Muitos anos depois, ao recordar suas viagens pelo mundo, ele se lembrou do dia em que chegara ao Brasil sem nada no bolso. O que na época foi um perrengue – e um daqueles dignos de desespero – rapidamente se converteu numa boa história de bar. É a armadilha da nostalgia, ele diria a amigos, “que tira momentos amargos de seu lugar e os pinta de outra cor, só para colocá-los de volta de uma forma que eles não incomodam mais”.
Gabriel passava longe de ser um viajante inexperiente. Foi o jornalismo que o fez cair na estrada, percorrendo cada cantinho da América Latina. Quando jovem, ele fora de Bogotá a Cidade do México, de Havana a Caracas, sempre no modo econômico. Viajava como um mochileiro: dormia em pensões baratas enquanto conhecia o mundo; se alimentava mal e bebia da mesma forma, sempre acompanhado de seus livros e filmes favoritos.
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A falta de dinheiro continuou em seus anos morando na Europa, período em que trabalhava como correspondente para revistas e jornais da América do Sul. Aos 30 e poucos anos, Gabriel vivia em Paris e sonhava com as ruas de uma cidade que não existia mais – a capital retratada por alguns de seus escritores favoritos.
Nunca deixou de retornar para casa, na Colômbia, e foi lá que ele se casou com Mercedes e que acompanhou o nascimento de seu primeiro filho. Simpatizante de Fidel, bastou a revolução para levar a um período morando em Cuba, mas logo toda a família se mudou para o México. Décadas depois do surgimento da aviação comercial e em plena Guerra Fria, ele já vivia como um nômade, mesmo sabendo exatamente onde estavam suas raízes.
E assim o jornalismo virou, de uma vez por todas, literatura. Foi no começo dos anos 1960 que ele publicou seus primeiros livros. O maior trabalho, aquele que garantiu um lugar entre os grandes e renda em vários países do mundo, foi publicado em Buenos Aires, quando o escritor tinha 40 anos. Era um romance inspirado na casa de seus avós e que foi traduzido para 37 idiomas. O sucesso trouxe nova mudança e a família toda foi viver na Espanha, onde passou quase uma década.
Dezenas de milhões de cópias e um Prêmio Nobel mais tarde, Gabriel García Márquez tinha uma vida tranquila e dividia seu tempo entre a Colômbia e o México, casa adotiva. As viagens aumentaram de ritmo e foi nesse momento que ele desenvolveu o costume de encarar a estrada sem nada no bolso, mas não por falta de dinheiro. Assim como outros escritores, Gabo evitava as casas de câmbio. Ele aproveitava as viagens para ir ao banco e sacar o que recebia, já em moeda local, pela tradução e venda de seus livros naquele país.
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A tática funcionou perfeitamente e evitou a perda de algumas centenas de dólares em taxas de câmbio. Até o dia em que ele desembarcou pela terceira vez no Brasil. Era 1990, ano de Fernando Collor de Mello e do confisco das poupanças. Com as contas congeladas por 18 meses e os saques limitados a pequenas quantias, García Márquez, já rico, se viu sem dinheiro nenhum. Para continuar a viagem, a saída foi pedir ajuda. Ligou para um amigo.
“Jorge, preciso de dinheiro emprestado”. Da mesma forma que, num momento assim, hoje abriríamos o Whatsapp e recorreríamos a amigos, García Márquez buscou na agenda o número de um velho companheiro. Do outro lado da linha estava o autor de Dona Flor e Seus Dois Maridos e Gabriela, Cravo e Canela. E assim Jorge Amado foi convocado por Gabriel García Márquez na hora do aperto. Cada um aciona os amigos que tem ao alcance.
Não sabemos se Jorge Amado emprestou o dinheiro e como e quando os escritores acertaram a dívida. Na verdade, essa história é pouco conhecida – é mencionada num vídeo exibido na Casa do Rio Vermelho, em Salvador, que por 40 anos foi moradia de Jorge Amado e Zélia Gattai. Nele, o cineasta Guido Araújo diz que o caso foi contado pelo próprio García Márquez, numa mesa de bar.
Hoje a Casa do Rio Vermelho funciona como museu e conta essas e outras histórias. Funciona de terça a domingo, das 10h às 17h. Fica na Rua Alagoinhas, nº 33, em Rio Vermelho, e a entrada custa R$ 20.
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Que lindeza falar de viagens... e de mestres da literatura! E ainda da amizade de Gabo e Jorge Amado, dois reis. Sou fãzona dos dois e viajei lendo essa história, assim como sempre viajo lendo os artigos de viagens de vocês. Maravilha, 360! Parabéns pelo cuidado na escolha dos textos!
Muito obrigado pelo comentário, Larissa. Muitas vezes textos mais simples, de dicas de viagem, recebem mais leituras e comentários, por conta das dúvidas que as pessoas querem tirar. Mas eu fico é felizão quando chegam comentários em textos como esse, que são os que mais curtimos fazer.
Abraço.
Às quartas a entrada na casa do Rio Vermelho é gratuita. Vale mesmo a pena a visita.
Obrigado pelo comentário, Zara.
Abraço!