Do alto da grade verde o menino tenta enxergar o outro mundo. Atrás dele, um adulto também observa o lado de lá — e para isso sobe no ponto de ônibus. Do chão, uma mulher com olhos tristes faz o mesmo, se esticando inteira para que a vista alcance a dor.
Não vejo o choro. Mas sei que ele está ali, estampado nos três rostos, lágrimas que as máscaras não seguram e nem são capazes de esconder. E não são as únicas: a poucos metros e também da calçada, outro grupo faz a mesma coisa, família na ponta dos pés para dar a Deus os seus.
Em 2020, a Avenida Carlos Luz se transformou na mais triste de Belo Horizonte. A via, que leva para a Pampulha e sempre tem trânsito intenso, naquele trecho faz uma curva suave. Do lado esquerdo estão os morros; do direito os mortos, um quilômetro de grades esverdeadas do que parece um parque, mas é necrópole. É o Cemitério da Paz, um dos maiores da cidade e onde estão enterradas 250 mil pessoas.
Se antes nenhum vivo queria cruzar o portal dos mortos, agora vários dão de cara com grandes fechadas, guarda na porta e bilhete informando que a entrada não é permitida. Só para os mais próximos, meia dúzia de viventes que levam o amor não velado em sua volta ao solo. Travessia acompanhada à distância e na ponta dos pés.
Não há aglomeração, só tristeza; não há abraços, só acenos de cabeça. O menino fica no alto da grade até que, a cinquenta metros dali, o caixão some, engolido pela terra. Lá dentro, um dos coveiros pega uma pá, enquanto cá fora a mulher se vira para o homem, que fala algo. Do carro, não escuto.
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Buzinas. O sinal abriu e nem vi, distraído que estava com o velório no meio do caminho. Acelero pensando em como deve estar o Bonfim, cemitério que fica ali pertinho. Lá não há grades, mas muros de quase dois metros. A grama do cemitério-parque dá lugar a mausoléus em art déco, sepulturas em quarteirões simétricos e tão planejados quanto a cidade dos vivos.
Inaugurada antes de Belo Horizonte, a necrópole por gerações a contempla — a vista que se tem dali, com a Serra do Curral e os arranha-céus do centro, é impressionante. Não é à toa que o Bonfim virou até cartão-postal, com direito a tour guiado pelo descanso dos famosos. Simulacro de Père-Lachaise, de Recoleta.
Em menos de dez minutos estou lá, o segundo cemitério na rota pra casa. Com os muros como barreira, ninguém tenta ver os mortos ao redor do Bonfim. Só do estacionamento, onde quatro pessoas observam um pequeno cortejo que segue pela rua principal. O luto atravessa o pórtico branco, uma estrutura que tem três cruzes, duas nas laterais, grandes e vazadas, e uma no topo, menor.
De dentro do carro não consigo ler, mas sei bem que no pórtico há uma inscrição: Moritvri Mortivis. Dos que vão morrer, aos mortos. A última saudação dos vivos é uma lembrança do destino comum de todos nós. À morte, eterna companheira da vida, pelos séculos dos séculos, amém.
Com tão poucos velando o fim, a inscrição em latim é a maior homenagem dos vivos. Sombrios são os tempos em que até o luto mudou. E está na ponta dos pés.
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