewbacca antes de deixarem Tatooine. Frequentado por pessoas diferentonas (de determinado ponto de vista), por uma banda esquisita e gente que presta pouca atenção ao que ocorre ao redor, o Mos Eisley é o ponto de encontro da maior cidade espaço-portuária do planeta. Uma representação perfeita para a sala de embarque de qualquer aeroporto mundo afora. Exceto, claro, pelas tretas, err, violentas entre seus frequentadores. Para continuar nas referências nerds, também vale comparar com o Pônei Saltitante, hospedaria-bar que recebe os mais diversos viajantes da Terra-Média.

Às vezes me pergunto se existem lugares, sem contar aeroportos, que reproduzam esse jeitão de ponto de encontro de várias culturas. E, claro, as grandes metrópoles mundiais são as primeiras opções: um pouco de cada canto do mundo coexiste em Londres, Nova York, Paris, Barcelona, Tóquio ou Shangai. Mas, ainda assim não é a mesma coisa. A capital de um país tem sempre as marcas evidentes dele. E mesmo a mais cosmopolita das metrópoles do ocidente pode ter de tudo um pouco, mas suas diversas culturas existem em endereços diferentes: Chinatown, Little India (e por aí vai).

Em cidades menores e muito turísticas encontrei outro umbigo do mundo, embora um ainda muito ocidental ou, no máximo, latino. É o Mochilistão, um país sem fronteiras ou território definido, lugar que pode aparecer na sua frente em qualquer parte do mundo – e que infelizmente ainda não foi reconhecido pela ONU. São cidades onde mochileiros de várias partes do globo se espremem, uma comunidade de viajantes que habita lugares no minimo inesperados – e aí vale uma vila asiática, uma praia no caribe ou um bairro de uma grande metrópole sul-americana. Embora alguns viajantes acabem ficando raízes por ali, a maioria está de passagem e vai embora em alguns dias.

Hong Kong

Mas quando o assunto é uma grande metrópole e moradores de fato, não apenas turistas, acho que nenhuma outra exerce tão bem esse papel de ponto de encontro entre oriente e ocidente como Hong Kong. Pra mim isso ficou claro durante uma passagem recente por essa Região Administrativa Especial da China; mas que foi conquistada e colonizada pelo Reino Unido até 1997. Hong Kong cresceu como um lugar diferente, nem totalmente terra da Rainha, nem exatamente terra chinesa.

E, por mais que a maioria esmagadora da população seja de origem chinesa e a bandeira do gigante asiático tremule por ali há mais de 20 anos, HK permanece bem diferente do restante da China: tem internet e imprensas livres, é um dos maiores centros bancários do mundo e tem mais consulados estrangeiros que Nova York.

Resta saber o que vai mudar quando a cidade passar totalmente para o controle chinês, em 2047, como prevê o acordo de “Um país, dois sistemas” – o governo chinês já deu mostras do que pretende fazer, ao interferir no processo eleitoral de Hong Kong, que não é direto. Por enquanto, podem até existir outros lugares assim, mas HK segue como um dos grandes pontos de encontro do mundo. Mais cosmopolita que uma sala de embarque de aeroporto.

Inscreva-se na nossa newsletter

Avalie este post
Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Seu texto me remeteu imediatamente a Londres em 2006, quando fiz meu primeiro contato com o outro lado do mundo. Eu estava na capital inglesa, mas me sentia em uma dimensão paralela onde todas as línguas são faladas e todas as culturas se misturam. Foi minha primeira visita a um país diferente do que conhecia (já morava em Portugal) e fiquei ainda mais encantada com essa ideia de conhecer outras dimensões no nosso planeta.

  • Um amigo meu nascido e morador até hoje de Hong Kong definiu em poucas palavras o que eles são, fazendo uma analogia: "Nós somos pra China o que o país Basco é para a Espanha. Não nos consideramos chineses".
    E como de lá fui passar 20 dias na China, pude ver o quão diferentes culturalmente eles são.
    Hong Kong realmente me encantou, mesmo ficando no Chungking Mansions hehehe

    • hahaha. Em 2012 fiquei num hostel no Mirador Mansions, ao lado e no mesmo esquema trash. Dessa vez peguei um hotel de verdade, na Canton Road, e olha, fez diferença, viu. HK é das cidades que mais gosto - minha favorita na Ásia.

      Abraço, Cauê.

Compartilhar
Publicado por
Rafael Sette Câmara

Posts Recentes

O que eu vi do alto do campo base do Everest

*Por Silvia Paladino No dia 12 de outubro de 2023, eu cheguei ao acampamento base…

1 ano atrás

Como é a relação dos iranianos com o álcool

– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia…

1 ano atrás

Lençóis Maranhenses e o artesanato com fibra de Buriti

Chegar no povoado Marcelino é uma atração à parte na visita aos Lençóis Maranheses. Depois…

3 anos atrás

Como são os Cursos Domestika? Descubra como funciona a plataforma

A Domestika é uma comunidade criativa e que oferece diferentes categorias de workshops: do desenho…

3 anos atrás

Niède Guidon, a arqueóloga que mudou a Serra da Capivara

“Na Pedra Furada, abaixo de um local onde havia pinturas, escavamos tentando encontrar marcas do…

4 anos atrás

Comida saudável pra todos: comer bem e descolonizar o paladar

“Muita gente acha que comer saudável é cortar açúcar, por exemplo, entrar num mundo de…

4 anos atrás