De todas as fotografias que tirei no México, a mais impactante ficou gravada somente na minha memória. Era a imagem de dois homens completamente vestidos de preto, com os rostos encobertos pelo passa-montanhas e desaparecendo entre a densa névoa que se fechou sobre nós nos portões do território zapatista de Oventic, no estado mexicano de Chiapas.
Minutos antes, conversávamos com eles sobre o propósito de nossa visita. Queríamos gravar com a Junta de Buen Gobierno, o comitê formado pelas autoridades locais, um vídeo no qual explicassem a importância da educação em língua indígena para o Proyecto Wakaya. Depois de anotarem nossos nomes, documentos e pedido, os dois homens se afastaram do portão e desapareceram na fria parede branca formada pela neblina.
Nos restava esperar e, para fugir do frio, buscamos abrigo no pequeno café ao lado da entrada, que era administrado pela comunidade. O lugar também funcionava como loja de souvenires e como uma mercearia com alguns produtos de primeira necessidade. Todo o dinheiro arrecadado ali e nas outras lojas de Oventic é revertido para a Junta e para as comunidades autônomas administradas por ela. Em frente ao café, uma placa avisava: “Você está em território zapatista. Aqui o povo manda e o governo obedece”.
Aos poucos, pequenos grupos de turistas chegam e se aglutinam no portão. Seja qual for o motivo da visita, ninguém ultrapassa aquelas barras de ferro sem autorização prévia. Medida de segurança contra grupos paramilitares que por muitos anos perseguem os membros do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZNL) e contra o próprio governo do Estado do México, mais conhecido por aquelas bandas como mal gobierno. Quando os homens encapuzados retornam, dizem que não poderiam atender nosso pedido de filmagem, mas que estariam felizes em oferecer o passeio guiado pelo interior do caracol, junto com os outros visitantes.
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Quando finalmente cruzamos o portão, um dos encapuzados se desculpa por nos haver feito esperar tanto tempo no frio. De seu rosto, só conseguíamos ver os marcantes olhos castanhos e um pedacinho de pele morena. O passa-montanhas, ou capuz, é acessório obrigatório entre os que trabalham no caracol. Não apenas por torná-los irreconhecíveis para os inimigos, mas também porque já se tornou um símbolo do movimento: “…sublinha que o governo não olhava para os indígenas quando se mostravam e os vê agora que se escondem”, como afirmam os próprios membros o EZNL.
“Hoje está tudo meio confuso porque estamos trocando de turno. Trabalhamos sete dias e, no domingo, passamos o serviço para outro grupo”, justifica o encapuzado. É assim que as coisas funcionam ali: todo o serviço relacionado à comunidade é rotativo e voluntário, incluindo os cargos de liderança. Um caracol, como o de Oventic, é a região organizativa e administrativa das comunidades ou municípios zapatistas localizadas em seus arredores. É nele que fica a escola, o hospital, a assembleia popular e as reuniões da Junta de Buen Gobierno, que é formada por representantes de cada um dos municípios. Ao todo, são cinco caracóis espalhados pelo estado de Chiapas, que administram os 27 Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas (MARZ).
O movimento teve início em 1994, quando camponeses pertencentes a diferentes etnias indígenas do sul do México anunciaram a criação do EZNL. Com os rostos cobertos e armas nas mãos, eles subiram as montanhas de Chiapas e declararam guerra ao governo com um grito de “basta ya!”. Inspirados pela luta de Emiliano Zapata, líder da Revolução Mexicana de 1910, eles se opunham à criação da NAFTA (acordo de livre comércio entre Estados Unidos, México e Canadá) e ao neoliberalismo e exigiam o direito a uma gestão autônoma e democrática do território indígena que incluíssem os próprios membros das comunidades nas decisões, além da partilha da terra e da colheita. Após anos de negociações e disputas com o governo – que chegou a prometer, em 1996, um acordo nunca posto em prática para outorgar direitos sobre autonomia, justiça e igualdade aos povos indígenas. Os zapatistas abriram mão da luta armada em 2005 para se dedicarem à luta política, baseada na resistência pacífica e na rebeldia.
Visitar uma comunidade zapatista é, em grande medida, pisar em uma utopia. Tudo ali é pensado para o coletivo e o bem comum. Impressiona ver como eles mantêm, sozinhos, uma sociedade funcional e autônoma. Mulheres ocupam os cargos de liderança na mesma proporção que os homens. Quando, em 2017, resolveram lançar a candidata Marichuy à presidência do México como parte de seu projeto de articulação política, o fato dela ser mulher foi determinante, uma vez que sua plataforma poderia assim visibilizar também as problemáticas das mulheres e meninas indígenas.
A economia é em grande parte baseada na subsistência. O pouco dinheiro que entra vem da venda de material informativo e artesanal para turistas e é de propriedade comum. Os membros da comunidade não podem aceitar ajuda do governo do México, uma vez que esse tipo de benefício é visto como uma tentativa da presidência de comprá-los.
A escola, o hospital e todas as outras instituições são mantidas pelos próprios indígenas de forma alternativa ao governo central e, em alguns casos, com ajuda de civis estrangeiros que simpatizam com a causa. Mesmo quem quer ajudar precisa levar sua ideia à Junta do Bom Governo, que vai avaliar coletivamente se aquilo é mesmo necessário e em qual comunidade o benefício será melhor aproveitado.
Mas nem tudo é perfeito. Grupos paramilitares ainda vigiam as fronteiras das terras indígenas e a ameaça de um novo ataque está sempre no ar. Prisões em massa de zapatistas e simpatizantes do movimento, sem provas ou acusações formais, ainda ocorrem nas comunidades até os dias de hoje. Projetos de multinacionais ameaçam a autonomia sobre o território indígena. Um sinal de que a luta ainda está longe de acabar.
Dos cinco caracóis zapatistas em Chiapas, Oventic é o único que recebe a visita de turistas. Tanto por estar mais próximo e ter fácil acesso desde San Cristóbal de las Casas, quanto porque é considerado território seguro para esse tipo de atividade. Para chegar lá, é preciso pegar um ônibus no mercado de Santo Domingo, no centro de San Cris. Quando estiver por ali, pergunte pelos ônibus que levam ao caracol. Talvez você precise esperar um pouco até que o veículo encha. Se preferir, também dá para pegar um táxi ali por cerca de 40 pesos mexicanos por pessoa (R$ 8).
O trajeto dura cerca de uma hora entre a selva e as curvas sinuosas da montanha. Tanto o táxi quanto o ônibus vão te deixar na entrada do caracol. Em uma guarita próxima ao portão você vai encontrar duas guardas com passa-montanhas. Aproxime-se sem receio. Elas estão acostumadas com as visitas e não mordem. Diga que você se interessa pelo movimento e gostaria de ver o caracol de perto. Elas vão chamar as pessoas que estão encarregadas no dia, que vão anotar seus dados em um caderno e pedir para que você aguarde no café. A aceitação de turistas no caracol depende muito de questões internas. Ou seja, se eles estão em condições de dispor desse tempo e atenção para você ou não.
Se tudo der certo, sua entrada será autorizada e você vai percorrer o caracol com um guia zapatista. Aí depende da sua sorte. O meu era caladão, mas o do grupo que chegou com a gente interagia mais. Mesmo se você não der tanta sorte, não tenha medo de fazer perguntas e leve em consideração que alguns deles têm o espanhol bastante precário, já que nas comunidades costumam se comunicar em sua língua nativa. Você pode tirar fotos dentro do caracol, mas é bom evitar imagens das pessoas, a menos que elas te deem autorização. Não deixe de comprar alguma lembrança nas lojinhas para ajudar a causa.
Na volta, você terá que esperar do lado de fora até passar um táxi, que vai te levar até a praça de San Andrés de Larraiznar. De lá saem vans a cada poucos minutos minutos até o centro de San Cris.
Desde 1995, um ano após o levantamento armado, as comunidades indígenas de Chiapas lançaram uma convocatória nacional e internacional para garantir uma forte presença civil na região. O objetivo é que isso iniba a ação de grupos paramilitares e o desrespeito aos direitos humanos por parte do governo, dada a forte repercussão nacional e internacional que o episódio geraria.
Na prática, essa é a experiência mais imersiva e completa que um estrangeiro pode ter dentro de um caracol zapatista. O programa é organizado pelo Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas, pode durar uma semana ou 15 dias e consiste em passar esse tempo dentro da comunidade. Em algumas delas, você vai simplesmente estar ali e interagir com os indígenas, aprender sobre o modo de vida deles e a organização comunal. Em outras, será pedido que você passe algumas horas por dia na guarita, tomando nota de qualquer atividade próxima.
Para se tornar brigadista, é preciso primeiro fazer uma oficina preparatória que vai te ajudar a entender o seu papel ali, bem como a história do movimento e as possíveis diferenças culturais que você venha a enfrentar. Eu fiz a oficina em San Cristóbal de las Casas, com dois espanhóis que estavam ali de passagem e costumavam lecionar o curso no País Basco, mas não cheguei a subir às comunidades porque não tinha tempo. Não encontrei referência a esse tipo de oficina sendo ministrada no Brasil, mas nesse link você tem um banco com todas as organizações com que o FrayBa trabalha. Além do aval recebido na oficina, você também precisa ser fluente em espanhol e ser maior de 18 anos para participar. Caso tenha interesse, aconselho a entrar em contato direto com eles pelo email bricos@frayba.org.mx.
Os brigadistas só são enviados para comunidades que estejam em situações estáveis e, ao menor sinal de que as coisas vão ficar feias, são evacuados dali. Por isso, não precisa ter medo, você não será enviado para uma terra de ninguém. É preciso levar comida e água para todo o tempo de permanência, além de livros e outras formas de entretenimento offline. Se quiser saber mais sobre como é a experiência, leia dois relatos de amigos que passaram por ela aqui e aqui.
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Naty, que imersão notável! Respirei fundo e não conseguia parar de ler. Você conseguiu dedilhar em palavras a transcedencia dessa experiência. Bravo pelo relato!
Oi Liege! Muito obrigada pelo comentário! Fico feliz que tenha gostado do texto e da experiência
Não conhecia a história desse movimento (uma pessoa muito querida me contou e fiquei curioso).
É uma visão de sociedade completamente diferente da que temos hoje onde o individualidade está acima de tudo, bem utópica e contestadora.
Essas fotos me dão calafrios, um misto de melancolia e guerra fria, admiração total pelo texto e pela mente que o escreveu.
Olá Natália,
Estive com minha esposa em Oventic em outubro de 2019. Todas as suas indicações e informações permanecem atualizadas. Fomos recebidos gentilmente, da exata forma que você descreveu. Nosso guia evitou responder muitas perguntas, mas andamos por todo espaço que funciona como sede da administração da “Junta do Bom Governo” e também possui escola, hospital (com ambulância) e algumas oficinas de produção. Qualquer um que sonha com um mundo melhor, vai gostar de conhecer a experiência e a proposta dos (neo)zapatistas. Mas é importante pesquisar antes, pois lá mesmo eles preferem se manter reservados. Sugiro o seguinte site:
https://enlacezapatista.ezln.org.mx/
Muito obrigado por seu post e suas dicas!
Olá José Ricardo,
Fico muito feliz que minhas dicas ainda sejam úteis e que vocês tenham conseguido viver essa experiência que para mim é única. Obrigada pelo link e por compartilhar sua visão!
Abraços!
Adorei, muito obrigada por esta história e o título está perfeito!
Elda, fico feliz que tenha gostado! :)
Cara Natália, parabéns pelo post, o relato está muito esclarecedor!
Minha esposa e eu vamos a San Cris em novembro e gostaríamos de conhecer o caracol de Oventic.
Escrevo para lhe perguntar (apenas para confirmar) se basta irmos direto em qualquer dia da semana ou se é necessário fazer alguma espécie de reserva ou marcação prévia.
Muito grato!
Zé Ricardo
Olá José, sim, basta ir lá direto, não há nenhum sistema de reservas e é como eu disse no post, a entrada não é garantida. Depende muito se eles têm disponibilidade de acompanhar os visitantes ou não. Diga que tem interesse em conhecer melhor a organização do caracol. Espero que você consiga conhecer, é uma experiência e tanto.
Abraços!
Muito bacana, o post. Parabéns!
Obrigada, Salomão! :)
Artigo sensacional!!! Parabéns pelo relato.
Obrigada, Roberta!