Arte de rua e casas coloridas em Valparaíso, no Chile

Na cadeia onde há poucas décadas cerca de dois mil prisioneiros da ditadura militar se espremiam, hoje há dança. O antigo cárcere de Valparaíso, que testemunhou a tortura nos anos de Pinochet, foi transformado num espaço de cultura, o Ex Cárcel Parque Cultural. Essa é só uma das muitas iniciativas que vêm transformando essa cidade portuária chilena num reduto de artistas e aumentando exponencialmente a quantidade de visitantes. Não faltam os que decidem ficar de vez.

Quando o século 20 chegou, Valparaíso era um dos umbigos do mundo. Principal porto do Chile, a 140 km de Santiago, era parada obrigatória para os navios que faziam a complicada travessia entre o Atlântico e o Pacífico. Imigrantes de várias partes do globo fincaram raízes por ali, o que fazia de vizinhanças como o Cerro Alegre tão cosmopolitas quanto as de Nova York.

Veja também:
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A decadência começou com um terremoto. O sismo de 1906 foi tão avassalador que acabou impulsionando uma cidade vizinha: muitos moradores, ao perderem tudo, se mudaram para os arredores dali. Assim crescia Viña del Mar.

O que o tremor não levou a modernidade engoliu. A abertura do Canal do Panamá, em 1914, foi ao mesmo tempo uma das grandes façanhas da engenharia humana e a pá de cal na vocação portuária e na riqueza cosmopolita de Valpo. A partir dali restou a decadência. E não é que Valparaíso encontrou seu charme nela?

Por padchas, Shutterstock.com

A cidade é repleta de casinhas coloridas, construções espalhadas por 40 morros que parecem abraçar o Pacífico e que são alcançados por meio de ascensores seculares – e que ainda hoje transportam quatro milhões de passageiros anualmente. Não demorou para que Valparaíso se tornasse um reduto de artistas. O mais legendário deles, Pablo Neruda, escreveu:

“Valparaíso, qué disparate eres, qué loco, puerto loco, qué cabeza con cerros, desgreñada, no acabas de peinarte”.

Neruda captou como ninguém a essência da cidade. Valparaíso não é bonita e arrumadinha, mas bagunçada e descabelada, como uma cabeça que não foi penteada. Ou seja, nascida pronta para brilhar na era hipster. E se os anos 1960 e 1970 tornaram a noite de Valpa famosa, foi mesmo só no século 21, quando a Unesco declarou o centro histórico de Valparaíso como um Patrimônio da Humanidade, que a cidade restabeleceu parte da glória perdida.

Alguns anos depois do título começaram os investimentos. Governos diferentes já pensaram o turismo da cidade, cada um de um jeito. Cerca de 80 milhões de dólares foram gastos desde então, dinheiro que tem como objetivo melhorar a estrutura turística da cidade, mas também reforçar Valparaíso como a cidade mais artística, o reduto mais criativo do Chile. Para o governo local, o turismo em Valparaíso tem que ser sobre essa identidade cultural, e não exatamente sobre atrações turísticas. A estratégia tem dado certo.

Os brasileiros, por exemplo, chegam aos montes. E, assim como outros turistas, caçam graffitis. “Vocês sabem onde fica a escadaria que lembra as teclas de um piano”, perguntou uma brasileira para nosso guia, que apontou para outra direção. Não muito longe dali, várias pessoas formavam uma fila – a espera era para tirar fotos em outra escadaria, também pintada por artistas. Desenhos dos mais variados tipos tornaram Valparaíso um destino ainda mais procurado. E não falta quem passe horas buscando um painel ou local que viu no Instagram.

Os trabalhos não são apenas de artistas chilenos, mas de gente do mundo inteiro. Há casos de artistas que passam temporadas na cidade, pintam muros por todos os lados, algumas vezes em troca de hospedagem, e depois seguem em frente. Dá para caçar street art por conta própria, mas quem se interessar mesmo no assunto pode fazer um tour.

Criada pelo nova-iorquino que vive em Valparaíso há uma década, a Valpostreetart promete levar os visitantes “para a cultura underground, para os becos e escadarias, mostrando uma parte da cidade que pouca gente vê”. Como nosso grupo tinha pouco tempo, não fizemos esse tour, mas caminhamos pelas ruas acompanhados por um guia chileno. Valeu o passeio. Quem quiser um tour mais detalhado e focado em arte deve reservar com pelo menos um dia de antecedência. O ponto de encontro é a Plaza Aníbal Pinto.

Não foi só a arte de rua que cresceu nos últimos anos. O número de restaurantes sofreu uma multiplicação, assim como o de hotéis e pousadas. Nada que mudasse o jeitão, como diria Neruda, descabelado de Valparaíso. Ainda bem. Estive na cidade em duas ocasiões. A primeira em 2012 e a última agora, em 2018 – nas duas bati cartão por lá num mês de julho. Se algumas diferenças são óbvias, a melhor delas foi na minha relação com a cidade, algo muito mais pessoal e que pouco tem a ver com as mudanças dos últimos seis anos: confesso que gostei bem mais de Valparaíso nessa segunda passagem.

Após a primeira visita, escrevi aqui no 360 que tinha achado a cidade interessante, mas que esperava mais – e citei o relato de uma jornalista que não tinha gostado da experiência e teve vontade de sair correndo dali. Seis anos depois, ao caminhar pelas ruas, descer ascensores e ver graffitis lá e cá, percebi que eu estava muito errado. Como disse Neruda, Valparaíso é um disparate. E isso só pode ser no bom sentido.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • É um lugar realmente encantador, mas infelizmente foi onde tive minha pior experiência no Chile. Infelizmente Valpo não é um lugar seguro. É uma cidade cheia de malandros e drogadictos. Você não pode andar com câmeras nem celular, muito menos estacionar um carro, porque com certeza quando voltar estará arrombado. É não pense que estará seguro en Viña! Não! Não estará! E a polícia? Simplesmente cruza os braços!!

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Rafael Sette Câmara

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