Conversa de Bar

“Deixa as bichas gritarem gol!”

Toda vez que viajo ao exterior, o futebol brasileiro é um grande aliado. Já me salvou em várias ocasiões, da Tailândia à Polônia, por ganhar a simpatia imediata do interlocutor. Te juro que considerei até comprar uma camisa da seleção só para me dar bem. Amolece corações e arranca sorrisos de comerciantes, taxistas, fiscais alfandegários, é uma bênção.

O problema é que tenho tanta intimidade com o futebol quanto com fissuras nucleares subatômicas. Certa vez trombei com a seleção brasileira no aeroporto de Londres e não fui capaz de reconhecer um jogador sequer. Só sei repetir feito papagaio o nome dos mais famosos com empolgação suficiente para parecer que eu e os gringos temos algo em comum. NEYMAR! RONALDO! KAKÁ! Very good, very good player. Fim.

A primeira vez que joguei futebol pra valer devia ter uns 12 anos e fui a contragosto. Peguei emprestado o par de chuteiras verde limão do meu irmão mais velho que, vale dizer, não combinava nem um pouco com o resto da roupa e já me incomodou de antemão. Estava meio grande. Calcei e fui automaticamente enviado pelo meu time ao gol, o despacho extra-oficial de jogadores ruins.

Os moleques acreditavam que iam conseguir evitar que a bola chegasse até mim, mas nem sempre conseguiam – era uma tragédia anunciada. Depois de tomar três, me mandaram para a defesa. Estava claro, tanto para os adversários quanto para mim, que eu era meio delicado demais para estar ali, e virei alvo justamente por isso. Eles me pareciam uns trogloditas, capazes de sentir o cheiro do meu pavor e me moer.

Lembro do momento em que Pedro, um menino meio metido de uma série mais velha, entrou com os cravos da chuteira na minha perna na maldade. Rolei no gramado à la Neymar e permaneci estatelado como se tivesse levado um tiro. Só conseguia sentir a dor e ouvir os gritos preocupados das meninas, minhas amigas, da arquibancada. Ele levou um cartão vermelho e eu saí carregado, estampando a marca dos cravos que chegaram a sangrar. Jurei ali, feito uma Scarlett O’hara dos esportes, que nunca mais pisaria em um campo outra vez.

Dito e feito. Nem pisei, nem me interessei pelo que acontecia dentro de estádios que não fosse o show da Madonna. Não me dizia respeito. Gostava de Copas só pelo cinema vazio e as ruas tranquilas como em feriados prolongados. Mas, secretamente, achava uma delícia ouvir o barulho da explosão de alegria em ondas que toma uma megalópole como São Paulo na hora do gol. Na Copa de 2018, essa história mudaria.

Veja também: Para que serve uma coluna LGBTQI+? 
A lista 2018 de destinos LGBTQI+ friendly (e outros nem tanto)”
Precisamos falar sobre a Rússia: como é ser gay no país?

Poucas semanas antes de começarem os jogos me reuni em um bar com amigues querides, entre eles o casal de jornalistas maluco por futebol, a Leonor Macedo e o Leo Lepri. Ela, corinthiana, ele são-paulino. Fanáticos, doentes, roxos. Conversamos um pouco sobre o tema e surgiu a ideia: quero ver os jogos com vocês, topam? Eles foram corajosos o suficiente para adorar e, dias depois, lá estávamos nós, várias gays e sapatões sem entender patavinas do que acontecia, bebericando mimosas e provando a torta de cachorro-quente da anfitriã.

Foto: Por kovop58, Shutterstock.com

O Leo foi convocado para cobrir o evento, então sobrou para a Lelê e o filho dela, o Lucas, responderem pacientemente às nossas milhares de perguntas idiotas. Sabe de uma coisa? Percebi que só nos faltava esse acolhimento para também amarmos a paixão nacional. A gente é brasileiro também, deixa as bichas gritarem gol! No jogo contra a Sérvia, eu urrava no bar e a Lelê se mijava de rir do meu desespero. Depois da derrota para a Bélgica, ela mandou essa mensagem foda no nosso grupo do WhatsApp, que eu transcrevo abaixo na íntegra porque me deixou de olhos marejados.

“Queria dizer aqui, aproveitando o dia de emoções, que essa foi uma das Copas mais legais da minha vida. Eu amo futebol e, de quatro em quatro anos, celebro esse momento. Mas estar com vocês nesses jogos foi muito especial. Aos meus amigos gays e lésbicas, principalmente: sei que o futebol é um ambiente inóspito e hostil, muitas vezes é melhor ficar de fora como autodefesa. Mas ver vocês se divertindo, vibrando, gritando, torcendo, foi um grande presente. Vocês são sempre bem-vindos no futebol que eu acredito e defendo. E, do meu lado, vocês estarão sempre seguros para viver isso, eu prometo”.

Na próxima viagem vou saber comentar OS LANCES MAIS IMPORTANTES DA COPA, quem diria! Qatar que nos aguarde: as pintosas vão dominar o mundo da bola.

Imagem destacada: Por fifg, shutterstock.com

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Victor Gouvêa

Meu pai sempre me disse que a melhor coisa da vida era viajar. Eu acreditei. Misturei as formações em Turismo e Jornalismo para viver de viajar e contar tudinho. Parti de uma cidadela de 30 mil habitantes para morar em SP, EUA e Alemanha, visitar mais de 40 países (e contando) e acumular as histórias mais malucas.

Ver Comentários

  • Haha. Detesto futebol. Embora até 2002 eu entendia tudo sobre o mundo do futebol. Quem tinha feito o melhor e pior negócio, dentro e fora dos campos. Sabia o valor que cada jogador valia. Mas, com o tempo passei a detestar o futebol por causa da violência. Hoje, não me interesso nem por copa do mundo. Quando a galera do meu serviço se reuniu para assistirmos aos jogos da seleção brasileira, eu fui somente para marcar presença. E claro, eu torcia para seleção adversária. Minhas amigas do trabalho queriam me "matar"kkkk

  • Eu também não tenho nenhuma intimidade com futebol, mas essa copa foi um desastre. kkk

    Parabéns pelo artigo..

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Victor Gouvêa

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