Como as greves do Nepal afetaram nossa viagem

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“Há chances da manifestação ficar violenta amanhã. Por isso, vamos viajar no meio da noite e fugir do país. Se não dermos notícias em 24 horas, procurem a Embaixada Brasileira no Nepal. E avisem nossas famílias.”

Foi mais ou menos isso que eu escrevi num e-mail enviado para alguns amigos, em maio de 2012, enquanto nós fazíamos as malas às pressas. Estávamos em Pokhara, cidade que fica perto de três das 10 maiores montanhas do mundo. Uma greve geral – que os nepaleses chamam de bandh – tomava conta do país há dias. A promessa dos manifestantes era que a situação, já tensa, iria se complicar no dia seguinte. O dono do hotel onde estávamos nos aconselhou a deixar Pokhara. Estávamos apenas seguindo o conselho dele.

Greves do Nepal: o contexto

Greve-Nepal

Já expliquei o que são as greves do Nepal, mas vamos relembrar: o país era uma monarquia até 2008, quando o Rei optou por perder o trono para não perder a cabeça. Foi declarada a república. Poucos anos depois da revolução, é compreensível que o Nepal passe por um momento de instabilidade política. É por isso que ocorrem as bandhs, que são convocadas da noite para o dia. Durante uma greve assim, o comércio não abre e as pessoas não podem circular pelas ruas e estradas. Apenas veículos muito importantes passam pelas barricadas dos manifestantes, e isso significa ambulâncias, viaturas e ônibus de agências de viagens.

Os veículos de emergê… Oi? Ônibus de agências de viagens? Sim. O Nepal depende do turismo. Imagina o que aconteceria se as greves impedissem a circulação dos turistas estrangeiros pelo país. Representaria uma queda tripla: no número de visitantes, no faturamento de quem vive do turismo e, consequentemente, do governo revolucionário, o que não seria bom para ninguém, exceto para família real. Como não é objetivo dos grevistas perder grana ou deixar o antigo monarca feliz, as greves não costumam parar veículos que levem apenas turistas estrangeiros. Não que isso torne a situação, digamos, menos amedrontadora para o turista.

Greve no Nepal

Greve em Katmandu. Foto: Maxdrukpa

Veja o que aconteceu antes de chegarmos em Pokhara. Estávamos num ônibus que teoricamente deveria ter apenas estrangeiros. Por isso o motorista colocou um letreiro enorme na frente do busão, que dizia “tourist only”. Letreiro que era, é claro, uma mentira, afinal existe o jeitinho brasileiro para tudo – até para um nepalês se livrar de uma greve inconveniente. Fomos colocados nas primeiras fileiras do veículo, junto com outros estrangeiros. O fundão foi dominado pela turma dos nepaleses que queriam furar a greve. A cada cidade entre Katmandu (a capital do Nepal) e o nosso destino, manifestantes paravam o ônibus. Em quase todas elas o cara mandava o motorista abrir a porta, entrava no veículo, dava de cara com os brazucas deste blog e, sem conferir o fundão, deixava o veículo “tourist only” prosseguir. Foi assim até chegarmos na entrada de Pokhara, quando nosso motorista – numa crise (de falta ) de inteligência e amedrontado pela grande quantidade de grevistas que ocupavam a estrada – resolveu frear o ônibus, dar meia-volta e fugir dali. Eis o que eu penso que se passou na cabeça dos envolvidos, com tradução livre, afinal é óbvio que motorista e grevistas pensavam em nepali, não em português.

-“Me dei bem. Transportei um monte de nepaleses no dia da grev… FUDEU! Tem manifestantes demais naquela barricada! Eles vão descobrir o esquema. Tenho que sair daqui”, pensou o motorista.

-“Mano, aquele busão tá tentando fugir do nosso movimento de manifestação legítimo. Deve estar lotado de reacionários e membros da família real. Vamos pará-lo”, pensou um dos grevistas, pouco antes de gritar o mesmo para os outros manifestantes.

O motorista tentou manobrar o veículo. Os manifestantes correram em nossa direção. O motorista errou a manobra e teve que dar ré novamente. Os manifestantes correram ainda mais, gritando palavras de ordem. O motorista errou a manobra de novo, e foi retirado do ônibus pelos manifestantes, que correram com ele dali enquanto gritavam palavras de ordem. E esvaziaram os pneus, entraram no veículo e tiraram todos os passageiros que não eram estrangeiros.

greve no nepal

O que fazer quando uma turba cerca seu ônibus, grita palavras incompreensíveis, arranca o motorista de lá e esvazia os pneus do veículo? Simples: você entra em pânico. E foi o que fizemos – o que foi absolutamente desnecessário, afinal os mesmos manifestantes arrumaram outro motorista para guiar o ônibus (com pneus vazios) até o destino, dessa vez apenas com estrangeiros originais de fábrica.

Por mais que tudo tenha dado certo na viagem de ida até Pokhara, é óbvio que ficamos tensos com a situação. Afinal, vai que uma greve dessas nos prendia por lá, impedindo que pegássemos o voo para Hong Kong? É aí que entra o e-mail que eu enviei para alguns amigos, conforme narrado no começo do post. Assim que chegamos em nosso hotel, pedimos para a simpática família dona do estabelecimento que nos informasse sobre os desdobramentos da greve. Dois dias depois, veio a notícia:

-“Vocês têm que deixar Pokhara imediatamente. Os manifestantes resolveram que a greve fica mais radical amanhã. Nenhum carro será autorizado a passar. E pode ser que os protestos fiquem violentos. Cancelei suas passagens de ônibus e consegui passagens de avião para vocês”, nos informou o dono do hotel. E esse, caros leitores, foi o segundo momento de pânico. Não pelo fato da greve poder ficar violenta. Tampouco pela possibilidade de perdermos nosso voo para Hong Kong. Tudo isso era chato e absolutamente inconveniente, mas o pior mesmo era a possibilidade de entrar num voo num país que tem índices anormais de acidentes aéreos. Já nos conformávamos com o voo mais tenso de nossas vidas quando a Naty teve a brilhante ideia de fugirmos de lá na calada da noite, afinal a greve só ficaria mais radical no dia seguinte. E os grevistas não iriam se manifestar depois do horário do expediente, afinal ninguém é de ferro e a novela das 8h não é coisa que se perca levianamente.

greve no Nepal

Grevistas no Nepal

Contratamos um taxi para percorrer os 150 quilômetros que separam Pokhara de Katmandu. É óbvio que o motorista, que iria transportar estrangeiros na calada da noite e antes de uma grande manifestação, sentiu o cheiro do medo (e dos dólares) e caprichou no preço. O que era justo, afinal ele mesmo não poderia voltar da capital até o fim da greve. Pagamos inacreditáveis R$ 40 por pessoa, o que não deixou ninguém mais pobre e provou que tudo no Nepal é barato, até uma fuga emergencial do país.

No meio do caminho, manifestantes com tochas gritavam palavras em nepali. Todos abriram passagem para nosso carro, que tinha um papel com o aviso “tourist only” afixado no vidro da frente. Não fomos parados e chegamos em segurança em Katmandu, mas aprendemos algumas coisas do episódio:

1) Não viaje sem antes conhecer a situação política do destino. Nós nem sabíamos da existência das greves quando desembarcamos lá, e isso, além de ser uma vergonha, não foi nada prudente.

2) Parafraseando o Guia do Mochileiro das Galáxias, “Não entre em Pânico”. A não ser que você tenha que entrar num avião questionável. Nessas horas todo medo é valido.

3) Visitar o Nepal é uma aventura, mesmo para quem não pretende escalar o Everest. O que não significa que você deva evitar o país, afinal aventuras sempre rendem boas histórias. E nós saímos todos ilesos de lá. Exceto talvez pelo motorista do ônibus, que não sei onde foi parar. Temo pelo pior: acho que o cara foi matriculado em aulas de direção.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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3 comments

Oi Rafael, tudo bom? Nesse exato momento estou num quarto de hotel em Kathmandu lendo este post, pois amanhã viajaremos para Pokhara! Bom, primeiramente parabéns pela qualidade do texto, simplesmente incrível, adoro o jeito que você escreve. Eu sigo vocês no face e lembrei que em algum momento tinha visto um post falando sobre as greves no Nepal e hoje, quando o dono da agência em que fechamos a viagem para Pokhara disse “Hoje a noite confirmo pra vocês se vocês sairão as 8h da manhã ou as 5h para fugir de protestos” pensei, chegou a hora de ler aquele post! hehehe Acho que tomamos uma sábia decisão de ir e voltar de “taxi”, um motorista particular… mas confesso que essa aventura de vocês é de dar inveja a qualquer viajante aventureiro! Novamente parabéns e obrigada por compartilhar dicas tão valiosas.

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Tive muita sorte pois fui para o Nepal no Diwali, e ninguém vai fazer manisfetação em pleno Natal Hindu, né mesmo? A cidade estava uma confusão enorme por causa da festa, mas só nos atrasou mas não causou pânico. O pacote asiático sempre vem com perrengue! No nosso terceiro dia de Índia meu marido sofreu um acidente e passamos o dia fazendo um tour no hospital. De Varanasi! Mas sobrevivemos e hoje damos risada da situação.

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