Capaz de transformar crítica em humor e humor em desenho, Raphael Bordallo Pinheiro foi um inventivo caricaturista português – e também jornalista, escritor e ceramista. Suas críticas sociais mordazes, aliadas à sua figura peculiar e ao excelente humor, o tornaram famoso no Brasil e em Portugal, igualmente amado e odiado por figuras de renome, que não eram poupadas das representações de sua caneta.
Bordallo Pinheiro fez parte da chamada “Geração de 70”, um seleto grupo de intelectuais portugueses nos anos de 1870 que fizeram grandes reflexões sociais e se destacaram com obras literárias e produção jornalística. Personalidades como Eça de Queiroz, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, entre outros, utilizavam de seus trabalhos para tecer críticas às estruturas políticas, econômicas e sociais em Portugal, consideradas por eles decadentes, pautadas no passado e sem espaço para modernização.
Na segunda metade do século 19, com a popularização da técnica da litografia na imprensa, as caricaturas se difundiram tanto no Brasil como em Portugal como uma ferramenta de crítica social em periódicos ilustrados. Ao contrário dos seus colegas, eram os desenhos de Bordallo Pinheiro, e não suas palavras, que davam força às suas críticas contra a monarquia, as elites, o clero e a Inglaterra.
“A estratégia da caricatura consiste em dessacralizar as figuras de poder”, explica o artigo Caricatura como ponte: apontamentos de pesquisa sobre as relações identitárias entre Brasil e Portugal na obra de Raphael Bordallo Pinheiro, do historiador Rômulo Brito. Segundo o autor, a caricatura consegue aproximar a pessoa desenhada do observador, transformando figuras públicas renomadas em objetos de riso.
Bordallo Pinheiro tornou-se o principal nome português no universo das caricaturas. Com a popularidade de seus desenhos e textos, fundou diversas revistas e publicações ao longo da vida, e por quatro anos trabalhou como jornalista no Brasil.
Nascido em Lisboa, em 1846, Raphael era filho de uma família de artistas – pelo menos três dos 11 irmãos tiveram carreiras de sucesso no mundo das artes. O autor frequentou a Escola de Artes Dramáticas e a Academia de Belas Artes de Lisboa, onde iniciou três cursos, mas não finalizou nenhum.
A partir de 1868, aos 22 anos, começa a participar de exposições e publicar suas primeiras caricaturas em jornais. Dois anos depois, lança o primeiro álbum de caricaturas de Portugal, chamado “O Calcanhar de Achilles”, e também funda dois periódicos. Com isso, seus trabalhos começam a ser premiados em exposições internacionais e ganham popularidade entre os portugueses.
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Entre maio de 1871 e janeiro de 1873, Dom Pedro II fez uma viagem por Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha, Itália, Ásia Menor, Palestina, Egito, de novo Itália, França e Espanha e, por fim, novamente Portugal.
As jornadas eram de caráter não-oficial, e o Imperador do Brasil era visto como excêntrico, por desejar ser referido apenas como Pedro Alcântara ou Pedro de Bragança e recusar as honrarias típicas a um chefe de estado – exceto quando precisava usar dessas honrarias para estender o horário de bibliotecas, por exemplo.
Tal viagem foi a inspiração para um álbum satírico publicado por Raphael Bordallo Pinheiro em 1872, “Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb pela Europa”. Um dos grandes temas do livro é a dualidade entre um imperador-democrático e um homem sábio, que falava mais de 10 idiomas e patrocinava artes e ciências, versus um membro de uma antiga dinastia europeia e chefe de estado, utilizando do dinheiro público para uma viagem pessoal, descolado da realidade de seu país.
Ilustrações do livro As Viagens do Imperador de Rasilb. A edição será enviada em novembro para assinantes do clube Grandes Viajantes.
Enquanto os jornais e as narrativas da época em geral eram elogiosas ao sábio governante brasileiro, a história de Raphael traz críticas e reflexões sobre os eventos que se desenrolaram na viagem, tudo de forma bastante engraçada, trazendo a ideia de um Pedro II mochileiro, sempre arrastando sua mala, controlando o orçamento, circulando por aí de chinelos e recusando cerimônias reais.
O título fala em “viagem picaresca”. É uma referência às novelas picarescas, um estilo de narrativa satírica desenvolvida na Espanha medieval e que se opunha aos contos de cavalaria, trazendo como personagem principal um “pícaro”, indivíduo de classes mais pobres e que usava da malandragem para viver.
“A aparente contradição entre o adjetivo “picaresca” e o indivíduo central no evento que recebe tal alcunha não é ocasional (…) Enquanto o pícaro se utilizava da astúcia para ascender socialmente e se destacar, o Imperador do Brasil alteraria seu discurso para passar despercebido como um mero cidadão, mas sem abrir mão dos privilégios monárquicos. Esta imagem, no entanto, seria construída com o intuito de aumentar sua popularidade tanto no Brasil quanto na Europa, desvinculando de sua figura toda a pompa e privilégios monárquicos que passaram a ser criticados por muitos intelectuais e movimentos sociais. Parecer querer declinar de sua posição para ascender ainda mais.” Rômulo Brito, na tese de doutorado Um traço sobre o Atlântico: o Brasil na obra caricatural de Rafael Bordallo Pinheiro.
A viagem de Dom Pedro II coincidiu com um momento em que a Geração de 70 se reunia para criticar a sociedade portuguesa, seu declínio e suas estruturas. E Pedro de Alcântara – ou, como diz Bordallo Pinheiro, “Pedro da Pampulha” – era tio do Rei de Portugal, D. Luís I, ambos membros da dinastia de Bragança, casa que governava Portugal desde meados do século 17. Assim, boa parte das críticas é dirigida não só às contradições do Imperador, mas à Portugal e sua realidade.
No livro de Bordallo Pinheiro, Portugal é chamado de Vale de Andorra Junior, uma comparação ao principado de Andorra, na época governado ao mesmo tempo por um membro da igreja e um governante laico. Os portugueses também sofriam, há séculos, com a grande influência da Igreja nas decisões sobre o país.
As narrativas das viagens do Imperador de Rasilb – anagrama de Brasil – centram-se principalmente em suas duas estadias em Portugal: na primeira oportunidade, quando fica voluntariamente em quarentena num Lazareto nas margens de Lisboa; e na segunda, no final da viagem, quando circula pelo país.
Publicado em 1872, o livro é considerado uma das primeiras histórias em quadrinhos de Portugal. Além disso, explica Rômulo Brito, é a primeira narrativa caricatural produzida sobre um governante brasileiro por um intelectual estrangeiro. É considerada uma raridade bibliográfica pela rede de bibliotecas municipais de Lisboa.
Em novembro de 2020, todos os assinantes do Grandes Viajantes receberão uma versão digital e atualizada da obra. A capa foi feita especialmente para essa edição. A ilustração de capa é do Evandro Bertol e também será enviada aos assinantes em formato de pôster e cartão-postal, para impressão. A nova edição conta ainda com notas explicativas detalhadas e uma biografia sobre o autor. O livro Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb pela Europa tem 74 páginas. A assinatura do Grandes Viajantes custa apenas R$ 9 e pode ser feita aqui.
Não só governantes poderosos eram personagens dos desenhos de Raphael Bordallo Pinheiro. Em 1875, o autor funda a revista A Lanterna Mágica, o primeiro jornal diário e ilustrado de crítica em Portugal. Foi nesse periódico que ele criou o personagem mais importante de sua carreira: o Zé-Povinho.
Considerado até hoje como um símbolo do povo português, o Zé-Povinho era uma figura camponesa, maltrapilho, de trajes rústicos, mãos no bolso e ombros curvados. Trazia sempre na face uma expressão de espanto, admiração ou desentendimento.
Segundo uma matéria da revista portuguesa Visão, o personagem representa um povo passivo frente à decadência do país: “As outras nações criaram ícones do seu orgulho nacionalista, enquanto Portugal preferiu um símbolo degradante de um povo de brandos costumes, sempre receptivo às albardas que lhe adoçam no lombo, sempre submisso à miséria de políticos que ele deixa governar este país”.
O Zé-Povinho teve mais de 300 aparições nas obras de Bordallo Pinheiro, incluindo as ilustrações publicadas no Brasil e até em peças de cerâmica.
Pouco depois de criar o personagem, Bordallo Pinheiro foi convidado para colaborar com a revista caricatural O Mosquito, que era bastante popular na época. Assim, em 1875 ele desembarcou no Rio de Janeiro.
Aqui, também fundou dois periódicos, as revistas Psit! e O Besouro, além de colaborar com outros jornais brasileiros. Em todos seus trabalhos como cronista da vida no Rio de Janeiro, seguiu com a profunda e divertida crítica social, com caricaturas que satirizam políticos locais.
“Bordallo Pinheiro chega a afirmar, em entrevista ao Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, que ‘não há manifestação artística sem finalidade moral’. Satirizando a corrupção dos políticos, a empáfia e a vaidade de uma certa classe da sociedade, a ingenuidade algo apalermada do povo, a alienação dos hábitos e costumes, a generalização leviana de determinados conceitos, Bordallo Pinheiro exercia, de fato, a arte como um poderoso veículo risonhamente moralizador.” explica Luiza Martinez, num artigo sobre o caricaturista, citado por Brito.
Páginas da Revista O Besouro, publicada no Brasil em 1878. Acerco: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
Seu trabalho gerou revolta entre os nobres do Império e Bordallo Pinheiro chegou a sofrer dois atentados. Com isso, retornou para Portugal em 1879.
Com o retorno a Portugal e a maturidade desenvolvida em sua obra, Bordallo Pinheiro entra no momento mais prolífico de sua produção jornalística. Paralelamente a isso, em 1885, decide investir, com o irmão, na criação de cerâmicas. Funda a Fábrica de Faianças em Caldas da Rainha e é o responsável pela área criativa.
Hoje em dia, é provável que mais portugueses conheçam Bordallo Pinheiro pelas cerâmicas do que pelas caricaturas, uma vez que a marca que leva seu sobrenome é até hoje referência no país. Suas peças de cerâmica usam de temas populares, como alimentos, com louças de couves e tomates, ou animais, como peças decorativas de andorinhas e sardinhas.
Jarra Cabeça de Porco, de Raphael Bordallo Pinheiro. Crédito: Pedro Ribeiro Simões / Flickr
O trabalho de Raphael ganhou bastante reconhecimento, chegando a ser premiado em diversas exposições internacionais (Madrid, Antuérpia, Paris e St. Louis, nos EUA). A chamada “Jarra Beethoven”, que tem mais de 2.6 metros de altura, foi trazida por Bordallo Pinheiro ao Brasil, na tentativa de vendê-la. Como não conseguiu, deu de presente para o então presidente brasileiro, Campos Salles. Hoje a peça encontra-se no Museu das Belas Artes, no Rio de Janeiro.
Em 1905, Raphael Bordallo Pinheiro morreu, aos 58 anos. Seu funeral reuniu diversas personalidades, incluindo políticos famosos que eram personagens de suas caricaturas. Segundo José-Augusto França, historiador e biógrafo de Bordallo Pinheiro, o velório foi a maior consagração pública prestada, até então, a um artista plástico em Portugal.
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