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Devassos no Paraíso e o cabaré da resistência em São Paulo

Outro dia, por acaso, eu acabei na mesa de um restaurante com duas meninas incríveis responsáveis pela ONG Teto, que constrói casas para famílias de baixa renda. Fazia poucos dias da eleição de Jair Bolsonaro e estávamos todos com as barbas de molho pelo retrocesso que o momento representava, cada um com seus receios à espreita. Mas elas divulgavam uma mensagem importante: encontraram-se com ONGs estadunidenses que há dois anos aprendem a lidar com o seu próprio problema, Donald Trump, e tinham um recado. As entidades que se desesperaram e renderam-se à histeria acabaram fechando ou ruindo; só sobrevive quem resiste. Existindo.

Como LGBTQI+ a gente nasce aprendendo a resistir. E se formos justos e olharmos para trás, vamos encontrar muita gente que resistiu com bravura antes de nós. No excelente livro que acaba de ser relançado em versão atualizada, o autor João Silvério Trevisan reconta a história LGBTQI+ do Brasil. “Devassos no Paraíso” (Companhia das Letras, R$ 59,90) lembra a gente que apesar de reforçado na última década, o movimento e a comunidade são muito antigos e precisam constantemente de manutenção.

João relata sobre os cabarés que lotavam em São Paulo no início do século passado. Fala dos passeios públicos e bulevares do Centro que reuniam as bichas, sapatões e todo tipo de “desajustados” dos anos 1940 e 1950. Conta do período de ouro da disco em que as boates da Rua Augusta ferviam. Uma ótima dica para conhecer um pouco mais sobre a cultura LGBTQI+ paulistana é o documentário “São Paulo em Hi-Fi”.

A boate Medieval marcou época. Imagine só a vedete Wilza Carla descendo a rua em cima de um elefante para entrar lá. Isso aconteceu, e transformistas famosas na época competiam pelo bafafá de criar o show mais inovador. Em um fórum sobre o lugar, ex-frequentadores saudosos contam seus causos. “No início dos anos 1980 eu fazia shows sempre às quartas-feiras no quadro Brasil Tropical, dublava Ney Matogrosso, Elza Soares”, lembra Eduardo Franciolli.

Mas você deve estar se perguntando: onde mora a resistência em 2018? Eu encontrei o local, que talvez você ainda não conheça (como eu não conhecia) porque ele abriu no último fevereiro, e não se preocupa em divulgar porque a lotação da casa não comporta tanta gente. Bem vindos ao Cabaret da Cecília. Funciona em um casarão antigo do bairro de Santa Cecília, reformado com inspiração nos cabarés de Paris e Berlim dos anos 1920, “mas sem ser muito fabricado”, conta Gilberto, um dos donos em sociedade com o marido, Tiago. Nesse lugar onírico, um palquinho no porão e um microfone são abertos para artistas fantásticos, drags maravilhosas, bandas de jazz, freak shows, performances e rola até strip tease nas quintas. “Queremos resgatar o glamour decadente, o underground”, comenta Gilberto na calçada, sem formalidades e cumprimentando os clientes assíduos.

Foto: São Paulo em Hi Fi, reprodução

De repente a drag Thelores para na soleira da porta e berra “andiamo!”, anunciando que o show vai começar. Em uma quarta à noite, o trio dela faz um show leve e divertido sobre as divas da era do rádio. Dublam Ângela Maria, declamam Maiakovski, e encerram entoando a versão brasileira de “Bella Ciao”, que nos protestos desse ano virou “Ele Não”. Quando o show acaba, a talentosíssima Thelores senta-se à mesa conosco. Mais tarde, outra dupla de drags aparece para performar uma batalha de talentos, e depois uma garota dança em homenagem à divindade Iansã.

Tiago, o outro dono do Cabaret da Cecília que faz as vezes de Mestre de Cerimônias com uma camisa rendada, abre então o microfone para quem quiser. O lugar encampa uma espécie de “residência de drags”, em que convidam uma artista por semana para ser a hostess do lugar e a cada dia apresenta um espetáculo diferente para calibrar com o público.

Quando pergunto o que espera dos próximos anos, o sorridente Gilberto fecha o semblante. “Não vai ser fácil. A gente levanta muito a bandeira com nosso discurso, os artistas que convidamos, os shows. Estamos pensando em como vai ser agora, talvez aumentar os seguranças”, prevê.

Foto: São Paulo em Hi Fi, reprodução

Lá pelas tantas as drags meio desmontadas estão lá fora, todo mundo papeando, rindo alto, divertindo-se como há de ser. Um segurança vem nos pedir silêncio porque já é tarde e os vizinhos começam a reclamar. Pode ser que a lei nos obrigue a baixar a voz nos próximos anos, mas a festa… ela sempre continua.

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Este foi o último texto da coluna LGBTQI+, pelo menos dessa temporada. Agradeço ao 360meridianos pelo espaço fundamental que me abriu e a liberdade editorial que me confiou, algo raríssimo. E aos leitores, que me mandam mensagens tão carinhosas e dizem como a coluna os ajuda, os incentiva de alguma maneira: seguimos juntos na luta. Abraços a todos.  

Serviço – Cabaret da Cecília

O Cabaret da Cecília funciona na Rua Fortunato, 35, de terça a sábado, sempre a partir das 19h. Fique de olho na página do Facebook deles para se informar sobre os eventos. 

Imagem destacada: Shutterstock, Por Refat

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Victor Gouvêa

Meu pai sempre me disse que a melhor coisa da vida era viajar. Eu acreditei. Misturei as formações em Turismo e Jornalismo para viver de viajar e contar tudinho. Parti de uma cidadela de 30 mil habitantes para morar em SP, EUA e Alemanha, visitar mais de 40 países (e contando) e acumular as histórias mais malucas.

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Victor Gouvêa

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