7 culturas com identidades de gênero não-binárias

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Se você ainda é da turma que acha que azul é cor de menino e rosa é cor de menina, e que o mundo é assim e as pessoas têm que parar de querer mudar, pense outra vez. Os papeis de gênero tais como conhecemos em nossa sociedade são construções que somente correspondem a uma forma de ver o mundo, encerrada em um espaço e tempo específico. Ao longo da História e até os dias de hoje, inúmeras sociedades romperam com o modelo binário de gênero que atribui papéis de acordo com o sexo biológico.

A ocorrência de sistemas de gênero não-binários é tão comum na humanidade que surgiu em todos os continentes e em todos os períodos históricos. São culturas que, se observadas de perto, mostram que a forma usada por nós para lidar com sexualidade, sexo e identidades é apenas uma entre as muitas possibilidades existentes e que nada é uma verdade absoluta neste mundo. Há culturas que reconhecem três, quarto e até cinco gêneros, cada um deles com diferentes papéis e contribuições sociais. Conheça agora algumas delas.

Leia também: O que é etnocentrismo e relativismo cultural

Mahu (Polinésia)

Mahu - Havaí - Gênero não binário

Na língua havaiana, “Kane” significa “masculino” e wahine “feminino”. Os antigos povos que construíram nesse isolado arquipélago do pacífico uma grande civilização, com idioma, cultura e filosofia próprias, no entanto, reconheciam que algumas pessoas não são apenas um ou apenas outro. Esses são os “Mahu”, uma identidade de gênero ambígua que incorpora características consideradas tanto masculinas quanto femininas pelos havaianos. E não entenda mal, não é que eles fossem um menino que queria ser menina ou uma menina que queria ser menino. Eles são os dois, tudo junto e misturado.

Tradicionalmente, os Mahu eram valorizados como cuidadores, curandeiros e guardiões dos valores e costumes.  Hoje, muito dessa cultura ancestral já se perdeu, mas ainda há movimentos no Havaí que se esforçam para preservar as tradições de seu povo e, entre elas, o reconhecimento social dos Mahu, embora nos dias de hoje o termo também seja usado para se referir aos transexuais. Se você sabe um pouco de inglês, tem um documentário legal sobre os Mahu nos dias de hoje lá no Youtube.

Quariwarmi (Império Inca)

Na América pré-colombiana, os Incas adoravam a Chuqui Chinchay, uma divindade que incorporava os gêneros masculino e feminino. Os xamãs que conduziam os rituais sagrados em honra a essa divindade pertenciam a um terceiro gênero, conhecido como Quariwarmi. Eles cultivavam um visual andrógeno como um sinal de que representavam um terceiro espaço que negociava entre o feminino e o masculino, o presente e o passado, os mortos e os vivos. Foram condenados como sodomitas com a chegada dos espanhóis.

Guevedoche (República Dominicana)

É raro que gêneros não-binários surjam a partir de critério biológicos, mas isso ocorreu na República Dominicana. Há um traço genético hereditário que faz com que bebês nasçam com gônadas masculinas, mas aparentem ter genitália externa feminina até a puberdade, quando se desenvolvem como garotos (genitália incluída). Como normalmente essas crianças foram criadas como meninas até mais ou menos os 12 anos, em vez de mudarem o gênero, os dominicanos acabam encaixando-as em um terceiro gênero, e a maior parte se identifica como Guevedoche (que significa “testículos aos 12”) ou machi-embra (macho-fêmea).

Two-Spirit (América do Norte)

Foto envelhecida de uma mulher sentada no chão realizando trabalho manual

Diversos povos originários da América do Norte reconhecem identidade de gênero não-binárias, conhecidas como Two Spirit (Dois Espíritos). A ideia é que em um só corpo habita ao mesmo tempo um espírito feminino e masculino.

A ideia era aplicada para pessoas que desempenhavam papeis sociais atribuídos a ambos os gêneros. Existe uma enorme diversidade de termos, papéis e identidades entre os povos nativos dos Estados Unidos e Canadá, mas é amplamente aceito entre os estudiosos que a grande maioria deles reconheciam um ou mais gêneros não-binários e a existência de pessoas com dois espíritos era algo corrente na maior parte das tribos.

Bissu (Indonésia)

Bissu - Indonesia

Maior grupo étnico do sul da Indonésia, os Bugi reconhecem não apenas duas ou três identidades de gênero, mas cinco. Além do Makkunrai (feminino) e Oroané (masculino), eles também têm o gênero calabai (um equivalente aproximado de homem trans), calalai (mais ou menos o que seria pra gente uma mulher trans) e bissu, que é algo como uma união de todos os gêneros.

É comum que pessoas interssexuais (aquilo que antes chamávamos de hermafroditas) sejam consideradas bissu, porém há diversos indivíduos com órgãos sexuais completamente femininos ou masculinos que se identificam com o gênero. Eles usam roupas e acessórios tradicionalmente associados tanto ao gênero masculino quanto feminino e possuem um importante papel na sociedade, em especial na condução de rituais religiosos. Em 1949, passaram a ser perseguidos por radicalistas islâmicos, porém há grupos que atuam no país na tentativa de proteger os direitos dos bissus.

Aravani (India)

Aravani - India - Generos não-binários

Foto: Shutterstock

A Índia é famosa por reconhecer judicialmente os hijra (equivalente aos nossos transexuais, travestis e eunucos) como terceiro gênero. Embora desde o domínio britânico sejam discriminados pela sociedade e acabem precisando recorrer à prostituição e mendicância para sobreviver, a tradição dos hijra é ancestral. Uma vertente dessa tradição, praticada no estado do Tamil Nadu, é a Aravani, pessoas que nascem homens, mas adotam papeis femininos em estágios bastante precoces de seu desenvolvimento. O nome significa noivas de Aravan, uma deidade hindu.

A tradição tem raíz no antigo livro Mahabharata, um clássico épico indiano e um dos textos sagrados mais importantes do hinduísmo. Em uma passagem, o texto conta que os Pandavas, filhos de Pandu, poderiam conquistar Kurukshetra se sacrificassem um homem perfeito entre eles. Aravan,  filho virgem de Pandav, se ofereceu para sacrifício. Seu único pedido foi que ele passasse uma noite como um homem casado.

Como nenhum rei queria oferecer uma de suas filhas em casamento a um homem que tinha os dias contados, Lord Krishna assumiu sua forma feminina e se casou com Aravan. A cada ano, durante a primeira lua cheia do mês Tamil (correspondente ao nosso abril/maio), os Aravanis se reúnem em Koovagam para celebrar esse mito. Eles se identificam como a forma feminina de Krishna.

Muxes (México)

“Nem homens, nem mulheres, tudo ao contrário”. É assim que se definem os Muxes y Nguiu’, indivíduos pertencentes ao terceiro gênero do povo Zapoteca, no istmo de Tehuantepec, no sudoeste do México. Os Muxes são homens que assumem uma identidade feminina sem necessariamente abrir mão da masculina. É considerada uma condição de nascença, o que quer dizer que os zapotecas acreditam que a pessoa não tem escolha em se tornar muxe, é algo que carrega com ela. Eles se dedicam a tarefas como o bordado, decoração de festas, cerâmica e comércio e em algumas famílias, o nascimento de um muxe é considerado uma benção. Costumam se relacionar com homens que se definem como heterossexuais. Quer saber mais sobre eles? Durante o tempo que passei no México, conheci um grupo de muxes. Para saber o que eu aprendi, leia o post “A terceira via: a luta diária dos muxes e a fluidez de gênero no México“.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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21 comments

Boa tarde, tudo bem?
Estou fazendo uma pesquisa referente a população transexual e gostei muito do conteúdo dessa matéria.
Gostaria de saber quais referencias bibliográficas foi usadas para a escrita, para eu poder usar de base também.

Aguardo retorno.

Atenciosamente,

Larissa Caroline

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Artigo interessante, mas as brigas nos comentários entristece qualquer pessoa. Independente de ser certo ou errado, científico ou não científico, sabemos que existem pessoas ou grupos que não se identificam com os sexos masculino e feminino. Ao invés de ficarmos tentando pensar em minorias ou maiorias deveríamos pensar em seres humanos. A questão sexual deveria ser algo pessoal e não algo a se externar tanto falando de heterossexualismo como homossexualismo como qualquer outra denominação. Devemos lembrar que informação não contamina ninguém, porém exemplos se copiam e muitas crianças e adolescentes que ainda não estão maduros entram em contato com pessoas de diferentes opções sexuais, acabam por copiar esses exemplos.
Infelizmente vários lares são destruídos por essa grande divergência entre os diversos sexos e opções sexuais que existem na história humana. Ambos os lados sofrem com essas divergências, temos pais heterossexuais que não aceitam seus filhos homossexuais e, também, os pais homossexuais que não aceitam seus filhos heterossexuais.
Seria mais prático se voltássemos a viver em cidades estados ou tribos e cada um ficasse onde fosse mais conveniente.

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Tá, mas, porque o fato de já terem havido essas exceções, em diversas épocas da humanidade, caracteriza que neste nosso momento histórico elas(as exceções) sejam válidas??
Concordo que se torne necessário a indivíduos que apresentem divergências do corriqueiro, do usual, do “mais comum”, terem direito à manifestação, escolha, e vivência dessa divergência, mas isso não quer dizer que o “não usual” deva se tornar “corriqueiro”. Minorias, continuam sendo minorias. Têm, por dever de humanidade e de igualdade, direito de respeito às suas escolhas, mas não há que se criar a imperiosa necessidade de que eu seja obrigado a aceitar como “normal” isso. Podemos discutir, avaliar, argumentar e contra-argumentar, porém, não podemos e nem devemos a qualquer indivíduo negar o direito de dizer “Eu não concordo com isso”, incutindo-lhe a pecha de “algo” fóbico ou “preconceituoso”.
Se as diferenças se respeitarem, podem viver em harmonia, desde que não haja imposição de nenhum dos lados, mas temos que reconhecer que o que é mais comum, é o “corriqueiro”, e o que não é, é a “exceção”.
Ponto.

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O texto é oportuno e muito bem colocado.

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Notícias e informações muito importantes, pois muita gente acha que essa discussão toda de gênero veio agora e que somos a turma do mimimi. Bom saber que houve, há e sempre haverá. Parabéns pelo post, ótimo, ótimo, ótimo.

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A sua argumentação é quase um sofismo.
Pois, enriquecer-se através de meios violentos também é algo que foi praticado, e em alguns casos ainda o é, por diversas camadas sociais por diversos grupos humanos ao longo da história. É só ver o modo de pensar e agir de nosso políticos, por exemplo. E nem por isto, hoje, é considerado um discurso válido em nossa sociedade. Embora, já foi válido no passado. Pois a apropriação da res pública, o botim da pirataria ou o espólio de guerra, já foram considerados meios aceitáveis de se enriquecer. Hoje não é mais.
A pedofilia já foi considerada “natural” e aceitável ao longo da história de diversos povos humanos. E não é preciso irmos longe, é só lembrarmos e pesquisarmos as idades em nossas avós ou bisavós se casaram. Ou lermos livros como “O Cortiço” ou “Lucíola”, por exemplo. E, na Grécia antiga, não havia grandes diferenças entre o pedófilo e o pedagogo. Hoje, ao menos em grande parte do Ocidente, isto não é mais aceito socialmente, e até, em alguns lugares, considerado um crime.
Portanto, o fato de terem existido ou de existirem camadas sociais minoritárias que adotem comportamento distinto da maioria dos indivíduos de uma sociedade não concede uma “legitimidade histórica” à ideologia do gênero. Esta aliás, é sim, algo contemporâneo na sociedade em que vivemos.
Caso contrário, esta forma de raciocínio que você apresentou, dá margem à legitimidade de discursos hoje tidos como incorretos, como os que eu citei acima.

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O fato de existirem ou de terem existido culturas que admitiam tais práticas nada compravam se são ou estavam corretas ou melhor adaptadas ao meio. Tanto é verdade que os exemplos citados são de culturas que foram incapazes de manter a própria independência política, e foram dominadas por outros povos. E que hoje, possuem pouca importância na história da humanidade.
E tampouco são exemplos de liderança global ou de desenvolvimento econômico ou humano.
E, inspirando-se em Marx Weber, a pergunta que cabe é: qual cultura e quais valores foram suficientemente fortes para dominar e liderar o desenvolvimento da humanidade? A resposta mais obvia e simples estaria na análise do desenvolvimento histórico da humanidade, a nos atuais indicadores do PIB (Produto Interno Bruto) e no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) que colocam como mais desenvolvidos os países de cultura ocidental judaico-cristão (Europa, EUA, Comunidade Britânica) e de cultura budista/confucionismo (Japão e Coréia do Sul ,e, China). O certo é que, o que incentivou o grande desenvolvimento destes países não foram as dúvidas ou o relativismo de valores constantes na “teoria e da ideologia de gênero” ou do “politicamente correto”. Aliás, mais certo ainda, é que possivelmente a perda dos valores históricos dos países de cultura européia e do sudeste asiático, podem colaborar para a perda do desenvolvimento de tais países, como já vemos na perda de importância e da liderança política da Europa de hoje, se comparada ao que já foi até a segunda metade do século XX.

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Adorei o texto
Sempre gostei das reflexões de vcs (além dos textos sobre viagens q são ótimos) e fiquei feliz de ver representatividade LGBT
Parabéns ????

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Que história incrível, obrigada por dividir conosco. Eu como estudante de turismo, e apaixonada por Historia , viajo muito com vc. Muito obrigada.

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Pelo que entendi a maioria dessas sociedades foram dizimadas pelas sociedades ditas “civilizadas”. Ler o texto inteiro e principalmente prestar atenção ao que está escrito, faz bem.

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Deve ser por isso que essas sociedades sobreviveram, prosperaram e estão aí super desenvolvidas… oh wait.

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José,
Boa argumentação.

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