O carnaval do fim do mundo: a primeira folia após a gripe espanhola
“O carnaval de 1919 foi digno do Rio de Janeiro e do primeiro ano em que a humanidade, após tantos horrores, passa a gozar de uma nova era de paz”. Assim o jornal A Noite noticiou o fim da folia, no dia 5 de março, quarta-feira de cinzas. Também naquela data, o Correio da Manhã afirmou que o carnaval tinha sido “de um brilhantismo sem precedentes”.
Para o brasileiro, diziam os jornais, o carnaval é a festa que dá força e “liberta da tristeza que passamos o resto do ano”. E, pelo tamanho da tristeza enfrentada em 1918 com a epidemia de Gripe Espanhola, a folia de 1919 tinha mesmo que ser eterna – ou perto disso. Anos depois, escritores, jornalistas e compositores descreveriam o carnaval da gripe espanhola como uma profunda redenção, uma festança dos sobreviventes que tinham se vingado, enfim, da morte. E olha que boa parte dos foliões estava careca, literalmente, por conta da doença.
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Todo o planeta respirava aliviado no começo de 1919. Três meses antes, no dia 11 de novembro, foi encerrada a Primeira Guerra Mundial, conflito que teve oito milhões de mortos. Também foi nessa época o pico da epidemia de gripe espanhola, vírus ainda mais implacável que o conflito e que deixou entre 20 e 50 milhões de mortos em todo o mundo. Só no Brasil foram 40 mil vítimas, sendo 15 mil delas no Rio de Janeiro.
Para Ricardo dos Santos, pesquisador da Fiocruz, o número de vítimas no Brasil nem foi tão elevado para padrões da época, já que cidades como o Rio de Janeiro conviviam com constantes epidemias de outras doenças e grandes problemas sanitários. “Morriam 15 mil pessoas de outras doenças, por ano, no Rio daquela época. Mas não num espaço tão curto de tempo ou de forma tão dramática, impossibilitando até os rituais que acompanhavam a morte”, diz ele.
Houve colapso do sistema de saúde, falta de leitos e abertura de hospitais de campanha. O sistema funerário também não deu conta da demanda – faltavam caixões, coveiros eram recrutados aleatoriamente, velórios foram proibidos e milhares de brasileiros acabaram em valas coletivas. No Rio, corpos eram largados no meio das ruas e dentro de bondes, um cenário assustador e que lembra o que ocorreu em 2020 em Guayaquil, no Equador, em consequência do coronavírus e da covid-19.
Nelson Rodrigues, que tinha acabado de fazer seis anos quando o vírus chegou ao Rio, guardou memórias terríveis da epidemia. Nos anos 1960, ele escreveu duas crônicas sobre o assunto, publicadas no Correio da Manhã e mais tarde incluídas no livro “Memórias: A menina sem estrela”.
A gripe foi a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos.”
Nelson Rodrigues, em Memórias: A menina sem estrela
O pesquisador Ricardo dos Santos chama atenção para a semelhança do que aconteceu no Rio de 1918 com as cenas das covas coletivas abertas em Manaus, por conta da covid-19. Mas destaca que muitas coisas são diferentes entre as duas doenças – e que há 100 anos de história entre elas: “Durante a gripe espanhola, a cidade transformou-se num caos generalizado, faltavam alimentos e os saques aos depósitos de comida eram constantes. Hoje, as famílias têm geladeiras, conseguem estocar alimentos”, diz, mas refletindo que ainda existe o problema da falta de dinheiro de boa parte da população, amplificado pela crise.
Dois meses após desembarcar no país, a gripe tinha infectado metade da população brasileira. O pico da doença passou e o vírus sumiu nos anos seguintes – foi alcançada, com muito custo e inúmeras dores, a imunidade do rebanho. O comércio e a indústria, que tinham sido duramente afetados pela pandemia, se recuperaram aos poucos. E 1919 chegou pedindo por uma folia memorável, daquelas que celebram o fim do fim do mundo. Estávamos vivos, afinal.
Para recontar a história do carnaval de 1919, a primeira grande festa popular após a pandemia de gripe espanhola, investiguei dezenas de edições de jornais publicados em janeiro, fevereiro e março daquele ano, disponíveis na hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Esta é a segunda reportagem sobre a gripe espanhola, epidemia com semelhanças com a de 2020, causada pelo coronavírus. No primeiro texto, investiguei jornais publicados durante o pico da epidemia de 1918.
Há um século, o Rio de Janeiro era a capital da jovem República e uma cidade com mais de um milhão de habitantes – a maior da América Latina, com o dobro da população de São Paulo, e também uma das maiores do mundo. Foi no Rio que a pandemia mostrou sua face mais terrível no país. Quando a crise passou, também foi no Rio a festa mais intensa.
“As pessoas começaram a sair de casa e retornaram ao cotidiano. A partir deste momento, desencadeou-se um conjunto de atitudes da população em relação à epidemia. Sentimentos de medo e uma surpreendente alegria”.
Ricardo dos Santos – Pesquisador da Fiocruz
Desde o começo de 1919, os jornais dedicavam páginas e mais páginas aos preparativos para a folia – o pré-carnaval já foi animado, com bailes nos principais clubes e blocos nas ruas da então capital federal. Chuvas torrenciais, que castigaram o Rio de Janeiro no princípio daquele ano, não diminuíram o ímpeto dos foliões. “Parece que os cariocas
não se intimidaram e caíram na farra, comemorando o fato de que tinham sobrevivido ao fim do mundo”, diz o pesquisador da Fiocruz.
Os jornais também estavam repletos de anúncios dos mais variados tipos, que deixavam claro que a economia começava a se movimentar após os meses de pico da doença. Lojas ofereciam fantasias de carnaval e moradores das casas e apartamentos com vista privilegiada, em ruas por onde os blocos passariam, alugavam suas janelas, transformadas em camarotes improvisados – e caríssimos.
Enquanto isso, já em janeiro, a Cervejaria Brahma pedia que os fregueses mandassem seus pedidos de carnaval com antecedência, dizendo que só assim conseguiria dar conta da demanda. Outra propaganda que tomava conta das páginas dos jornais era a do lança-perfume, spray inebriante que tinha sido introduzido no país no carnaval de 1904 e que permaneceu, por décadas, como um símbolo da folia. O lança-perfume sobreviveu até os anos 1960, quando foi proibido pelo governo de Jânio Quadros.
E havia também quem anunciasse produtos mais audaciosos. “O Sr. não pode divertir-se no carnaval sem um automóvel. É seu dever para com sua família dar-lhes esse prazer”. Os carros, que naquela década começavam a tomar conta das ruas brasileiras, eram usados nos desfiles – existiam cerca de cinco mil veículos na capital federal.
A gripe era página virada, mas suas consequências não. O presidente eleito, Rodrigues Alves, tinha morrido em janeiro, após meses acamado. Durante décadas a morte foi atribuída à gripe espanhola, mas há quem defenda que o político teve, na realidade, leucemia, como o jornalista Ruy Castro relatou recentemente, numa coluna para a Folha de São Paulo.
Assumiu o vice, Delfim Moreira, que convocou novas eleições, conforme determinava a Constituição da época. Enquanto se preparavam para escolher entre Ruy Barbosa e Epitácio Pessoa, os brasileiros perdiam os cabelos. Literalmente.
Foi mais uma das consequências inesperadas da epidemia de gripe espanhola, que deixou uma multidão de curados estranhamente carecas. Nos jornais, farmácias ofereciam os mais diversos tratamentos para enfrentar a calvície, que seria um dos temas daquele carnaval.
No dia 23 de fevereiro, o último domingo antes da folia de 1919, o jornal A Noite trouxe as “vinhetas da semana” – quatro charges. Numa delas, uma mulher cobria a cabeça com um véu e carregava cabelos na mão direita. A legenda deixava claro quem era a culpada pela calvície coletiva: a gripe espanhola. “Cuidado com ela! “Põe a calva à mostra a toda gente… que tenha cabelo de verdade”, brincava a publicação. Ao lado, o Rei Momo comemorava seus três dias de reinado por ano.
Uma das marchinhas que fizeram sucesso naquele carnaval foi “A Hespanhola”, que falava da “epidemia depilatória” que acabou com tantos exemplares do “sedutor adorno capilar”:
Foi bem levada da breca
A gripe que aqui se viu
E agora, gente careca
O pelo está por um fio
E essa não foi a única marchinha temática, como mostram as capas do Correio da Manhã naquela semana, que traziam as principais músicas da folia. No Bloco da Parcimônia, a canção lembrava os desafios deixados pela doença:
Durante o Ano passado
Ninguém do bloco comia
Tudo era bem guardado
Para fazer economia
Até que veio a espanhola
Vestida de epidemia.
Enquanto isso, o Bloco dos Gripistas também cantava sobre a doença, destacando o papel que o quinino, uma medicação extraída de uma árvore amazônica e usada há séculos como tratamento para a malária, teve durante a epidemia. O quinino foi uma das supostas curas defendidas pela indústria farmacêutica, a maioria delas com eficácia nunca comprovada.
Se é pra frente que se anda
vou seguir caminho reto,
Vou pedir a Dona Gripe,
que me forme por decreto…
Avante, menino! Avante, rapaz!
Quem toma quinino não anda pra trás
Um dos mais populares cânticos da festa foi escrito por José Luiz de Morais, o Caninha. “A gripe está aí. A coisa não é brincadeira. Quem tiver medo de morrer. Não venha mais à Penha”, cantavam milhares de cariocas. Outra marchinha deixava claro que a folia de 1919 tinha sido muito esperada – e que era uma forma de extravasar após tantos sofrimentos. Afinal de contas, “não há tristeza que possa suportar tanta alegria. Quem não morreu de espanhola, quem dela pôde escapar, toca a rir, toca a brincar”. E muita gente fez isso.
No domingo de carnaval, que naquele ano caiu no dia 2 de março, o jornal Gazeta de Notícias já celebrava o triunfo da festa. “O entusiasmo popular excedeu ontem toda a expectativa”, dizia a capa da publicação. “Toda a cidade se anima, todo o Rio de Janeiro se transfigura. Os moços soltam as risadas, sem temor de convenções ou preconceitos, as moças correm e francamente saracoteam, as crianças aos berros enlouquecem, e os velhos cobram nova alma!. O dinheiro surgiu, apareceu abundante, e corre livremente, por um milagre estrondoso”.
O jornal ainda brincou com a proximidade da eleição presidencial, que perdeu espaço nos noticiários, mesmo estando marcada para o mês seguinte. “Que idiota ousaria hoje, sequer de longe, aludir às coisas sérias, à guerra europeia ou às candidaturas de Epitácio Pessoa ou Ruy Barbosa?”, perguntava.
Na segunda de carnaval, o Correio da Manhã confirmava o sucesso da festa. “Correu animadíssimo o dia de festejos carnavalescos”, anunciou o jornal. “Foi um domingo cheio, desde a tarde, com toda a cidade vibrando de alegria. Na manchete do segundo dia de folia, a Gazeta de Notícias resgatou uma chamada clássica para os carnavais daquela década: o Rio estava “No Reinado da Loucura”.
“O aspecto da nossa principal avenida na primeira noite consagrada a Momo era verdadeiramente soberbo”, dizia o jornal, que destacou que uma multidão participou da festa, que durou até a madrugada. A publicação trazia fotos dos carros alegóricos, dos principais blocos e a programação para os próximos dias. A maioria dos cerca de 20 jornais diários que circulavam no Rio naquela época fez concursos para premiar as melhores fantasias e os foliões mais animados do carnaval.
“Na quarta-feira de cinzas, o Rio despertou convicto de que vivera o maior carnaval de sua história”, conta o escritor Ruy Castro no livro “Metrópole à Beira-Mar”, lançado no ano passado e que narra a vida no Rio de Janeiro dos anos 1920, com direito a um prólogo impressionante sobre a epidemia de 1918 e a folia de 1919.
O Correio da Manhã resumiu assim: “O Carnaval de 1919, contra todas as expectativas causadas pelo ano de flagelos que o precedeu, foi apenas um recorde de animação, de luxo, de alegria e de bom gosto”.
A publicação destacava que Delfim Moreira, então presidente, tinha saído de sua residência de verão para acompanhar a passagem dos blocos carnavalescos pela Avenida Rio Branco, a principal da cidade. A ação do político não tinha precedentes e, por isso mesmo, estava cheia de simbolismo. “É o primeiro chefe de estado que tem esse gesto, vindo ver como o povo se diverte”, explicava o jornalista.
Muitos dos blocos que desfilaram em 1919 já existiam há décadas, mas não sobreviveram ao avançar do século 20. Por outro lado, uma instituição do carnaval carioca nasceu logo depois da epidemia e desfilou pela primeira vez naquele carnaval: o Cordão da Bola Preta, que sai todo sábado de carnaval da Avenida Rio Branco e hoje que se declara “o maior bloco do mundo”.
Um dos fundadores do grupo – um nome que entraria para a história do carnaval carioca – foi Álvaro Gomes de Oliveira, conhecido como Caveirinha. Ele ganhou esse apelido por conta da gripe.
“Na época da gripe espanhola, ele sumiu. O pessoal achava até que ele tinha morrido por conta da pandemia. Um belo dia ele reapareceu no grupo, mas muito magro, pele e osso, e aí logo alguém mandou o apelido para cima dele: Caveirinha. Ele foi um dos sobreviventes da gripe espanhola”, conta Pedro Ernesto Marinho, presidente do Cordão do Bola Preta.
“O Caveirinha adorava conversar. E ele contava que o carnaval de 1919 foi uma verdadeira explosão de alegria, uma coisa impressionante. O povo foi pra rua com vontade, fez um carnaval histórico. Foi tipo assim: ninguém é de ninguém. Não houve limite, o couro comeu. O excesso de rigores que existia antes foi quebrado totalmente”.
Pedro Ernesto Marinho, presidente do Cordão do Bola Preta
Em 1919, a quarta-feira de cinzas foi o dia oficial da ressaca para os foliões, mas também de alegria para os catadores de papel. Aquela edição do jornal A Noite noticiou, na capa, a situação dos depósitos de serpentinas. “Os trapeiros (catadores) cariocas estão satisfeitíssimos com o carnaval deste ano. Há muitos anos que o movimento de compra de serpentinas jogadas à rua não atingia a cifra obtida neste primeiro carnaval depois da guerra”.
O jornal visitou as principais casas compradoras de papel velho e encontrou os depósitos cheios de serpentinas, “da porta ao teto”. Um proprietário só lamentava não ter mais espaço para guardar o produto. “Houve, não há dúvida, enorme gasto de papel, na forma de serpentinas, neste carnaval de 1919”, concluiu a reportagem, estimando que 40 toneladas tinham sido recolhidas das ruas do Rio após a festa, deixadas pelas tradicionais batalhas de serpentinas e confetes.
Como comparação, em 2020, quando pelo menos três milhões de pessoas foram aos blocos no Rio de Janeiro, agora uma cidade seis vezes maior, a prefeitura recolheu 74 toneladas de lixo nas ruas da cidade – mas esse número foi alcançado com todo o tipo de detritos, não só papel.
Na mesma edição do diário A Noite, uma charge anunciava a morte do Rei Momo, mas lembrava que ele, assim como a Fênix, sempre ressurge das cinzas. Também na quarta-feira, os principais jornais cariocas dedicavam colunas aos, digamos, achados e perdidos: pessoas de todas as idades que caíram na folia e ainda não tinham retornado para suas casas, deixando famílias preocupadíssimas.
Aquele tinha sido um carnaval sem precedentes também para padrões comportamentais. E a polícia registrou recorde nos atendimentos, de registros de crianças desaparecidas a queixas de assédio sexual e crimes violentos, inclusive estupros. O Correio da Manhã noticiou que uma mulher tinha sido agredida “por três insólitos mascarados, que lhe disseram muitos desaforos e a espancaram”, enquanto dois homens tiveram que “tomar um corretivo” após dizerem, “ao ouvido de uma menor de nome Maria, graçolas pesadíssimas, o que a indignou”.
Mesmo assim, o jornal concluía que a festa tinha sido um sucesso – e merecido. “Foi um carnaval magnífico que deixou saudosa impressão. Porque pelo menos ainda temos o carnaval. Podia ser pior, podíamos não ter coisa alguma”.
Ainda no A Noite, uma reportagem narrava a experiência de um francês que desembarcou no Rio em plena quarta-feira de cinzas, sem saber da festa que tinha tomado conta da cidade nos dias anteriores. Ele confundiu a ressaca coletiva com a doença do sono, “uma moléstia esquisita, endêmica nos sertões africanos”.
Toda a gente dormia ou tinha fisionomia sonolenta. No bonde em que fui ao Pão de Açúcar, dormiam dois rapazes, duas raparigas, um senhor de idade e o próprio condutor do veículo. Quando voltei, dormia a meu lado uma senhora. No banco da frente, uma senhorita cochilava e dois cavaleiros bem vestidos faziam os maiores esforços para não cabecear. E até um sacerdote, um velho e respeitável sacerdote, parecia, coitado, dominado pela terrível moléstia do sono”.
Jornal A Noite, 5 de março de 1919
Antes da festa, o governo federal até chegou a ficar preocupado com os excessos da folia, que poderiam favorecer a uma nova invasão da gripe. No dia 23 de fevereiro, Theophilo Torres, Ministro da Saúde, lembrou no Correio da Manhã que a gripe não tinha retornado ao Rio, mas que isso poderia gerar uma “falsa segurança para a população”. E aconselhava: “sendo a gripe uma doença contagiosa e expondo-se o indivíduo a contraí-la com a simples aproximação”, o ideal seria “evitar as aglomerações”, principalmente pessoas que tivessem sintomas, mesmo que leves.
Conselho dado e coletivamente ignorado. “A própria ideia de que a gripe pudesse voltar fazia com que ninguém aceitasse se poupar. ‘E se este for o último carnaval da minha vida?’, perguntavam-se muitos”, conta o escritor Ruy Castro, em Metrópole à Beira-Mar.
No fim das contas, não houve registros de gripe espanhola por conta do carnaval de 1919. Se foi mais sorte do que juízo é difícil saber – ou se porque a epidemia fora tão forte que boa parte da população do Rio já tinha sido infectada.
Mais de 100 anos se passaram desde o carnaval da gripe espanhola, em 1919. De lá pra cá, a folia seguiu o tamanho crescente do Rio – e certamente aumentou. Mas aquele carnaval ainda é lembrado como o maior que a cidade tinha organizado até então, deixando marcas profundas na literatura, na música, na cultura popular e no comportamento das pessoas.
De certa forma, a folia de 1919 foi o abre alas para a década de 1920, libertária e moderna em dezenas de sentidos. Nelson Rodrigues chegou a dizer que a festa tinha sido “sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados” deixados pela epidemia.
Ele também atribuiu ao carnaval de 1919 a profunda mudança comportamental que o Rio enfrentou nos anos seguintes. “O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal ou que outro nome tenha”, escreveu, acrescentando que tudo “explodiu” a partir do começo da folia. “Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade (…). Eram os mortos da espanhola – e tão humilhados e tão ofendidos – que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias”.
“Nove meses depois se falava na geração dos filhos da gripe”, conta Ricardo dos Santos. Ele lembra ainda que “foi durante o carnaval de 1919 que Nelson Rodrigues viu o umbigo de uma mulher pela primeira vez”, das foliãs que, desfilando, abandonavam as rígidas regras de vestimenta. Para o pesquisador, a primeira folia pós gripe trouxe mesmo algumas novidades. “É claro que essas mudanças não ocorrem igualmente em todos os grupos sociais. Mas alguma coisa ficou para as décadas seguintes”, explica.
O pesquisador cita ainda o caso dos ‘defloramentos’ que teriam ocorrido durante o carnaval. “Segundo descreveu o Carlos Heitor Cony, foram cerca de dois mil casos, e isso somente nas localidades próximas da Rua Santo Amaro. Mas há evidências de que, nas primeiras décadas do século passado, os ‘defloramentos’ já eram bastante numerosos no Rio. Então, sim, a epidemia havia transformado o cotidiano das pessoas. Mas as mudanças ocorridas deram-se em meio às estruturas mentais já existentes na cidade”, pondera.
Crime descrito no código penal entre 1890 e 1940, “deflorar uma mulher de menor idade (menos de 21 anos), empregando sedução, engano ou fraude” resultava em até quatro anos de prisão. O defloramento não era considerado um crime contra a pessoa, mas contra os costumes, como mostra uma análise de milhares de processos registrados no período e que hoje fazem parte do Arquivo Nacional.
“São processos em que moças, geralmente ao lado da mãe, acusavam homens de desvirginá-las sob a promessa de casamento. Nos processos há relatos sobre os encontros entre os amantes, muitas vezes sendo anexados bilhetes com poesias e mensagens amorosas. A mulher passava por um exame médico para comprovar o ato sexual e o rompimento do hímen. Em seguida, o homem era chamado para depor”, explica o site Que Republica é Essa?, num artigo sobre defloramento.
A maioria dos casos terminava com o acusado e a vítima se casando – foi o que aconteceu, por exemplo, com o compositor Noel Rosa, acusado pela mãe de Lindaura Martins Neves, que na época tinha 17 anos. Eles se casaram um mês depois e o processo foi arquivado.
Quando o homem recusava o casamento, a consequência era a prisão.
Em 1919, marchinhas pornográficas eram entoadas com toda a força pelos foliões – homens e mulheres, algo impensável até então. “Na minha casa não racha lenha / Na minha racha, na minha racha / Na minha casa não falta água / Na minha abunda”, cantavam as pessoas.
E duas décadas depois da festa, Carmem Miranda gravou “E o mundo não se acabou”, música de Assis Valente, inspirada no Carnaval de 1919.
“Pensei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir / E sem demora fui tratando / De aproveitar / Beijei a boca / De quem não devia / Peguei na mão / De quem não conhecia / Dancei um samba / Em traje de maiô / E o tal do mundo / Não se acabou”.
Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. (…) Toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. Cabe então a pergunta: – e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível.
Nelson Rodrigues, em Memórias: A menina sem estrela
Em um artigo intitulado O Carnaval, a peste e a espanhola, Ricardo dos Santos faz um paralelo entre as festas e o relaxamento das regras morais na gripe espanhola e em outros episódios semelhantes, como a peste negra, que afetou duramente a Europa por quase três séculos. “Há relatos de cidades que se isolavam por meses. Eram cidades muradas, então era simples impedir a entrada de pessoas de fora. E aí festas ocorriam somente com quem estava dentro dos muros”, conta.
Esse foi o caso das grandes festas criadas em Veneza após as epidemias de peste, e que existem até hoje. Contamos aqui essa história
Pergunto ao pesquisador se podemos esperar por uma festa igualmente intensa já no próximo carnaval, mas Ricardo dos Santos prefere não arriscar um palpite. “Parece que essa doença veio para ficar por um tempo. Os médicos e a ciência ainda estão aprendendo a lidar com o vírus. Por um lado, nós nunca tivemos tantos mecanismos para enfrentar um problema desses. Por outro, há um negacionismo muito grande, um movimento antivacina, então há uma contradição. O certo é que muita coisa vai mudar, muitos comportamentos,” reflete.
Pedro Ernesto Marinho, presidente do Cordão do Bola Preta, também não crava a data para uma grande festa e pede cautela, destacando que o momento agora é de isolamento e que é preciso ouvir os cientistas. Mas, quando a pandemia de coronavírus for finalmente superada, ele aposta que a história vai se repetir. “A gente vai comemorar adequadamente e com toda a pompa, explodir em muita alegria e confraternização. Isso vai acontecer outra vez, não tenho dúvida nenhuma”.
Enquanto a hora não chega, a Viradouro, atual campeã da Sapucaí, já anunciou que o tema de seu próximo carnaval vai ser uma releitura da folia de 1919, com o enredo “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. A mesma marchinha que fez história há um século.
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Eu confesso que vim ler esse artigo muito que despretensiosamente e fui duramente impactada com a quantidade de informação sobre este período e todas os desdobramentos que se seguiram. Quanta informação interessante!
Muito obrigada e parabéns pelo trabalho. Acompanho o 360 meridianos já faz um tempo e sempre separo pelo menos 1 artigo que chega no e-mail pra ler, tudo é muito bem feito sempre, mas este artigo está nota mil!
Abraços e sucesso!
Oi, Thalita.
Poxa, ganhei meu dia com esse comentário. Obrigado!
Esse tipo de conteúdo dá um trabalho enorme. Mas é por gente com você, que lê e gosta, que a gente escreve.
Abraço e tudo de bom!
O valor da assinatura está certo: R$ 2.400,00 por mês?
Oi, José. Tudo bem!
Não! R$ 2400 é o valor que arrecadamos ao todo, com todos os 160 assinantes. Em outras palavras, é o que recebemos.
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Abraço!
Boa tarde.Achei o máximo estas informações.
Aliás já acompanho este site tem muito tempo e tem me ajudado pra caramba.Na minha última viagem a Portugal,as dicas,roteiro e todas demais informações que eu necessitava foram pesquisadas e retiradas do 360meridianos.
Parabéns pelas últimas reportagens a respeito da Gripe Espanhola,seus prejuízos e consequências.Belissimo artigo com ilustrações inclusive.Como eu gosto desse tipo de documentário estou profundamente agradecida.
Oi, Leonice.
Desculpe-me pela demora em te responder: li seu comentário assim que foi publicado e fiquei muito feliz com ele. Obrigado, de coração.
Abraço!