Um segredo em ruínas chamado São Miguel das Missões

Para contar a história de São Miguel das Missões, é preciso voltar ao dia em que Sepé Tiaraju se preparou para a Batalha de Caiboaté. Naquela manhã, é provável que o índio soubesse que não voltaria para casa. Até porque a casa – a Missão Jesuíta de São Miguel Arcanjo – havia sido tomada pelos portugueses, num capítulo muitas vezes esquecido da história brasileira.

Entre 1750 e 1756 foram travadas as Guerras Guaraníticas, que colocaram índios guaranis contra tropas portuguesas e espanholas, que lutaram juntas para tomar as terras que hoje fazem parte do Rio Grande do Sul. Na batalha final, em que morreu Sepé Tiaraju – líder dos guaranis e que virou um mito durante e após os conflitos – também perderam a vida mais 1500 índios, um massacre testemunhado pelas terras do atual município de São Gabriel, onde até hoje uma grande cruz relembra as mortes no campo de batalha.

Antes de entender como o conflito começou – e por que você deveria visitar essa parte do Rio Grande do Sul, declarada Patrimônio Mundial pela Unesco -, é preciso voltar ainda mais na história. As Missões eram iniciativas religiosas comandas pelos jesuítas, que desembarcaram no Brasil com o objetivo de levar o cristianismo para os índios. Sete Missões foram criadas no atual estado do Rio Grande do Sul, que na época fazia parte dos domínios da Espanha (quem aí se lembra do Tratado das Tordesilhas?).

Catequizados, os índios passaram a viver em povoados, onde funcionava o que para alguns pesquisadores foi um modelo de socialismo religioso. Uma dessas aldeias era a de São Miguel, que chegou a ter, em seu auge, mais de oito mil moradores – número um pouco maior que a população atual da cidade. São Francisco de Borja, São Nicolau, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio eram as outras missões que ficavam no atual estado do Rio Grande do Sul, mas existiam numerosas comunidades de guaranis e jesuítas nos atuais territórios da Argentina e do Paraguai.

Até que Portugal e Espanha resolveram dividir novamente a América do Sul, no Tratado de Madrid, assinado em 1750. Esse acordo, que reconhecia o avanço lusitano para além das terras anteriormente determinadas pelo Tratado de Tordesilhas, também teve uma página fundamental, mais ao sul: Colonia do Sacramento, cidade que hoje fica no Uruguai, mas que foi fundada e era controlada por portugueses, foi trocada pelo território que hoje é o Rio Grande do Sul, na época parte dos domínios espanhóis.

O interesse dos espanhóis era claro, já que Colonia do Sacramento tinha posição estratégica na bacia do Prata, funcionando como porto e local de grande contrabando. Já os portugueses queriam, além de um território contínuo, que estava colado aos seus outros domínios, os rebanhos de gado que viviam naquelas terras, os maiores do continente. Foi assim que os índios, que eram livres debaixo do governo espanhol, receberam a ordem de sair do território que agora era português.

A recusa, óbvia, levou à guerra. Os índios conseguiram algumas vitórias importantes nos anos iniciais, até que Portugal e Espanha resolveram unir exércitos para acabar com o confronto. As tropas espanholas marcharam de Montevidéu, enquanto os soldados portugueses partiram de São Paulo, rota tradicional dos bandeirantes, que há décadas iam até as missões na tentativa de escravizar índios e capturar gado. O confronto acabou no massacre de Caiboaté, em que morreu o índio Sepé e seu exército, esmagado por forças maiores e mais bem equipadas.

As Guerras Guaraníticas serviram de pretexto para a expulsão da Companhia de Jesus do território português, já que a coroa acusou os jesuítas de inflarem o movimento dos índios e tentarem criar “um estado dentro de um estado”, estimulando conflitos com bandeirantes e tomando o lado de índios em confrontos com a Coroa Portuguesa. Anos mais tarde, a ordem foi proibida pelo Papa Clemente 14, medida revista em outro papado. Foi só com Francisco que os jesuítas fizeram seu primeiro papa.

Já as Missões foram, pouco a pouco, transformadas em ruínas. A de São Miguel chegou a ser habitada após a vitória dos colonizadores, mas os anos ajudaram a derrubar paredes e transformar tudo em escombros – a catedral foi danificada seriamente por raios pelo menos duas vezes. Foi só no século 20, sob comando do arquiteto Lúcio Costa, o mesmo que fez o Plano Diretor de Brasília, que foi feito um projeto de restauração, hoje criticado por não preservar algumas das características originais.

As Missões Jesuítas Guaranis foram declaradas Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco, em 1983. Além de São Miguel, no lado brasileiro, a lista de monumentos tombados inclui La Santísima Trinidad de Paraná e Jesús de Tavarangue, no Paraguai, e San Ignacio Miní, Santa Ana, Nuestra Señora de Loreto e Santa Marí ala Mayor, na Argentina. Detalhes no site da Unesco.

Como visitar São Miguel das Missões

O que fazer

As ruínas de São Miguel são as grandes atrações – o sítio arqueológico é o mais bem conservado dos sete povos das missões. O destaque fica por conta da igreja, projetada em estilo barroco pelo arquiteto Giovanni Battista Primoli. Em frente ao templo ficava uma grande praça, de onde saíam as principais ruas do povoado. As casas – dos índios e dos jesuítas – se espalhavam ao redor da igreja, mas por ali também ficavam outros lugares importantes, como escolas, um cemitério e prédios públicos. É possível ver a estrutura de algumas dessas construções.

O ideal é visitar as ruínas em dois momentos: durante o dia, de preferência com um tour guiado. Nesse caso o ingresso custa R$ 5 (mais o serviço do guia, contratado separadamente). O local abre às 9h, mas fecha de 12h às 14h, reabrindo logo depois, mas com novo fechamento às 18h, quando os funcionários começam a preparar o show de luz e som.  As ruínas não abrem nas segundas-feiras.

Esse espetáculo – o segundo momento para conhecer as ruínas – começa às 20h na maior parte do ano e às 21h30 durante o horário de verão. A entrada do show custa R$ 15. A apresentação foi planejada no final dos anos 70 e tem narração de, entre outros artistas, Lima Duarte e Fernanda Montenegro, que recontam a história das missões, do Tratado de Madrid e das guerras envolvendo os índios guarani.

No mesmo lugar fica o Museu das Missões, que foi projetado por Lúcio Costa. É onde estão guardados alguns dos objetos missioneiros encontrados durante o processo de restauração. Também vale visitar a fonte missioneira, uma das sete que faziam parte do sistema de abastecimento da redução e que fica a apenas um quilômetro das ruínas, mas que foi redescoberta só em 1982. Por fim, o Ponto de Memória Missioneira é um pequeno museu particular, mantido pelo trabalho de um morador local e que tem centenas de obras dessa época, além de antiguidades em geral.

Como chegar

São Miguel das Missões fica a 480 km de Porto Alegre, trecho que pode ser percorrido em seis horas, pela BR-386. O isolamento de outras cidades turísticas gaúchas, como Gramado, Canela ou Bento Gonçalves, contribui para que a região das Missões ainda seja pouco conhecida pelo viajante brasileiro. A Azul começou a voar, em 2017, para Santo Ângelo, município com aeroporto mais próximo.

A Viação Ouro e Prata faz o trajeto entre Poa e as Missões, que custa em torno de R$ 100. Outra possibilidade é alugar um carro em Porto Alegre, escolha que pode ficar mais econômica que ir de ônibus caso você viaje acompanhado – fora que o veículo é fundamental para montar um roteiro que passe pelas outras ruínas. Nesse texto aqui explicamos como reservar seu carro pela internet e garantir o melhor custo benefício.

Por fim, é possível combinar Foz do Iguaçu com as Missões – quem estiver de carro próprio pode aproveitar para cruzar a fronteira (as locadoras de veículo não permitem isso) e montar um roteiro com menos de 600 km, mas que passaria por Foz e pelas Missões dos três países: Argentina, Paraguai e Brasil.

As outras reduções

As missões também eram chamadas de reduções, expressão que vem do latim “reductio”, cujo significado é redirecionar, dando a ideia do objetivo de conversão religiosa dos jesuítas. Seis cidades gaúchas guardam as ruínas das Sete Missões que ficaram do lado verde e amarelo das fronteiras. São Miguel tem as mais bem conservadas, mas há ruínas menores também em São João Batista, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, Entre-Ijuís, São Borja e Santo Ângelo.

Além de São Miguel, estivemos também em Santo Ângelo, onde fica a Catedral Angelopolitana, erguida no século 20, mas com estilo parecido ao usado nas reduções. Caso queira visitar os outros sítios arqueológicos, minha dica é que você tome como base essa reportagem da RBS.

São Miguel das Missões: hotel e pousadas

O hotel mais recomendado de São Miguel das Missões é o Tenondé Park, que foi onde nós ficamos. Com boa estrutura, piscina e a 10 minutos de caminhada das ruínas, esse hotel tem diárias por cerca de R$ 250. Outra opção é a Pousada das Missões, que tem preços um pouco mais baratos. 

Veja mais opções de onde ficar em São Miguel das Missões

Embora guarde um Patrimônio da Humanidade, a estrutura turística de São Miguel ainda deixa a desejar. Faltam mais hotéis, restaurantes e até um centrinho gastronômico interessante. Nesse sentido a cidade me lembrou outra, que também tem um ponto turístico impressionante e tombado pela Unesco, mas que poderia ter mais investimento no turismo: Congonhas, em Minas Gerais, que guarda os profetas de Aleijadinho.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • é importante citar que o Tenondé Park Hotel tem sempre melhores preços reservando direto no site do que via outras plataformas!

    tenonde.com.br

  • Olá, pessoal.

    Tudo bem? Gostaríamos de pedir uma ajuda de vocês com relação à matéria que vocês tem sobre a região das missões e São Miguel.

    Vimos que no hyperlink onde citam nosso hotel, colocaram o link do Booking.com.

    Gostariamos de pedir que considerarem colocar direto o link e nosso hotel (tenonde.com.br ), pois podemos nos manter fortes especialmente neste período e ano tão difícil que foi durante a pandemia onde passamos mais de 6 meses completamente fechados. temos que pensar em negócios locais e não apenas grandes corporações do turismo.

    agradecemos muito se puderem nos ajudar nessa questão.

    abraço

    • Oi, Iason. Tudo bem?

      O Booking é um dos principais parceiros comerciais não só do 360meridianos, mas de milhares de pequenos sites brasileiros.

      Pense que o 360meridianos também é uma empresa - uma muito menor que o Tenonde, tenho certeza. E que passa por problemas financeiros sérios desde março, quando a pandemia parou tudo, afinal também vivemos de turismo.

      Isso é pra te explicar por que colocamos o link do Booking. Não é pra financiar uma grande empresa multinacional, muito pelo contrário. É pra nossa própria sobrevivência.

      Produzir conteúdo também custa caro!

      Abraço!

  • Boa tarde. Tenho o privilégio de ser missioneiro. Estou com 78 anos de idade e possuo uma fotografia tirada por meu avô Pedro Antonelli (fotógrafo), tirada antes da limpeza realizada pela Prefeitura Municipal de Santo Ângelo entre 1925 e 1927.

  • correção no post, município de São Miguel das Missões... onde até hoje uma grande cruz que relembra as mortes no campo de batalha.

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Rafael Sette Câmara

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