Congonhas, a cidade dos profetas de pedra do Aleijadinho

Quando o português Feliciano Mendes adoeceu, talvez por conta dos anos de trabalho nas minas da região de Ouro Preto, nasceu um ermitão. Querendo evitar a morte, Feliciano abraçou a fé e ergueu um oratório no alto do Morro Maranhão, em Congonhas do Campo, onde ele mesmo foi viver. Ele doou sua fortuna para a construção de uma igreja, que foi autorizada pelo bispo e pelo Rei de Portugal.

Enquanto o templo era erguido – com a ajuda e, garantem alguns, projetos do próprio ermitão -, ele morreu, deixando o projeto para outros fiéis. Feliciano Mendes nunca soube disso, mas aquele santuário não só ficou pronto, como também se tornou um marco no barroco brasileiro.

Séculos depois, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (MG), foi declarado Patrimônio Mundial pela Unesco. E permanece como um local de peregrinação, atraindo, todo mês de setembro, cerca de 150 mil fiéis.

O responsável por tanta fama é outro mineiro: Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho, que projetou os 12 profetas em pedra-sabão que fizeram a fama mundial do Santuário.

Além disso, a oficina de Aleijadinho também recebeu a encomenda de 66 estátuas de madeira que foram colocadas em seis capelas anexas ao templo central – são as construções quadradas, subindo a ladeira, na foto acima. Elas contam a história dos passos da paixão de Cristo.

Congonhas, MG: como chegar

Congonhas está a apenas 80 km de Belo Horizonte – cerca de 1h20 de ônibus, com a Viação Sandra, que faz várias viagens diárias entre a capital dos mineiros e a dos profetas. O deslocamento de carro também é fácil, pela BR 040.

Por falar nisso, já deixo a dica de uma vez: Congonhas combina com Tiradentes e São João del-Rei. Além do templo e de um museu muito bom, não há muito o que fazer na cidade e até os restaurantes ao redor do Santuário deixam a desejar.

O ônibus que vai até São João del-Rei para em Congonhas, o que torna o roteiro simples mesmo para o viajante não motorizado: deixe cedo Belo Horizonte, passe parte do dia em Congonhas e siga no final de tarde para São João del-Rei. Um táxi da rodoviária de Congonhas até o Santuário dos profetas custa cerca de R$ 25.

Quem vai de carro faz o roteiro ainda mais facilmente e não é complicado juntar Congonhas também com Ouro Preto, Mariana ou mesmo Inhotim. Mas voltemos a falar dos profetas.

O que fazer em Congonhas (MG): pontos turísticos

Os profetas do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos

A Igreja em si não é muito diferente de tantas outras que existem nas cidades mineiras. O grande destaque do Santuário está no adro, a área ao redor do templo.

São 12 estátuas feitas em pedra-sabão e que têm as marcas da genialidade de Aleijadinho. Elas representam 12 profetas. E não confunda com os apóstolos de Cristo – os profetas retratados por Aleijadinho são os do Antigo Testamento e viveram séculos antes de Jesus.

A entrada do adro é vigiada por dois dos mais importantes: Jeremias e Isaías, que, entre outras coisas, profetizaram a queda de Jerusalém e o exílio dos judeus em Babilônia, segundo a doutrina judaico-cristã. Em seguida você vai se deparar com Baruque, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Habacuque, Jonas e Naum.

A obra-prima do conjunto é o profeta Daniel, retratado perto de um leão. Todos os profetas têm marcas que os identificam com suas histórias. Jonas e a baleia, por exemplo.

Por conta da poluição e de vândalos, os profetas sofreram com o passar dos séculos. O conjunto passa por obras de revitalização constantes e já até houve quem defendesse que os originais fossem enviados para um museu, com a substituição das obras do adro por réplicas – tipo o que foi feito em Florença, com suas estátuas ao ar livre. A medida, no entanto, não agradou a população local e os profetas continuam em seus lugares.

Os Passos da Paixão de Cristo

Construídas depois da Igreja, as seis capelas que formam os Passos da Paixão de Cristo também tiveram a contribuição de Aleijadinho, que trabalhou durante três anos na elaboração das 66 peças distribuídas pelas capelas. Mestre Ataíde, outro nome supremo da arte barroca brasileira, pintou as obras, assim como Francisco Xavier Carneiro.

“Vá para a lá de baixo e suba o morro em zigue-zague”, disse o taxista que me levou ao Santuário. A dica dele é a mesma de qualquer guia turístico. As capelas têm uma sequência correta e recontam os últimos passos de Jesus Cristo. Para isso, é preciso subir o morro, num modelo de peregrinação que guarda semelhanças com várias igrejas europeias, como as de Matosinhos e de Braga, em Portugal.

Por falar nisso, uma explicação rápida: a devoção ao Bom Jesus de Matosinhos começou em Portugal, na região do Porto, quando uma imagem de Jesus crucificado foi achada na praia. Os fiéis acreditavam que aquela escultura tinha sido feita por Nicodemos, judeu que viu a crucificação de Jesus e que teria atirado a imagem no mar para evitar a perseguição religiosa.

Vamos subir o monte? A Primeira Capela dos Passos, no pé do morro, mostra A Última Ceia. Preste atenção em Judas, com uma bolsa na mão, e nos outros apóstolos, surpresos com o momento em que Jesus revela que será traído.

A segunda capela (lembre-se: suba em zigue-zaque) é a Agonia no Horto das Oliveiras. Jesus, angustiado e suando sangue, conversa com um anjo (“afasta de mim este cálice”) enquanto dois apóstolos, João e Tiago, dormem.

Já a terceira capela mostra a prisão de Jesus. Repare em Pedro, à direita de Cristo, com a espada na mão, pouco depois de arrancar a orelha do soldado que tentava prender Jesus. Orelha que é mostrada na mão de Cristo – segundo a Bíblia, Jesus recolocou milagrosamente a orelha em seu lugar.

Chegou na quarta capela? Então você vai reparar que essa tem duas cenas. A primeira mostra Jesus sendo zombado e açoitado pelos soldados; na segunda ele está sentado e é tratado ironicamente como o Rei dos Judeus, usando uma coroa de espinhos, um manto vermelho e uma vara, que simulava um cetro.

Mais uma subida e você estará na quinta capela, que mostra Jesus Carregando a Cruz. Ele é seguido por duas mulheres chorando. Além deles, a cena tem soldados com pedras nas mãos, prontas para serem arremessadas, e até uma criança, que carrega um prego que será usado na crucificação. Que ocorre na última capela, onde Jesus está no chão, e também aparecem os dois ladrões que seriam crucificados ao seu redor e até soldados jogando dados, apostando para ver quem ficaria com as roupas de Jesus.

O fim do zigue-zaque leva ao adro da igreja e aos profetas. Todo conjunto é lindo e os jardins foram parcialmente projetados por Burle Marx, que foi contratado para repensar o paisagismo do morro e entregou o projeto em 1974.

Vista de duas capelas dos Passos a partir do Adro da Igreja

Depois da Igreja, aproveite para conhecer as lojas de artesanato ao redor do templo. E não deixe de visitar também o Museu de Congonhas, inaugurado no final de 2015 e que fica colado com o Santuário e conta a história dele. O museu é completíssimo e moderno – vale a pena passar lá antes de conhecer o conjunto. Abre de terça a domingo, de 9h às 17h – às quartas é de 13h às 21h.

Jubileu do Bom Senhor Jesus de Matosinhos

Há 240 anos, em todo mês de setembro Congonhas recebe uma das maiores peregrinações religiosas do Brasil. É o Jubileu do Bom Senhor Jesus de Matosinhos, que atrai cerca de 150 mil participantes por ano.

A festa, que ocorre entre 7 e 14 de setembro, começou em 1760. E já teve 239 edições: em duas ocasiões a festividade foi cancelada, a última em 2020, por conta da pandemia do coronavírus. Muitos fiéis vêm de longe, inclusive de outros estados.

O Jubileu foi tema de uma série de crônicas do João do Rio, escritor e jornalista do começo do século 20, e publicadas em 1907 na Gazeta de Notícias. Para quem quiser conhecer mais sobre a celebração – com direito a viagem no tempo -, uma dica é o livro Dias de Milagre, que vai ser enviado aos leitores do Grandes Viajantes, o Clube que Assinaturas do 360meridianos, focado em literatura de viagem. Saiba mais aqui.

Que impressão senti eu? Fosse do meu estado de nervos, aguçados por aquelas horas de travessia pelo fervor religioso, chicoteados pelos desencontrados sentimentos da multidão que cada vez mais me empolga, fosse pelo súbito deparar de uma sala escura com todos aqueles bonecos cheios de histórias, o efeito foi violento, foi extra real.

João do Rio, em Dias de Milagre

Os ex-votos e a Sala dos Milagres

A Sala dos Milagres fica do lado esquerdo da Igreja. Construída no século 19, essa área é um testemunho da fé dos incontáveis fiéis que já passaram por Congonhas. São os ex-votos, expressão que vem do latim e significa algo como “por uma promessa realizada”. O costume de dar graças existiu em diversas culturas, antes mesmo do cristianismo – há registros de ex-votos até em Roma, no Egito e na Grécia.

Trazido para a América Latina pelos conquistadores, os ex-votos são uma tradição católica. Geralmente são quadros, pintados de forma amadora, que contam a história de algum milagre realizado: uma operação bem sucedida, a bala de um revólver que não atingiu o alvo, a superação de uma doença… são quase histórias em quadrinhos nas paredes da igreja.

A cena sempre retrata a situação enfrentada pelo fiel e que exigiu a intermediação divina. Uma legenda, abaixo da pintura, costuma explicá-la e conter os nomes dos fiéis que tiveram o pedido atendido e que mandaram fazer a oferenda em forma de arte. E em geral os quadros são pequenos, de material barato e pintados na horizontal.

Em 1907, João do Rio também escreveu sobre a Sala dos Milagres. E ficou impressionado com os ex-votos.

A sala não devia ser chamada ‘dos milagres’, mas dos ‘recibos ilustrados’. Sim! Dos recibos ilustrados. Longe de mim, diante da pletora secular daquela fé, o mau gosto de uma ironia. Mas é que, desde o começo da igreja, há mais de um século, todo homem que viu realizado o seu pedido ao Senhor Bom Jesus de Congonhas, julgou-se na obrigação de mandar um quadro reproduzindo a cena da promessa, e a própria fotografia.

João do Rio, em Dias de Milagre

Nas paredes do templo também estão pernas, braços e outras partes de corpos, feitos de cera, que lembram milagres realizados. São outras promessas pagas pelos fiéis.

Como João do Rio nota, muitos dos milagres não são extraordinários, mas coisas banais. “É ter a doce sensação da sua (de Deus) proteção constante, é tornar o milagre, não um fato anormal, mas a própria essência da vida”, conclui o escritor.

Os profetas de Aleijadinho: belos ou feios?

Hoje é consenso: os profetas feitos em pedra-sabão por Aleijadinho são uma das maiores representações da arte barroca brasileira e um patrimônio da humanidade. Mas não foi sempre assim. Por séculos, muitos dos viajantes que passaram por Congonhas acharam os profetas feios.

Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês que esteve no Brasil perto da Independência, fez questão de deixar claro que os profetas “não são obras-primas”, mas até destacou que o artista tinha um certo talento. João do Rio, em 1907, disse que algumas das obras sacras de Aleijadinho eram “feias demais”. Um amigo, que guiava o jornalista na viagem, concordou: “é uma opinião geral”.

O próprio Aleijadinho não era das figuras mais conhecidas no país. Tudo isso começou a mudar a partir de 1924, quando os modernistas, em suas caravanas que redescobriram o Brasil, passaram pelas cidades históricas mineiras, entre elas Congonhas. Em 1928, Mário de Andrade publicou o texto O Aleijadinho, em que enaltecia o trabalho do artista e criticava os europeus que não viam a genialidade dele.

E Carlos Drummond de Andrade, que morava em Belo Horizonte e conheceu os modernistas paulistas quando eles passaram pela capital mineira, mais tarde escreveu:

“Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
Era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto, Sabará, Congonhas,
era uma vez muitas cidades,
e um Aleijadinho era uma vez.”

Carlos Drummond de Andrade

Quer ler mais sobre Congonhas e o Jubileu?

O Grandes Viajantes é um clube de assinaturas focado em literatura de viagem. Nele, os assinantes recebem, todo mês, uma versão digital, atualizada e linda de um conto, crônica ou outra produção literária rara.

Para setembro de 2020, o livro do clube é Dias de Milagre, em que João do Rio conta sua viagem para o Jubileu de Congonhas. A assinatura custa apenas R$ 9. Saiba mais aqui.

Onde ficar em Congonhas, MG: hotéis e pousadas

Você consegue visitar o Santuário e o Museu em quatro ou cinco horas, sem pressa. Por isso, Congonhas é um ótimo esquema para bate-volta a partir de BH ou para encaixar num roteiro maior, com Tiradentes ou Ouro Preto, como eu expliquei no começo do texto.

Mas, caso você queira passar algumas noites por lá, há opções de hotéis. O Booking lista 22 alternativas, entre hotéis e pousadas, na cidade. A Pousada Casarão da Pedra, a Pousada Circuito dos Inconfidentes e o H2 Hotel são algumas das alternativas mais bem avaliadas.

Veja aqui mais opções de hospedagem em Congonhas

Onde ficar em São João del-Rei

Pousada dos Sinos é uma das mais procuradas. É uma hospedagem simples, mas com bom custo/benefício, que está perto da Igreja de São Francisco de Assis. Uma opção um pouco mais confortável é a a Pousada Villa Magnolia.

Onde ficar em Tiradentes

Em Tiradentes, já fiquei na Pousada Villetto, que é simples, mas funciona num casarão colonial e é muito bem localizada.

Pousada Mãe D’Água é outra boa opção. E uma dica: não cometa o erro de passar apenas uma ou duas horas em São João del-Rei. O centro histórico da cidade é grande e merece pelo menos um dia de passeio.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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