Acarajé, o bolinho de feijão que é uma oferenda sagrada

Além de prato símbolo da Bahia, vendido em todas as esquinas de Salvador, o acarajé é a comida de um orixá. “É uma oferenda feita para iansã, no terreiro de candomblé. A hóstia está para a igreja católica assim como o acarajé e o abará estão para as religiões de matriz africana. Todos têm a mesma importância”. Quem me explicou isso foi a Rita Santos, coordenadora da ABAM, a Associação Nacional das Baianas de Acarajé.

Você pode até não conhecer essa história, mas provavelmente sabe que o acarajé é um bolinho de feijão fradinho frito em azeite de dendê, recheado com camarão, vatapá, caruru. E dono de um sabor único. Comum na região ocidental da África, o prato tem um nome em cada pedaço do continente. É kosai no norte da Nigéria, koose em Gana e akara em outros lugares, embora em nenhum deles seja exatamente igual. Segundo alguns pesquisadores, o acarajé é um parente distante do falafel dos árabes.

Veja também: 6 pratos típicos da comida baiana

É do último nome que se originou a nomenclatura brasileira. Em iorubá, àkàrà significa “bola de fogo” e je é “comer”. Difícil pensar num nome mais acertado. E já que falamos em fogo, está nele – e nos conceitos de quente e frio – uma das maiores gafes cometidas por turistas desavisados. “Quando o cliente chega na baiana e ela pergunta: ‘quente ou frio’?, e a pessoa fala quente, a baiana vai encher de pimenta. Não é quente porque acabou de fritar, é porque vai ter pimenta”, explica, entre risos, a Rita. Que dá a dica – quem quiser um bolinho que acabou de sair do fogo deve dizer exatamente isso. Aí não tem chance de erro.

Foto: Por lazyllama, Shutterstock.com

A incrível história do Acarajé

Há pelo menos três séculos as baianas do acarajé trabalham em suas receitas, que foram trazidas da África durante o período colonial. Foram as chamadas escravas de ganho, cuja função era ir para rua e trabalhar para as patroas, vendendo mercadorias em tabuleiros, que iniciaram a prática.  Elas vendiam de tudo, de mingaus, a peixes fritos, de acarajés a bolos e quitutes, como a cocada.

Embora tivessem que repassar uma grande parte do lucro para suas proprietárias, as escravas de ganho podiam ficar com um pouco do que recebiam. E foi assim que muitas delas sustentaram suas famílias – e houve até casos de mulheres que conseguiram comprar a própria liberdade. Não é à toa que a Rita Santos diz que a baiana do acarajé foi primeira mulher empreendedora do Brasil.

Foi do lucro do tabuleiro das baianas que veio também o dinheiro para criar as irmandades religiosas e financiar os terreiros de candomblé, mais um argumento para a importância religiosa do acarajé. Para as religiões de matriz africana, Iansã, deusa dos ventos e das tempestades, buscou Ifá, um oráculo, para fazer um alimento para seu marido, Xangó, o orixá da justiça, dos raios, do trovão e do fogo. A orientação do oráculo foi que, após comer, Xangô deveria falar para seu povo. Quando ele fez isso, labaredas de fogo começaram a sair de sua boca, o mesmo acontecendo com Iansã.

Tudo no acarajé e nas baianas está repleto de simbolismo, do preparo da receita às roupas das cozinheiras. Quando preparado para Iansã, na forma de oferenda mesmo, o acarajé é sempre frito e sem complementos.

O ofício das baianas continuou após o fim da escravidão e entrou de uma vez por todas no imaginário popular ao longo do século 20. Em 1939, Dorival Caymmi e Carmen Miranda perguntaram o que é que a baiana tem, enquanto Ari Barroso lembrou que “no tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru, mungunzá e umbu”.

Já no século 21, o ofício das baianas do acarajé foi inscrito como patrimônio imaterial da Bahia e patrimônio cultural brasileiro. A importância do prato é tão grande que a FIFA, durante as Copas das Confederações e do Mundo, cedeu a uma forte pressão, e permitiu que as baianas estivessem dentro da Arena Fonte Nova, vendendo seus acarajés, exatamente como faziam há décadas. E pode ser que voos mais altos surjam por aí: há quem defenda que o acarajé seja declarado patrimônio mundial da humanidade, numa petição que seria feita em conjunto por Brasil e Nigéria, onde uma versão do prato é café da manhã de muitos.

Nesse meio tempo, uma coisa não mudou – o prato continua ligado à fé, mesmo que não seja mais exclusividade das baianas do acarajé.

“O produto comercial a pessoa vai lá, bate a massa e vende. Ela quer é receber o dinheiro dela no fim do dia. Está fazendo é bolinho de feijão frito com azeite de dendê. A baiana, aquela mulher do terreiro cujo oficio hoje é patrimônio imaterial, ela tem um ritual enquanto está batendo a massa. E isso sim é o acarajé. No momento em que se torna um produto industrializado, o prato perde todo o significado que tem pra nós, de ser uma oferenda”.

Rita Santos, coordenadora da ABAM

Não há estimativas atuais que indiquem quantos acarajés são consumidos por dia em Salvador, mas ninguém duvida que sejam muitos – a Rita garante que, durante muito tempo, as baianas venderem mais acarajés do que o McDonald’s vendia de hambúrgueres na cidade. Segundo a ABAM, 80% das baianas do acarajé são provedoras e chefes da família. E 70% delas, principalmente as mais velhas, não frequentaram a escola. Atualmente, a formação superior já é até algo comum entre as baianas do acarajé mais jovens.

Hoje, um acarajé custa entre R$ 8 e R$ 10, dependendo do ponto da cidade onde ele é vendido. Mas há grupos que comercializam o produto – ou a versão bolinho de feijão frito no dendê, sem a carga cultural das baianas – por R$ 2. A Rita lembra que não dá para garantir a qualidade do prato em casos assim. “Um balde de azeite é R$ 80, e ele precisa ser trocado todo dia, por orientação da vigilância sanitária. O camarão é R$ 40, o preço do gás é R$ 70. Não tem como vender acarajé a R$ 2. Você gasta dois botijões de gás, um em casa e um no tabuleiro. Tem que comprar guardanapo, complementos, etc. No final das contas, o barato sai caro. Nem sempre quem está cobrando um ou dois reais coloca todos os ingredientes para fazer um bom acarajé, um bom vatapá, um bom caruru”, garante ela.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Muito bom seu trabalho, estou fazendo um TCC sobre influência africana na culinária brasileira e gostaria se citar algumas partes do texto, queria saber se posso. Com as devidas referências.

  • Uma delícia , e não tem nada haver com religião se comer ou não comer , como foi explicado pra quem é de religião tem um fundamento , mais é uma delícia .
    Por favor não estou dizendo quê a história não tem nada haver estou dizendo quê deixar de comer por causa da religião é bobeira .
    Respeito a opinião mais também estou dando a minha , é um prato ótimo para se servir amo .

  • Sinceridade, eu não tenho nada contra a pessoa que faz, vende ou consome acarajé, mas eu particularmente não como, nunca comi e posso garantir que nunca irei comer. A minha obediência a PALAVRA DE DEUS, não permite comer não o acarajé mas toda comida oferecida a ídolos. Doce de cosme e damião e outras iguarias oferecidas aos ídolos.Reginaldi

    • Respeito sua opinião, Reginaldo. E seguirei comendo - viva as diferenças! :)

      Abraço e feliz 2020.

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Publicado por
Rafael Sette Câmara

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