Há quatro anos, eu prometi que iria à Rússia. Não deu. Aproveitei, no entanto, que assistiria à Copa do Mundo de 2018 em uma capital mundial, um lugar de encontro de povos e culturas, para ter um pouco da experiência internacional que a Copa no Brasil me proporcionou. Percorri as ruas de Berlim sempre que podia para ver os jogos com as torcidas das equipes em campo. Aqui estão algumas das observações que fiz para esse projeto.
O pequeno café localizado em uma esquina incógnita do bairro Neukönll, um reduto de imigrantes árabes em Berlim, quase não dava sinais de que aquele era um dia especial. Eu esperei do lado de fora até que faltassem poucos minutos para a primeira estreia da seleção egípcia em uma Copa do Mundo desde 1990 e cheguei a me perguntar se eu não seria a única a ir ver o jogo ali.
Grandes vasos de planta ocultavam a visão do interior e apenas umas poucas pessoas entraram no lugar durante o tempo em que estive esperando. Mas dentro do Amira Restaurant o cenário era outro: uma dezena de famílias se reuniam em torno do telão, todos de vermelho e preto, bandeiras nacionais por toda parte. Até os véus das mulheres combinavam com as cores do país.
“Somos um ponto de encontro para a comunidade egípcia em Berlim”, explicou Mohamed, filho do dono do restaurante. Ele me contou que o lugar existe desde 1993 e que são seus pais que preparam todos os pratos. Pedi uma recomendação do que comer. “Kuschari, é uma comida de rua popular no Egito. Um arroz com vegetais, lentilhas e cebola frita”.
Eu, que sempre estou do lado do meu país América Latina, não consegui deixar de me contagiar pela torcida local. O jogo era difícil, eles sabiam, e aplaudiam o goleiro a cada defesa. Sobre as mesas, em vez da tradicional cervejinha que nos acompanha fielmente a cada partida, chás e falafel. O Egito resistiu bravamente, mas o Uruguai acabou marcando no finalzinho. Saí com o coração dançando ao som da música árabe que começou a tocar assim que o apito soou.
Kuschari, comida de rua típica do Egito e um dos principais pratos do Amira Restaurant
Uma viagem de última hora me fez ver a estreia da nossa seleção em plena rua Rambuttri, na região da Kao San Road, área mais movimentada da noite de Bangkok. Escolhemos uma pequena kombi adaptada com uma TV que vendia bebida para as mesas na calçada. Atrás da gente, duas mulheres de Recife cantavam o hino nacional com muito empenho e se ofenderam quando critiquei o Neymar. Do nosso lado, uma dupla suíça dividia o espaço e zicava nosso time, o que resultou em provocações engraçadas de ambas as partes.
O resto das mesas era ocupado por pessoas das mais diversas nacionalidades, uma amostra grátis do que é o centro de Bangkok. Um argentino passou e ficou um pouco, mas logo foi embora. O jogo não empolgou, mas saímos dali as três da manhã decididos a encontrar um local de massagem na Kao San. Por sorte, todos estavam fechados. A cidade que nunca dorme nos mandou pra cama na hora certa.
Quando cheguei ali, ainda no jogo do Japão, me perguntei se havia ido ao lugar certo. A maior parte das pessoas não parecia colombiana. Mas era só que, seguindo o horário latino, ninguém resolveu chegar cedo. Pedi uma Bandeja Paisa com suco de lulo, uma fruta andina parecida com o tomate. O menu era especial, preparado para aquela data.
Bandeja Paisa, prato típico da Colômbia preparado especialmente para os jogos da Copa do Mundo
Aos poucos, a sala começa a se encher e até o dono do bar tira uma folga para acompanhar a partida. Comparei a experiência com o jogo do Egito e refleti o quão extraordinária é essa coisa de cultura. Cada erro dos jogadores colombianos se transformava em piada e a sala inteira se irrompia em risos. No intervalo, uma menina com a camiseta da Polônia entrou no bar. Ganhou um shot de aguardente de um cliente com a camisa da Colômbia. Para que serve a Copa do Mundo se não é pra gente confraternizar com o inimigo, não é mesmo?
Há dias em que nada sai como a gente quer. Começou cedo e acabou comigo parada sozinha a poucos minutos da partida, do lado oposto da cidade ao restaurante iraniano no qual eu deveria ver o jogo. A bola já rolava quando eu decidi tentar a sorte no Safran, o único lugar persa que eu encontrei em Kreuzberg, só para me dar conta de que eles nem mesmo tinham televisão. Acabei me sentando em uma pequeno centro comercial em Kotbusser Tor para comer um Kebab e ver partes dos dois jogos do dia. Por coincidência, ambos tinham seleções de países que tradicionalmente ocupam aquela área.
No passado, Kreuzberg era um reduto turco, mas com o tempo passou a abrigar também imigrantes e refugiados de vários países de cultura islâmica. E, embora o bairro passe por uma mudança acelerada de perfil, em Kotbusser Tor ainda há bares e restaurantes que servem como um ponto de encontro para essas pessoas. Foi em um deles que eu me sentei naquele dia para comer um kebab. Ao caminhar pelas ruas buscando uma TV que estivesse ligada, percebi que a maior parte das pessoas dentro dos cada vez mais comuns restaurantes badalados ali era jovem, hipster e europeia, um sinal da rápida gentrificação pela qual a vizinhança passa. Mesmo assim, os gritos de alegria quando Cristiano Ronaldo perdeu o pênalti ecoaram em cada esquina.
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No fim do jogo, um senhor com a bandeira marroquina amarrada no pescoço se aproxima, indignado. “A FIFA só mostra o que ela quer. O Marrocos foi roubado e era o Irã que deveria ir para a segunda fase, não a Espanha! Nos roubaram para favorecer a Europa! Isso é tudo culpa do capitalismo” e, ainda gritando, foi embora.
O Tante Käthe é um dos bares mais populares para se assistir futebol em Berlim. E foi ali que eu cheguei, no segundo tempo do jogo que eliminaria a Alemanha, para encontrar a torcida local já aflita. Em um país em que a bandeira nacional pode ser facilmente relacionada a ideologias extremistas, o esporte é uma das poucas formas em que grande parte da população permite expressar seu patriotismo. Me lembrei do dia em que vi um homem com uma bandeira da Alemanha tatuada no peito e de como as reações foram unânimes ao contar essa história: “É um nazi”.
Chris, um dos alemães que conheci no jogo, me contou que vinha de uma cidade muito pequena, em que não havia estrangeiros, e que a experiência de ver a Copa lá era completamente diferente: “As pessoas têm medo do que é de fora”. Era justamente a multiculturalidade que o atraia a Berlim. Embora torcesse por seu país, Chris não acreditava no futuro da equipe alemã no Mundial. “Eles não jogam. Por isso que eu gosto do Brasil, vocês vão atrás do gol. Esse jogo é muito chato”.
Quando deixávamos o bar e as expressões de incredulidade do resto dos torcedores para trás, Chris contou que no dia seguinte todas essas bandeiras alemãs que víamos pela rua teriam desaparecido. “Mas tudo bem, Copa do Mundo é só uma desculpa para beber mais cerveja”, disse.
Saímos do Tante Käthe em busca de um lugar mais barato para assistir a segunda partida do dia. Em Berlim, isso significa beber em um späti, os late shops, que são como pequenas mercearias que colocam algumas mesas na calçada, o mais próximo que você vai encontrar de um boteco na Alemanha. Nosso grupo de brasileiros era maioria, mas os poucos alemães presentes torciam para a Sérvia. Quando questionei por que, eles disseram que era porque ela era o underdog da partida. Perguntei como podia uma seleção europeia ser considerada a underdog. “Eles estiveram em uma guerra civil há 10 anos”, disseram. Argumentei que, sob vários aspectos, vivemos nós mesmos uma guerra civil nesse exato momento e que, do ponto de vista da Bósnia e da Croácia, a Sérvia era o agressor, não o oprimido.
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Lembrei-me do jogo da Suíça, em que jogadores que tiveram famílias afetadas pela guerra do Kosovo fizeram o símbolo da bandeira da Albânia, que apoia a independência do país contra a Sérvia. Copa do Mundo não é futebol. Copa do Mundo é política internacional, é intercâmbio, e é, em muitos casos, resistência. E é o que está para além das quatro linhas que faz dela um evento tão apaixonante.
A massa verde-amarela era maioria absoluta e o português a língua oficial do Kulturbraueri, mas uma minoria belga cavou seu caminho até ali. Não sei se por ser um país tão pequeno com mais de uma língua, as músicas cantadas por eles todas pareciam uma variação de “lololôs” e “lalalás”. Os brasileiros faziam o que sabem melhor: reclamavam dos jogadores, xingavam o Neymar, xingavam o Tite, lembravam do 7×1, faziam chacota de si mesmos e xingavam o Neymar mais um pouco. Mas quando saiu o único gol da seleção nessa partida, todo mundo tirou o grito da garganta. E a esperança renasceu lá no fundo, só para ir morrendo outra vez a cada bola que insistia em não entrar e a cada minuto a menos no relógio.
A Copa do Mundo terminou aí para a Seleção e os brasileiros deixaram a cervejaria com aquele já conhecido sentimento de frustração de sair muito cedo de um evento que demora tanto para se repetir. Não sei se um dia seremos a geração do Hexa, mas, o que eu vi naquele jogo é que, enquanto o Brasil estiver em campo, seguiremos acreditando.
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