– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia ter saído de uma cena de Aladdin.
– O que vocês gostam de fazer no Brasil?
O senhor de meia-idade com bigode em forma de ferradura estava sentado ao nosso lado no restaurante do hotel de Shiraz, onde tomávamos café da manhã. No Irã, nos acostumamos com a curiosidade das pessoas, que não veem tantos estrangeiros, e ele começou a puxar papo assim que percebeu que falávamos outra língua.
As três cadeiras restantes eram ocupadas por sua mulher e seus dois filhos adolescentes que ouviam tudo, mas não engajaram na conversa.
– O Brasil é muito alegre! A gente gosta de sair com amigos, futebol, ir à praia, carnaval, samba, ir pro bar…
Depois de quatro meses longe de casa, já estávamos acostumados a emplacar o pacote genérico de agradar gringo. O diálogo foi seguido por um curto silêncio.
– Bar? – ele perguntou. Nós nos entreolhamos, com medo de termos ofendido um muçulmano mais estrito. – Vocês costumam beber no Brasil?
– Com frequência – respondi, hesitante. Teríamos pisado num campo minado cultural?
Ele se levantou, e com um ar de misteriosa formalidade, disse:
– Tenham um bom dia, eu vejo vocês mais tarde.
Para nós, a despedida soou como um “tchau e bença”, mas não havia nada que pudéssemos fazer para amenizar a gafe antropológica. Além do mais, tínhamos várias mesquitas, jardins persas e fortalezas para visitar.
Só voltamos ao hotel no final da tarde. O bigodudo de olhar faiscante estava parado em frente ao portão de madeira decorado com vitrais coloridos que levava à recepção. Inquieto, ele dava voltinhas pela rua, e pareceu se alegrar quando nos viu. Pude perceber que ele escondia algo dentro de sua jaqueta marrom com um suspense digno de filme noir.
– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia ter saído de uma cena de Aladdin.
Nos entreolhamos, sem saber bem o que fazer. Ele percebeu nossa dúvida e chegou mais perto, afastando o braço da jaqueta para deixar ver o gargalo de uma garrafa de vidro.
– Consegui pra gente – disse, como se, em vez de cerveja, ele nos mostrasse um pacote de cocaína.
Caminhamos por um emaranhado de ruas até um pátio cercado por um conjunto de casas em um condomínio. Entramos numa delas e, como um espião iraniano conspirando contra a sobriedade, ele trancou a porta e fechou as cortinas. Só então ele tirou a garrafa que escondia debaixo da jaqueta.
– Peguei de um amigo que fabrica na casa dele – disse, triunfante.
A embalagem era de uma cerveja sem álcool muito vendida nos bares descolados do país, mas a tampinha deformada indicava que já havia sido aberta antes e fechada outra vez.
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– Nós também sabemos nos divertir, viu?
Ele distribuiu o conteúdo em três copos e chamou seu filho mais novo, de doze anos, para ajudar na conversa. O garoto, que era gamer e streamer, falava o melhor inglês da família e foi nosso intérprete.
A bebida tinha o mesmo gosto de refrigerante de limão das cervejas 0% consumidas no Irã, misturada com algum tipo de álcool caseiro. Dá pra fazer vodca em casa com um punhado de batatas e uma panela de pressão, porém não é recomendável tentar isso sozinho.
Quando não é feito da forma correta, o álcool caseiro pode causar cegueira permanente e até morte. Tentei me esquecer dessa informação e do fato de que eu estava cometendo um crime passível de chibatadas enquanto dava o primeiro gole na bebida.
Conversamos sobre nossas culturas até terminar a garrafa. Ele quis saber do Carnaval e do Pelourinho, e nos contou que já tinha assistido ao clipe que o Michael Jackson gravou com o Olodum. Perguntamos sobre festas e bebidas no Irã, falamos mal do governo e aprofundamos nossa diplomacia alcóolica.
Mas, depois de uma ligação frustrada para o suposto fornecedor de uma nova garrafa de cerveja, dessa vez uma Heineken contrabandeada, nosso anfitrião começou a chorar ouvindo Earth Song de Michael Jackson.
Não sabemos se foi o álcool, a música ou a ausência da saideira prometida. Mas quando o bar fecha, é sinal que é hora de voltar para casa.
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No Irã, a proibição do consumo de álcool está enraizada em leis religiosas e culturais. No Islã, o consumo de álcool é considerado haram, ou seja, proibido, devido aos seus efeitos intoxicantes e ao potencial de afetar o comportamento de quem o ingere. Eu expliquei isso melhor aqui.
Após a Revolução Islâmica de 1979, o Irã adotou um sistema de governo teocrático baseado nos princípios do Islã xiita. Com a implementação da lei Sharia, as regras islâmicas tornaram-se a base para as leis civis e criminais do país.
Sob a Sharia, o consumo, a venda e a produção de bebidas alcoólicas são estritamente proibidos e estão sujeitos a severas penalidades legais.
As penalidades para os consumidores de álcool no Irã variam dependendo da situação, mas podem incluir:
É importante destacar que essas penalidades não são apenas teóricas, mas são de fato aplicadas e têm um efeito significativo na sociedade iraniana.
Apesar da proibição estrita do consumo, venda e produção de álcool no Irã, há relatos de que os iranianos ainda conseguem acessar bebidas alcoólicas através de meios ilegais e clandestinos.
Este acesso é feito com grande discrição, devido às severas penalidades impostas pela lei iraniana. Aqui estão algumas maneiras pelas quais os iranianos conseguem comprar álcool:
Embora existam meios de contornar a proibição do álcool no Irã, essas práticas são ilegais e arriscadas. As pessoas envolvidas nesses atos enfrentam o risco de severas penalidades legais se forem pegas pelas autoridades.
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Interessante, eles não consumem bebidas alcoolicas em obediencia a sua religião.
Que situação difícil, a verdade é que quando a religião não liberta ela aprisiona!
É complicado mesmo, Carlos! Torço para que um dia eles saiam dessa situação!
Você contando a história parece mesmo um filme de James Bond... rs.
É triste que um povo tenha de se submeter a leis arbitrárias desse tipo, simplesmente por questão religiosa.
Pois é, Victor! Também acho triste que um povo tão legal esteja nas mãos de um governo tirânico assim