Um dia, saindo de um cineminha de bairro delicioso em Berlim, o Laden Kino, vi um motorista buzinar para um ciclista, que sacou a piroca e começou a mijar no capô do carro. Enquanto ainda absorvia a cena, um cara de cabelo verde até a cintura me perguntou quanto custava o ingresso do cinema, e quando eu disse que era só 4 euros ele saiu gritando “fuck IMAX”. Enquanto olhava ele partir, passou um chinês de sobrancelha raspada e vestido de lantejoulas vermelhas andando de costas. Parece fanfic, mas é real. Virou uma história clássica da minha vida e um resumo do que é a doida Berlim, onde morei por pouco mais de um ano.
Já falei nesta coluna sobre como é ser gay na Tailândia e na Rússia, mas nenhum lugar do mundo se compara a Berlim, nem de longe. Quem está lá sabe que vive em uma bolha de liberdade até dentro da Europa, que por sua vez já é uma bolha no mundo. Demora mais tempo para se acostumar com o festival de consoantes da complicada língua do que com a autonomia absoluta que a capital garante a seus moradores. Nada impressiona um berlinense, e nada é da sua conta. A pergunta que governa a cidade é: e daí?
Velhinhas no metrô não erguem uma sobrancelha sequer para os looks mais excêntricos das passarelas do dia a dia, nem para casais homoafetivos de mãos dadas, beijos calorosos, travestis, transexuais, crossdressers, ninguém. Algumas delas, inclusive, são remanescentes da cena punk e ostentam penteados coloridos e roupas de couro.
O movimento da década de 1980 que ganhou força na cidade dividida entre a União Soviética e os Aliados é um dos responsáveis por essa liberdade. Jovens que se opunham a toda essa bagunça política do pós-guerra tinham atitude o bastante para mandar as regras para aquele lugar e seguir seu próprio estilo. Berlim se acostumou.
Foto: Por canadastock, shutterstock.com
Adaptou-se, também, à chamada Freikorperkultur, “cultura do corpo livre”, em alemão. Praticantes do naturismo na Alemanha Oriental foram incentivados a disseminar a nudez como forma de contato com a natureza e manutenção da saúde. Meio como resgate de valores da Grécia Antiga do culto ao corpo belo, só que fundamentado em teorias filosóficas mais modernas. A onda se espalhou pelo mundo com a sigla FKK, e nunca mais o corpo e a nudez seriam tabus na sociedade alemã. Seja em parques no verão, seja em banhos públicos, é comum ver o pessoal de todas as idades peladão.
Isso me encorajava a ser personas que eu nunca cogitei em São Paulo. Usei maquiagem algumas vezes para sair na balada, ia ao supermercado de casaco de pele, encurtei as roupas. Dane-se, ninguém liga, é maravilhoso.
Apesar de existir um clássico reduto gay, que é o bairro de Schöneberg, apinhado de baladas e bandeiras das cores LGBTQI+, o restante da cidade não define mais uma linha da heterossexualidade que pode ser cruzada. No bar Möbel Olfe, em Kreuzberg, tem quintas lotadas de gays. E de héteros também. Mais importante balada berlinense, a Berghain nunca se definiu lá ou cá. Dessa forma, Berlim ensina que liberdade, na prática, é coexistência e respeito – e vice versa.
*Imagem destacada: Por Patino, shutterstock.com
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É o primeiro texto que leio seu e fiquei muito empolgada não somente pelo relato, mas por saber que é formado nas duas áreas que mais amo e que estou prestes a me formar. É bom saber que temos referencial. Obrigada!
que texto gostoso.
com relação à liberdade individual, Berlim acaba de se tornar minha utopia de mundo
Oi, Daiane! Brigado pelo elogio ao texto, deixa esse autor aqui muito lisonjeado. E Berlim devia ser mais que utopia, meta do mundo inteiro <3 beijo, volte sempre