História e luta dos maniçobeiros no Piauí

Acocorado na meio da mata, o seu Nôca se lembrou da época em que o salário escorria da árvore. Para isso, ele usava um instrumento de madeira, a léga, para fazer um corte na raiz da maniçoba. Uma vez exposto ao ar, o líquido branco que saía daquela planta logo coagulava e estava prestes a se tornar um produto valioso: a borracha.

Assim como na Amazônia, a extração de látex a partir de árvores foi parte importante da economia do Piauí, chegando a representar 62% das exportações do estado. Mas se no norte do país a planta cobiçada era a seringueira, no sertão a estrela era a maniçoba, uma árvore que pode alcançar 12 metros de altura e é típica do semiárido brasileiro.

Seu Nôca (Foto: Fellipe Abreu)

A história do Ciclo da Maniçoba é parecida com o da Seringueira, mas muito menos conhecida. Do mesmo jeito que ocorreu na Amazônia, a extração do produto no Piauí teve dois pontos altos. O primeiro, mais forte, foi entre 1879 e 1912, quando a indústria automobilística começava a se desenvolver e a borracha brasileira passou a ser comercializada mundo afora. Carros substituíam carruagens, estradas eram abertas e ampliadas e uma infinidade de pneus se tornaram necessários.

Conhecida pelos indígenas há gerações, a produção de borracha a partir da selva foi levada para o Velho Mundo somente no século 18. O resultado, para o Brasil, foi uma corrida do ouro, digo, do látex. No norte, cidades foram fundadas, o Acre deixou a Bolívia para se tornar verde e amarelo e capitais amazônicas eram algumas das mais desenvolvidas do mundo, como Manaus e Belém.

Seiva escorrendo da Maniçoba (Foto: Fellipe Abreu)

Este texto faz parte do Origens BR, um projeto do 360meridianos que vai investigar a história – e a pré-história – do Brasil. Do período imediatamente anterior ao desembarque dos conquistadores até milhares de anos atrás. O Origens BR conta com o patrocínio da Seguros Promo e da Passagens Promo, empresas que tornaram essa investigação possível.

Os efeitos também foram sentidos no Piauí da borracha de maniçoba. A principal consequência foi uma intensa migração para o sudeste do estado, com destaque para os municípios de São Raimundo Nonato, São João do Piauí, Caracol e Canto do Buriti. A população aumentou muito, novas vilas foram criadas e o estilo de vida das pessoas foi alterado.

“No Piauí, a colonização se deu no século 18 e pela questão do gado. O colonizador veio pelo rio São Francisco, expulsou os índios, que fugiram para outras regiões. Eram então instaladas fazendas de gado”, explica a historiadora Ana Stela Negreiros Oliveira, autora do livro Catingueiros da Borracha: Vida de Maniçobeiro no Sudeste do Piauí.

Com a crescente demanda por borracha, o governo passou a incentivar a extração do produto. “Esse incentivo foi para qualquer planta que produzisse látex. Então foram várias: seringueira, maniçoba, mangabeira… Nesse momento, as terras que não eram ocupadas pelo gado passaram a ser pelos maniçobeiros. Eram terras sem proprietário, do estado. Como o sudeste do Piauí tinha muita maniçoba nativa, várias famílias vieram de outros estados para cá, da Bahia, Alagoas, Ceará e principalmente de Pernambuco.”, conta a pesquisadora.

A biopirataria nem tinha esse nome ainda, mas rapidamente causou estragos na economia do Brasil. É que o inglês Henry Wickham levou 70 mil sementes de seringueira para Londres. Transportadas de lá para as colônias britânicas no sudeste asiático, logo a produção de borracha na Ásia se tornou muito mais competitiva que a brasileira. Veio o declínio, mas o Ciclo da Borracha ainda teve um novo pico, durante a Segunda Guerra Mundial, quando tropas japonesas passaram a controlar o escoamento da produção asiática.

Nesse meio tempo os maniçobeiros continuaram no Piauí. “A maioria dos trabalhadores migrantes chegou na primeira fase da borracha, isto é, no início do século 20, e muitos de seus filhos permaneceram na atividade até o final dos anos 1940. Grande parte herdou o trabalho do pai ou da mãe e, entre os dois períodos de grande comercialização do produto eles continuaram fazendo a extração, apesar da pouca procura, mas alternando-a com a agricultura de subsistência”, explica Ana Stela.

O Ciclo da Maniçoba no Piauí

“A gente trabalhava na mata fechada”, relembra seu Nôca, que diz que os maniçobeiros limpavam 1200 pés a cada temporada. Um buraco era feito no chão, perto da raiz da árvore, e preenchido com argila impermeável. A seiva gotejava e o líquido era, lentamente, acumulado no buraco. Três dias depois era hora de passar de árvore em árvore, recolhendo o produto, que nessa etapa é conhecido como lapa.

Agora aposentado, seu Nôca aceitou prontamente o convite para nos acompanhar até a Serra Branca, que era o principal reduto dos maniçobeiros e hoje faz parte do Parque Nacional Serra da Capivara. Enquanto ele nos mostrava uma maniçoba e explicava como era feita a extração, perguntei quanto era possível ganhar como maniçobeiro. “A gente trabalhava 15 dias. Pagava todas as despesas e ainda dava dinheiro pra comprar uma novilha, mas isso dependia do maniçobeiro. Uns trabalhavam muito, outros pouco. Eu apanhava uns 40 a 50 quilos, era dos mais moles”, brinca seu Nôca.

O ciclo da borracha, que ergueu teatros, pontes e fez bulevares na Amazônia, não era sinônimo de riqueza para quem trabalhava na extração do produto. “A principal relação de trabalho na região era a barraquista-maniçobeiro. O barraquista, que geralmente era um comerciante e possuía um relativo poder aquisitivo, demarcava uma área e arregimentava um certo número de trabalhadores. Ele fornecia tudo que o maniçobeiro necessitava e este em troca vendia-lhe o produto do seu trabalho, sempre a um preço menor. A relação de exploração era favorecida pelo controle dos produtos necessários à alimentação do trabalhador e de sua família. Esta era a condição imposta”, explica a pesquisadora Ana Stela. Relatos de médicos do Instituto Oswaldo Cruz que passaram pelo Piauí no começo do século 20 dizem que os alimentos vendidos pelos barraquistas custavam o dobro ou até três vezes mais do que o preço que seria normal.

Uma vez recolhido, o produto seguia até Petrolina e Juazeiro, onde era novamente comercializado. A distância de 300 km era percorrida pelos tropeiros, em comboios de burros. A viagem chegada a durar quatro dias. Foi só na metade do século 20, já no segundo pico da maniçoba, que os carregamentos passaram a ser transportados em caminhões.

(Foto: Fellipe Abreu)

Dia a dia do maniçobeiro

Embora a maniçoba resista bem à seca e produza látex de forma constante, a melhor época para os trabalhadores era entre março e setembro. No período da extração, vários maniçobeiros deixavam suas casas e iam morar em tocas – abrigos formados nas pedras e que ficavam mais próximos das maniçobas nativas. É por isso que muitas das tocas da região levam, até hoje, o nome de trabalhadores. A Toca do João Sabino, que visitamos, era uma das mais animadas. E tinha um diferencial: aquela foi uma moradia permanente, e não apenas durante o período de extração.

“Era uma família com mais de 30 pessoas, todas morando nessa toca. Tinha forno de fazer a farinha, tinha fogão, as bancas de potes, pra água ficar sempre fria. Tinha de tudo aqui. E o forró também, sempre no festejo de São João, quando o povo descia pra cá. Porque o São João daqui de Serra Branca era muito falado, todo mundo dançava, 200 pessoas.”

Seu Nôca – Maniçobeiro

Seu Nôca na Toca do João Sabino(Foto: Fellipe Abreu)

De tempos em tempos, um padre ia até a Serra Branca, montado num burro. Era mais um motivo para festa: o período em que os maniçobeiros celebravam casamentos e batizados. A Toca do João Sabino servia também de ponto de venda do produto, que era negociado com barraquistas.

Em geral, não havia móveis dentro das tocas e os maniçobeiros dormiam no chão ou em rede. Cada toca tinha dois cômodos, que eram fechados com paredes de barro. Homens, mulheres e crianças trabalhavam extraindo a borracha da maniçoba. Isso era feito sempre em grupo, para ajudar na proteção contra ataques de animais, principalmente cobras e onças. “A maioria dos trabalhadores tinha uma alimentação precária, tendo como base a carne de sol, farinha de mandioca, rapadura e raras vezes se comia feijão. O hábito de comer legumes e frutas era pouco difundido”, explica Ana Stela.

A caça era outra fonte de alimentação e, no geral, conseguir comida na caatinga não era complicado. Tarefa difícil mesmo era garantir água. Fontes naturais, os chamados olhos d’água, eram sempre procurados, mas muitas vezes o maniçobeiro tinha que se acostumar com a sede e esperar pela visita do aguador, que percorria a serra vendendo o líquido.

Seu Nôca mostra o Olho d’água

Se faltava água para beber, imagina para outras coisas. E o cheiro dos maniçobeiros, tanto por conta da sujeira, quanto por causa do odor da maniçoba, gerava preconceito por parte dos moradores das cidades. “O cheiro ficava impregnado no trabalhador, que já passava vários dias sem tomar banho, por conta do grave problema de falta de água nas regiões produtoras”, explica Ana Stela Negreiros.

Por tudo isso, o estilo de vida dos maniçobeiros foi algo único e que não se repetiu em outras partes do Brasil.

Tem arte rupestre na minha toca!

O Ciclo da Maniçoba já estava perto do fim quando foi criado o Parque Nacional Serra da Capivara, em 1979. Mesmo assim, alguns maniçobeiros ainda viviam na área – de forma permanente ou não – até aquela década. Com a criação do parque, a extração de maniçoba dentro da Unidade de Conservação foi proibida, assim como a caça.

Veja também: Roteiro completo na Serra da Capivara + Petrolina ou Teresina
A história da Serra da Capivara e os verdadeiros descobridores do Brasil

O curioso é que algumas das tocas usadas por décadas pelos maniçobeiros guardam sinais de presença humana há milênios – e não são raras as pinturas rupestres por ali. O destaque fica por conta da Toca da Extrema II, onde estão pintadas cenas de caça e de dia a dia dos antigos habitantes do Piauí. Ali foi encontrado o único instrumento musical na região, uma flauta de madeira feita há 1500 anos.

(Foto: Fellipe Abreu)

Quando os maniçobeiros foram viver nas tocas, as pinturas rupestres se tornaram parte daquelas famílias, junto com todo o resto.

“Às vezes aquela pintura rupestre estava na sala da casa dos maniçobeiros. Eles falavam que eram coisas dos índios, não destruíram as pinturas, que ficaram preservadas. Podiam construir uma parede perto, mas elas ficaram ali. Fazia parte do ambiente deles, mas eles não destacam isso. Não falam ‘na minha casa tinha uma pintura bonita’. Era uma coisa normal mesmo, natural, fazia parte da vida deles”

Ana Stela Negreiros Oliveira – Historiadora

 

12 homens e a cena da árvore, da Toca da Extrema 2 (Foto: Fellipe Abreu)

Além das pinturas, os pesquisadores encontraram nas tocas jogos de tabuleiro gravados na rocha – eram os chamados jogos dos maniçobeiros, mas os trabalhadores garantiram que aquilo já estava ali antes deles chegarem. O mais comum é o jogo “A onça e os cachorros”, que lembra o Resta Um.

Variações desse jogo foram encontrados no Peru, onde era praticado pelos incas. “O jogo da onça e os cachorros se popularizou no Brasil entre as diversas etnias indígenas, com tabuleiros desenhados no próprio chão, tendo pedrinhas ou sementes como peças. Esse jogo é conhecido pelos índios Bororos como Adugo e pelos Guaranis como Jaguá ixive”, explica Ana Stela.

O Caminho dos Maniçobeiros

Em 2014, o Parque Nacional Serra da Capivara inaugurou um circuito turístico que reconta essa história. É o Caminho dos Maniçobeiros, na Serra Branca. A trilha foi criada pela Fundação Museu do Homem Americano, co-administradora do parque, com apoio da Petrobras. Tocas foram revitalizadas e sinalizadas. A do João Sabino ganhou novos muros de barro, para mostrar como era a estrutura na época dos maniçobeiros.

A criação do circuito foi baseada nos estudos da Ana Stela, que destaca a importância da medida para a região. “Com isso, o maniçobeiro virou uma categoria social. Você fala com seu Nôca e descobre que agora ele frequentemente vai com alunos de escolas até Serra Branca. E outro dia a prefeitura resolveu homenagear varias categorias. E o representante do trabalhador de São Raimundo Nonato foi um maniçobeiro. Hoje eles são chamados para debater em universidades, ganharam voz, estão falando, melhorou até a autoestima deles, diz ela.

Seu Nôca e a luta pelo Museu Novo Zabelê (Foto: Fellipe Abreu)

Outro passo importante para a preservação da memória é a criação do Museu do Novo Zabelê, uma comunidade de maniçobeiros que surgiu no começo do século 20, mas que teve que mudar de lugar após a criação do Parque Nacional.

Como muitos dos moradores antigos não tinham a posse legal do terreno, as indenizações, quando pagas, foram quase sempre baixas. Os moradores só conseguiram um novo lar após uma invasão de terreno, acordada com um fazendeiro local. “O museu é importante porque relembra dos tempos passados, de como a gente se divertia, o que a gente usava em casa, os móveis, que hoje não existem mais, o radio velho. Vai ser o museu de recordação, pra gente lembrar do que vivemos, não de riqueza, mas de pobreza”, explica seu Nôca.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

Ver Comentários

  • Parabéns.
    Adorei esse artigo.
    Tenho muito carinho pela Serra da Capivara. Trabalhei vários anos na região com a pesquisa do meu mestrado. Povo muito bacana.
    Conheci também o grupo de pesquisa associado a Niede Guidon que realizaram pesquisas brilhantes.

  • Sensacional!
    Parabéns pelo trabalho. Quanta riqueza. Seu Nôca sempre presente. Já o conhecia de um documentário que tratava sobre a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara.

  • Interessante essa história da serra branca, meu pai ( seu Leônidas da silva) neto do João Sabino, me falava muito desse lugar. Sempre tive a curiosidade de conhecer a toca do meu bisavô, porém nunca deu certo. É muito bom saber que essa história tem algum valor cultural.

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Rafael Sette Câmara
Tags: OrigensBR

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