No pequeno templo de uma cidade do interior, torres, flores e pássaros chineses ornamentam as paredes. As pinturas, com séculos de existência, transportam o turista para o Oriente, mas estão em Minas Gerais. Embora seja uma relação pouco conhecida, a cultura chinesa deixou marcas fortes em várias igrejas do período colonial. São as chinesices, termo que fala da imitação ou adoção de padrões chineses na arquitetura – e que tiverem seu auge durante o Ciclo do Ouro.
Dentre as igrejas mineiras, nenhuma é mais rica em chinesices que a de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, a apenas 15 quilômetros de Belo Horizonte. Construída no século 18 e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, essa simpática igrejinha guarda um interior impressionante, a ponto de ter sido chamada pelo arquiteto e historiador Sylvio de Vasconcellos (1916 – 1979) de “o próprio ouro das Minas”.
Por fora, cascalho rude; por dentro o mais valioso metal. Por fora posta em modéstias; por dentro esplendendo em belezas
Sylvio de Vasconcellos, no livro Minas: cidades barrocas
Na Igreja do Ó, detalhes em dourado mostram os pagodes, templos chineses com várias beiradas. Também em Sabará, a Igreja Matriz da Conceição guarda mais chinesices, desde pinturas vermelhas e com motivos orientais, que se destacam nas laterais da capela‐mor, até santos com olhos puxados e colunas nos formatos de dragões.
Interior da Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará Ricardo André Frantz, Wikimedia Commons
Catas Altas e Barão de Cocais, cidades que ficam nos arredores da capital mineira, também têm igrejas coloniais com pinturas e obras de influência chinesa. Em Milho Verde, a 250 km de Belo Horizonte, as chinesices marcam presença na Capela de Nossa Senhora dos Prazeres, embora algumas das obras tenham sido cobertas com tinta branca, como mostra um estudo de Alessandra Rosado, Marcos Gohn e Luiz Souza, da Escola de Belas Artes da UFMG. Na base de uma pilastra, um inconfundível dragão deixa claro a presença chinesa. O que é curioso, já que, como os pesquisadores lembram:
Para os cristãos, o dragão está associado a uma forma demoníaca, como aparece nas iconografias de São Miguel e de São Jorge. No leste asiático, ele é considerado uma divindade benevolente e está associado à fortuna, prosperidade e poder. É representado, geralmente, sem asas, na cor amarela e com corpo de serpente, sendo o restante do corpo constituído por partes provindas de outros oito animais.
Foto: Marcos Gohn
Em Mariana, dromedários, elefantes e tigres mostram um pedaço da Ásia, enquanto em Ouro Preto as capelas do Padre Faria e de Bom Jesus das Flores do Taquaral têm trabalhos de influência chinesa. Mas ali a maior quantidade delas pode ser encontrada na Igreja Matriz de Santa Efigênia, que fica no alto da ladeira de mesmo nome.
Segundo a tradição, esse templo foi construído por encomenda do escravo alforriado Chico Rei. Além de obras e traços chineses, a igreja conta com a pintura de um Papa Negro e vários elementos da religiosidade africana.
Igreja Matriz de Santa Efigênia, no alto da ladeira
“Quando os portugueses chegaram ao Brasil, outra nau desembarcou na região de Macau, na Ásia, nos anos 1500. E nas viagens de exploração, muitos portugueses trouxeram para cá chineses. Eram pessoas habilidosas com as artes e que foram contratadas para fazer a finalização das pinturas nas igrejas”, diz a historiadora Margareth Monteiro, que é vice-diretora do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto.
Ela explica que, como a maioria desses profissionais não estava no Brasil na condição de escravos, eles não eram vigiados e conseguiam colocar elementos chineses em suas obras. Após trabalharem por um tempo no Brasil, muitos chineses voltaram para sua terra. Alguns acabaram ficando por aqui, seja por escolha própria, seja por falta de condições para pagar a viagem de volta.
É preciso que a pessoa conheça um pouco da arte chinesa para entender o que são aqueles pássaros, pagodes, tigres, cavaleiros chineses e flores. Só assim para entender por que aquilo ali está presente numa arte barroca e cujos elementos são basicamente europeus.
O auge das chinesices ocorreu antes de nomes consagrados da arte brasileira começarem a trabalhar, como Aleijadinho e Mestre Ataíde. “Os chineses trabalhavam muito com preto, dourado e vermelho. É uma composição maravilhosa e que está nas igrejas mais famosas. Ali existe uma miscelânea das culturas negra, europeia e asiática.
Para achá-las, é preciso um olhar cuidadoso, já que as chinesices estão espalhadas pelos templos. “Quando se observa atentamente cada detalhe, você encontra uma planta, uma casa, o traço fino da influência chinesa, tudo isso se misturando com o elemento do barro”, diz ela, que destaca que os artistas chineses usavam muito marfim, conchas e madrepérolas, produtos que chegavam ao Brasil nos mesmos navios que os artistas.
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Olhar com atenção foi o que fez o fotógrafo Eduardo Trópia, que há 45 anos vive em Ouro Preto. Ao perambular pelas igrejas da cidade com uma amiga que é historiadora, ele descobriu as chinesices da Igreja de Santa Efigênia. “São quatro painéis enormes, no altar principal, muitas vezes ficam escondidos, porque é escuro, tem móveis na frente”, diz ele.
Convidado para participar de uma Bienal na China, o fotógrafo percorreu as igrejas de Ouro Preto para fotografar a influência oriental no Brasil Colônia. O resultado foi a Exposição Barroco x Chinesice, que ocorreu em 2017 no Museu da Inconfidência e conta com 13 fotografias. Para Eduardo Trópia, a recepção deixou claro que esse assunto é pouco conhecido até pelos moradores da cidade. “A exposição trouxe a curiosidade. Muita gente já tinha ouvido falar das chinesices, mas nunca tinha visto. E a maioria não sabia que isso existia. Como é algo muito pouco falado, quem sabe disso são historiadores ou gente ligada à área”, explica ele, que destaca que esse é “um pedaço da história brasileira que está num estágio muito embrionário de conhecimento”.
Eduardo Trópia
Agora, Eduardo planeja viajar pelo Brasil em busca de outras igrejas onde as chinesices estão presentes. E não só em Minas Gerais, mas também em Embu das Artes, município de São Paulo, e também em Pernambuco e na Bahia. Enquanto planeja para que o trabalho seja apresentado em Belo Horizonte e outras capitais brasileiras, o fotógrafo expõe os quadros de forma permanente em seu ateliê, em Ouro Preto.
Alguns dos lugares onde podem ser encontradas chinesices. Sabe de outras? Deixe um comentário!
A China do Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras, de José Roberto Teixeira Leite. Editora Unicamp, 1999.
Aspectos de uma pintura retabular com chinesice, na capela de Nossa Senhora dos Prazeres, Distrito de Milho Verde. De Marcos Gohn, Alessandra Rosado e Luiz Souza, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Adorei!
Ouvi dizer que no museu Nacional do RJ tem uma lista de batismo de chineses que vieram pro Brasil antes de D. João VI e que receberam a partir daí nomes portugueses.
ótimo. Eu tinha visto isso em Barão de Cocais MG .
Olá, Rafael!
Agradeço imensamente sobre a resenha muito bem escrita, envolvente leitura.
Esse é um tema que chamou minha atenção ao ver uma breve apresentação dos meus professores aqui na EBA-UFMG.
Queria adentrar mais nesse assunto e não estou conseguindo achar a tese de José Roberto Teixeira Leite, como vi que você atualizou o texto recentemente, achei que pudesse compartilhar a referência comigo. Desde já, agradeço! Sucesso!
Ouro Preto é realmente uma fonte inesgotável de história e arte. Não sabia da chinesice, adorei.
Um cidade incrível, Claudia.
Abraço.
Parabéns Rafael pela matéria sobre as chinesices no Barroco Mineiro.
Outra igreja que você pode encontrá-las em Minas é no Santuário do Bom Jesus de
Matozinhos, em Congonhas.
Eu gosto muito do 360!
Abraços,
Desirée Dias
Guia de Turismo
Oi, Desiree. Olha que legal, não sabia das chinesices em Congonhas! Obrigado pela informação. :)
Abraço e obrigado pelo comentário.