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Médicos Sem Fronteiras: como é o trabalho humanitário de uma pediatra

Levar cuidados de saúde a pessoas em necessidade de ajuda médico-humanitária em meio a conflitos armados, epidemias, desastres naturais, desnutrição e exclusão do acesso a cuidados de saúde. Esse é o objetivo do Médicos Sem Fronteiras, uma organização humanitária internacional criada na França, em 1971.

“Para mim, médica e mulher, trabalhar em locais de crises humanitárias é muito pesado. Como para qualquer outro ser humano que tenha um pouco de empatia pelo outro. Não acredito que por ser médica eu veja isso de uma forma diferente de qualquer outro que trabalhe em crises humanitárias”.

Pelo mundo, são mais de 45 mil profissionais de diferentes áreas e nacionalidades e a nossa personagem de hoje é uma dessas pessoas. A gente conversou com a pediatra mineira Junia Cajazeiro, médica formada em 2012 na UFMG e que ingressou no MSF em 2016.

“Durante a faculdade de medicina eu vi uma palestra de uma cirurgiã que trabalhava para o MSF e me identifiquei com a instituição: levar atendimento médico de qualidade aos mais vulneráveis. Então, desde essa palestra, que foi bem no início da faculdade, eu tinha decidido que trabalharia com a instituição”, conta Junia.

Logo depois da reunião, ela já foi correndo pro site olhar o que era preciso pra ingressar na organização: falar fluentemente uma segunda língua, ter dois anos de experiência na área de atuação e se identificar com o projeto. E foi assim que, desde a faculdade, ela passou a se esforçar para conseguir os pré-requisitos.

“Quando entramos na instituição como pessoas que vão trabalhar em outro país, vamos em cargos de coordenação – então eu fui para o Uzbequistão para coordenar a equipe médica que atendia crianças com tuberculose na região do Karakalpakstan. Já na Etiópia, eu trabalhei em três locais diferentes e em cada um deles eu coordenava uma equipe diferente para um trabalho específico: enfermaria, pronto socorro, maternidade (parte da neonatologia) e tratamento de desnutrição. Aqui no Brasil, fui como pediatra pra começar atendimentos médicos no posto de saúde em que estávamos atendendo juntamente com a equipe do SUS”.

Com o Médicos Sem Fronteiras, Junia já foi trabalhar no Uzbequistão, Tajiquistão, Etiópia, Iraque e Roraima, aqui no Brasil. Quem quiser conhecer as missões da Junia, pode acessar a página dela no MSF e ler os relatos.

A pediatra diz que, nos locais onde esteve, cada um tinha sua dificuldade e sua necessidade. Para ela, fica até difícil apontar o maior desafio, já que depende da forma que o problema é visto.

Ela conta que o coração chegava a doer com determinados acontecimentos – e aquilo não era necessariamente um problema para comunidade. E que outras coisas que doíam nos moradores, às vezes ela não entendia muito bem, até que alguém explicasse por que aquilo era importante para população.

“Já trabalhei com população com falta de acesso a alimentos, populações que retornavam a sua casa após uma guerra e encontraram toda sua cidade destruída, sem possibilidade de reconstrução. Já trabalhei com população de refugiados. Cada um deles tem sua dor e não sei, de forma alguma, mensurar essas dores”.

Independente, neutro e imparcial. É o MSF quem determina, de acordo com sua própria avaliação, onde, quando e como agir.

Em caso de emergências repentinas, a atuação pode ser iniciada entre 48 e 72 horas. É que, com o passar dos anos e com a experiência adquirida em várias ações, eles conseguiram desenvolver e aprimorar um sistema de logística extremamente eficiente.

Desde de 1980, a organização passou a utilizar kits personalizados e adaptados para cada contexto, que são pré-embalados e prontos para viagem e constantemente aprimorados. Os kits contêm medicamentos, suprimentos e equipamentos básicos e atendem desde campanhas de vacinação até a montagem de um hospital inflável. Assim fica mais fácil agir em casos de catástrofes naturais, por exemplo.

Veja na tabela abaixo os números do MSF no ano de 2018.

O trabalho humanitário dos Médicos Sem Fronteiras

“O trabalho médico humanitário é pesado, exige da gente muitas horas, muito estudo, reinventar muita coisa para se adaptar à realidade do local em que estamos. Muitas pessoas, quando descobrem que faço parte do Médicos Sem Fronteiras, falam: ‘nossa, que legal! Você deve ter visto muita coisa bacana, né?’

Sim, com certeza vi outras culturas, conheci pessoas maravilhosas, iniciei trabalho em hospitais, mas não consideraria isso como algo legal. O trabalho humanitário nos coloca de frente a muita tristeza, muita miséria. Não existe glamour nisso. Existe muito companheirismo com quem está trabalhando com você, muita risada, porque saúde mental é essencial pra dar conta de tudo, mas não é fácil”, conta Júnia.

A atuação do Médicos Sem Fronteiras é, acima de tudo, médica.

A organização leva assistência e cuidados preventivos a quem necessita, independentemente do país onde se encontram. O trabalho deles está presente em mais de 70 países, levando auxílio a quem precisa e não tem acesso adequado.

O trabalho humanitário feito pelo MSF foi premiado com o Prêmio Nobel da Paz, em 1999.

Júnia conta que o trabalho humanitário exige muita dedicação e também abrir mão de determinadas coisas, como a convivência com familiares e amigos. Às vezes, a equipe médica tem que ficar em locais de difícil acesso, onde não chegam diversos tipos de alimentos e pode ocorrer até restrição de locomoção.

“Muitas vocês você está em regiões onde há perigo de se mover de um local a outro (por causa de bombas, sequestros, tiros, etc). A gente se reinventa, se redescobre e muda muito, mas muito mesmo”.

Trabalho humanitário x turismo

Para Júnia, há uma grande diferença entre trabalho humanitário e o turismo humanitário. O trabalho humanitário requer tempo, engajamento com a comunidade local e entendimento das necessidades daquelas pessoas.

“Significa tentar entender como aquela população enxerga suas necessidades e o que precisa e não simplesmente ver com nossos olhos quais as necessidades que eles ‘devem’ ter e dar a eles aquilo que consideramos necessário.

Trabalho humanitário requer empatia e, como dizem em inglês, ‘calçar o sapato dos outros’. E fazer isso requer um entendimento antropológico, demanda escuta. Normalmente, trabalhos humanitários exigem uma equipe local, que é o mais importante. Os projetos são sustentáveis naquela comunidade e há um respeito à cultura local e às necessidades locais”.

“Há várias instituições que levam ajuda a comunidades, da forma que eles enxergam que aquela população precisa, no tempo que podem dar (semanas, talvez), mas não há uma manutenção daquele projeto.

Essas ajudas assistencialistas, em meu ponto de vista, não são nada além de turismo humanitário, em que a pessoa leva a ajuda que ela julga necessária, por um curto tempo, tira fotos, se vangloria, volta com a sensação de dever cumprido, mas não há, de fato, ajuda para aquela comunidade, que após a visita volta aos parâmetros que tinha antes, sem possibilidade de melhora em qualidade de vida, uma chance real de sair daquela realidade em que vive”.

Segundo a médica, há várias instituições sérias de trabalho humanitário e há sites sérios que mostram essa diferença entre turismo humanitário e ajuda humanitária.

“Você vai ter em seu ‘pacote’ idas a locais turísticos enquanto ajuda aquela população? Então é turismo humanitário. Você vai ficar pouco tempo, fazendo trabalho num asilo? Ainda assim turismo… Faça trabalho voluntário no asilo da sua cidade!”.

Médicos Sem Fronteiras e a Covid-19 no Brasil

O MSF está no Brasil desde 1991. Atualmente, a organização envia 190 brasileiros de diversas especialidades para projetos pelo mundo. Em tempos de pandemia, eles têm intensificado as áreas de atuação no Brasil.

De acordo com a organização, a resposta de MSF à COVID-19 concentra-se em três pilares: apoiar as autoridades de saúde na oferta de cuidados aos pacientes de COVID-19; proteger pessoas vulneráveis e em risco; e manter os serviços médicos essenciais funcionando.

Eles têm tomado um cuidado ainda maior com os profissionais das equipes, para impedir que as instalações disseminem o vírus ou sejam obrigadas a fechar as portas.

Foto: Gabriela Romero- Médicos Sem Fronteiras

No Amazonas, o MSF começou a atuar na capital do estado no dia 25 de abril. De lá pra cá, colocaram em funcionamento um centro de isolamento e observação para pacientes de grupos vulneráveis com casos mais leves da doença, que não precisam de hospitalização. Também realizaram atividades no interior do estado, para organizar a oferta de cuidados médicos de qualidade para pacientes com casos moderados e graves de COVID-19 em áreas remotas.

Quem quiser conferir de perto pode ver as ações no site do MSF. A Júnia está lá, coordenando a equipe de outreach (divulgação).

Em São Paulo, uma das maiores preocupações da organização é com as populações em situação de rua, migrantes, indígenas, usuários de drogas e idosos que moram em asilos.

Na cidade brasileira que concentra o maior número de casos, eles buscam ampliar as atividades de educação em saúde, busca ativa de casos e encaminhamento dos pacientes identificados para centros de tratamento. A cidade tem uma população em situação de rua estimada em 24 mil pessoas.

Se quiser ver como tem sido o acompanhamento, é só conferir na página do MSF.

Foto: Andre Francois/ Médicos sem fronteiras

Médicos Sem Fronteiras: como doar

“O MSF é uma ONG e nossa renda é feita exclusivamente de doações de pessoas físicas, assim como eu ou você. Não recebemos doações de governos ou de instituições como indústrias farmacêuticas, exatamente para poder manter nossa neutralidade e imparcialidade em qualquer ambiente. Então, a doação é parte essencial para nossa sobrevivência. Os doadores são vitais para que o MSF continue existindo e fazendo seu trabalho”.

Se você quiser doar, é só entrar na área de DOAÇÕES DO MSF e fazer o seu cadastro.

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Fernanda Pádua

Tenho BH como meu ponto de partida e o meu porto seguro. Entrei pela primeira vez em um estádio de futebol aos 10 anos e ali descobri que queria ser jornalista. 20 anos depois, me tornei repórter esportiva e viajante nas horas vagas. Fiz intercâmbio na Irlanda em 2016/2017, pra estudar inglês. Tenho um objetivo de visitar todos os estados brasileiros e metade dos países do mundo e já percorri boa parte do trajeto, mas várias histórias e paisagens legais ainda estão por vir.

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Fernanda Pádua

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