Ao longo desses quase dez anos de peregrinações, já dormi em muitos lugares inóspitos: já juntei cadeirinhas no saguão de um aeroporto para formar uma cama, já estive em quartos de hotéis que pareciam cenário de crime. Passei incontáveis noites em cadeiras desconfortáveis de ônibus e sobre um cobertor no chão duro e frio. Mas só uma vez eu tive que conviver com a ameaça de um escorpião.
Chegamos a Rey Curré sem aviso nem reserva, porque, ainda que quiséssemos, não há hotéis por ali. O pequeno povoado dos indígenas Boruca, localizado no sudoeste da Costa Rica, deve ter no máximo trinta casas, e nenhuma alma empreendedora que vive nelas pensou em transformá-las em hospedaria. Também, não há necessidade alguma, já que esse finzinho de mundo passa despercebido até mesmo entre quem cruza a Estrada Panamericana quase que durante o ano inteiro. Isso só muda durante a festa dos Diablitos.
Por três dias, a cidadezinha se enche de máscaras coloridas de diabos dos mais diversos formatos que simulam a batalha entre os invasores espanhóis e os povos nativos. Nessa época, ônibus lotados de forasteiros estacionam na rodovia que corta o povoado. A maior parte deles fica ali por um tempo e logo deixam o local rumo a San José ou Palmar porque, como eu já expliquei, não há onde dormir em Rey Curré. Mas, para nós, isso não era o suficiente. Queríamos ficar uma semana. A ideia era documentar a festa e gravar um pequeno vídeo sobre a língua materna Boruca para o Projeto Wakaya.
O festival dos Diablitos de Rey Curré leva turismo para o pequeno povoado
Por isso, quando descemos do ônibus, de mochila e tudo, nos sentamos na pracinha central e resolvemos esperar. A precária wifi pública disponível ali nos ajudou a contactar o líder comunitário, que já estava avisado da nossa visita, e ele veio nos encontrar. Conversa vai, conversa vem, logo surgiu a pergunta: “e onde vocês vão dormir?”. Esperávamos, explicamos, que houvesse algum lugar por ali, qualquer pedaço de chão sob um teto, já que tínhamos sacos de dormir e nenhum plano B. Ele não pareceu nem um pouco feliz, mas foi embora prometendo uma solução. Voltou com as chaves de uma casa, que segundo ele, estava vazia.
As chaves, no entanto, eram mera formalidade. A casa até tinha teto, mas não tinha nada. As janelas de vidro estavam quebradas, abertas para quem quisesse entrar, não havia porta no banheiro, que por sorte funcionava, e só uma velha cadeira e muito pó compunham a sala. E, claro, ele. Nosso amigo escorpião, descansando imóvel em uma parede.
Eu não sei como vocês lidam com um problema, mas meu grupo preferiu não lidar com ele até que fosse absolutamente necessário. Em parte, porque éramos todos filhos de diferentes selvas de concreto ao redor do mundo e nunca tínhamos visto um escorpião de verdade na vida. Empilhamos todas as mochilas em uma cadeira e saímos para nadar em um rio que, dizem, era cheio de jacarés, outro perigo dessa natureza tão hostil que resolvemos enfrentar primeiro.
Rey Curré, cortada pela Panamericana
E assim como costuma acontecer com qualquer problema, o escorpião não desapareceu. Ainda nos esperava ali, tão quietinho em seu lugar que começamos a nos perguntar se estava mesmo vivo.
“Alguém cutuca ele pra ver se ele mexe”, mas ninguém queria cutucar.
“Como se mata um escorpião?” Nem ideia.
“Google. Vamos perguntar para o Google”. E lá fomos nós para a pracinha em busca de um manual de sobrevivência para dummies.
“Chinelada. Escorpião se mata com chinelada.”
Como boa brasileira, eu tinha as havaianas, mas quem ia se voluntariar? E o medo do bicho escapar e picar a mão? Quanto tempo levaria dali até o hospital mais próximo? E, o mais importante: quem nos levaria até o hospital mais próximo? As dúvidas eram muitas, a noite escura e o escorpião continuava ali. Joseba, o amigo basco, tomou coragem. Cutucou o bicho com a havaiana. Pela primeira vez ele se mexeu, caminhando vinte centímetros na parede. Uma chinelada, ele caiu no chão, já gravemente ferido, rodopiou um pouco, despertando pânico nos presentes. Joseba desferiu o golpe final.
Decidimos, por uma precaução meio boba, já que não havia portas, dormir no outro cômodo. Toda a nossa fé depositada nas mosquiteiras e na esperança de que o finado escorpião não tivesse deixado filhos nem parentes próximos. No outro dia, seu corpo já não estava mais ali. Fora levado pelas formigas.
(Nesse mesmo povoado, eu fui mordida por um cachorro. Mas essa é uma outra história…)
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