A cidade secreta nas Catacumbas de Paris

Em agosto de 2004, a Polícia de Paris entrou em pânico. A crise foi durante uma busca nas galerias que ficam debaixo da Praça do Trocadéro. Sim, a praça por onde passam milhões de pessoas por ano, afinal o lugar oferece a melhor vista da Torre Eiffel. Ao entrarem nas galerias, que teoricamente são de acesso proibido ao público, os policiais encontraram algo inesperado: um cinema.

Ocupando uma área de 400 metros quadrados, o cinema clandestino tinha até bar e restaurante e parecia ser usado com frequência. Pelo menos é o que indicavam as garrafas de whisky, os filmes e a ligação elétrica em funcionamento. Os oficiais saíram em busca de reforços. Ao voltarem, não encontraram nada – tudo tinha sido removido. No lugar, apenas um bilhete: “Não procurem”.

Essa é uma história real e pode ser encontrada em diversos jornais e sites de notícias, embora um ou outro aspecto varie de acordo com a fonte consultada. Há quem diga que a descoberta foi por acaso, durante uma operação de rotina do esquadrão de Polícia especializado em patrulhar o subterrâneo de Paris. Por outro lado, os donos do cinema garantem que a descoberta só foi possível porque um ex-membro do grupo deu com a língua nos dentes.

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E os policiais? Fizeram o quê? “Eles ficaram completamente loucos. Chamaram o esquadrão antibombas, cães farejadores, o esquadrão antiterrorismo. Levaram o caso para a rede nacional de TV, mas não tinham uma pista sequer de quem nós eramos”, declarou Lazar Klausmann ao The Guardian, duas semanas depois. Desde então, Lazar Klausmann – provavelmente um pseudônimo – virou o porta-voz da sociedade secreta que ergueu o cinema e organizou festivais clandestinos lá por anos.

“Opa. Pera aí! Você disse sociedade secreta?”

Sim, caro leitor. São os membros do La Mexicaine de Perforation, uma braço de um grupo secreto muito maior e que existe há mais de 30 anos em Paris, o UX, abreviatura de Urban eXperiment. Naquele ano, o La Mexicaine de Perforation organizava um festival de cinema clandestino debaixo do Trocadéro.

Na programação estavam clássicos como “Um Homem com uma Câmera”, do cineasta russo Dziga Vertov, filmes franceses das décadas de 1950 e 1960 e até obras dos anos 90, como “Clube da Luta”. Mas antes de falarmos mais sobre as atividades dessa sociedade secreta, um parênteses. Para entender melhor essa história, é preciso saber mais sobre outro segredo de Paris: as catacumbas.

O cinema ficava no subsolo dessa praça, vista do alto da Torre Eiffel

As Catacumbas de Paris

“Pare! Este é o Império da Morte”. É isso que você lê quando se aproxima de uma das principais entradas das Catacumbas de Paris, ponto turístico tradicional da cidade. Eu já te contei essa história aqui no blog, mas, caso você não tenha lido o relato, vou fazer um resumão.

Paris foi uma cidade do Império Romano. Após dois milênios de ocupação humana, a capital da França chegou ao século 18 com um problema de superlotação nos cemitérios. Em alguns casos, até 1.500 corpos dividiam a mesma tumba. Com isso, a cidade sofria com doenças. E, vamos concordar, epidemias só aumentavam o problema da falta de moradia dos mortos.

Entrada de um dos túneis das Catacumbas de Paris

A solução encontrada pelo Rei Luís 16 – sim, aquele que mais tarde foi decapitado pela Revolução Francesa – foi juntar um problema com o outro: ele ordenou a remoção dos ossos de milhões de parisienses, que foram abruptamente retirados dos cemitérios. Não há registros de como foi a conversa entre o responsável pela obra e o Rei, mas eu acho que deve ter sido assim:

“Mas onde eu jogo os ossos de 6 milhões de pessoas, ó, Majestade?”

“Ahhh, taca tudo naquelas galerias que ficam debaixo de Paris. Vou ali comer um brioche. Resolve isso”.

Paris tem 300 quilômetros de galerias subterrâneas. Conhecidas há séculos, elas foram um problema na mesma época em que os mortos aterrorizavam a cidade. No caso das galerias, a causa foi uma série de desabamentos. Essas galerias foram construídas por antigas mineradoras, que retiraram dali as pedras para construir Paris. Que cresceu, cresceu, cresceu… até ocupar toda a área acima das galerias.

É claro que nem todos os 300 quilômetros são cobertos por ossos – a maior parte desse lado B de Paris não virou morada de mortos. Ainda assim, é fácil entender porque o termo “catacumbas” passou a designar todas as galerias subterrâneas da cidade, não apenas a parte que virou o maior ossuário do planeta. Essa imagem abaixo tem mais impacto do que um corredor escuro, estreito e sem nada além de pó.

Ossos em trecho oficial das Catacumbas de Paris. Não, o subterrâneo de Paris não é todo assim.

As galerias tiveram diversos usos ao longo dos últimos dois séculos. Um dos mais divertidos deles foi inventado por estudantes universitários, principalmente os que viviam no Quartier Latin, um bairro de Paris. Eles usavam as galerias para organizar festas de arromba. Sim, o povo ia para debaixo da terra só para encher a cara.

O escritor norte-americano Ernest Hemingway, que viveu em Paris após a Primeira Guerra Mundial, fala até de bares que davam acesso às Catacumbas. O relato está no livro “Paris é uma Festa”.

Tantas festas de vivos no Império dos Mortos acabaram incomodando o Governo, que na década de 1950 proibiu o acesso às Catacumbas. Hoje, só pode ser visitado o trecho oficial, de dois quilômetros. Todo o resto é proibido e constantemente monitorado pelo esquadrão de polícia que existe só para isso. O que não significa que ninguém passe pela parte proibida das catacumbas, como fica claro pela descoberta do cinema clandestino, em 2004.

Segundo estimativas extra-oficiais, cerca de 300 parisienses vagam pelas catacumbas semanalmente. Quem é pego andando por essas bandas paga uma multa de 60 euros, mas logo é liberado. Há quem diga que os policias não se preocupam nem em confiscar os mapas usados pelos exploradores do submundo.

Trecho das catacumbas que pode ser vistado legalmente

Os cataphiles

As pessoas que vagam (ilegalmente) pelas Catacumbas de Paris têm nome e até verbete na Wikipédia: são os cataphiles. Eles entram por bueiros, estações de metrô ou até entradas criadas por outras gerações de exploradores.

Não é difícil achar relatos de quem se aventura assim. No site RFI, o jornalista Marco Oved conta como foi a experiência dele ao cometer uma contravenção em Paris. “A primeira coisa que você precisa é um guia”, explica ele. E isso não é fácil de achar, mesmo com a grande quantidade de sites que existem sobre o assunto. Afinal de contas, os verdadeiros peritos nas catacumbas estão num grupo secreto (calma, vamos chegar nesse ponto em breve).

Após pesquisar durante meses, o telefone do Marco tocou. Era uma sexta-feira, quase noite. “Vamos descer em uma hora. Se quiser ir, esteja pronto”, falaram com ele. Que topou, lógico. “O lugar é apertado e úmido, mas não é sujo. E, para o meu alívio, não vi ratos nem insetos. Alguns túneis tem dois metros de altura, outros a metade disso”.

Túnel alagado, nas catacumbas. Foto: Thomas Baselius, Wikimedia Commons

Para ser guiado até lá, o cara teve que prometer nunca contar onde fica a entrada. Apesar do segredo, todo fim de semana as Catacumbas lotam de exploradores. “Nós encontramos um grupo de pessoas jantando ao redor de uma pequena mesa de pedra, iluminada por um candelabro. Eles tinham queijo e escutavam música”, escreveu ele.

Outro relato interessante está no site Les Secrets de la Ville de Lumiere, disponível aqui. Nele, um casal de turistas norte-americanos conta como foram guiados por cataphiles ao subterrâneo de Paris. “Nós encontramos um cara vestindo uma camiseta haviana e sandálias. Ele estava tomando cerveja e disse que era um CataHawaiian”, escreveram eles.

Segundo o site The Independent, os cataphiles têm três regras:

1) O que vem para baixo precisa subir novamente. Ou seja, nada de descartar lixo nas Catacumbas.

2) “Nunca fale sobre sua vida acima da terra”. Os cataphiles mantém muitos dos aspectos de suas vidas em segredo.

3) “Nunca confie em ninguém”. Por isso, não espere ser convidado para visitar as catacumbas durante uma passagem rápida por Paris. Ao contrário do que rola na superfície, turistas são raros por ali.

Ossos humanos em túnel das catacumbas (Foto: Grégory Kerouac, Wikimedia Commons)

E ainda bem. Explorar um labirinto de 300 quilômetros não é tarefa para qualquer um. E sim, é perigoso. Ou você acha que a proibição de entrar lá é sem motivo? O maior risco é se perder lá embaixo e nunca mais achar o caminho de volta. Isso já aconteceu. A história mais famosa é de Philibert Aspairt. Em 1793, ele entrou nas catacumbas e se perdeu. Philibert  só foi encontrado 11 anos mais tarde. Morto.

Há quem diga que essa história é uma lenda urbana. De qualquer forma, o certificado de óbito é bem real, assim como uma tumba construída para ele lá embaixo. A epígrafe (foto abaixo) diz o seguinte: “Em memória de Philibert Aspairt, que se perdeu nessas galerias no dia 3 de novembro de 1793. Foi encontrado onze anos depois e enterrado no mesmo lugar”. Quer ver essa tumba com seus próprios olhos? Vá na parte oficial das Catacumbas. Basta enfrentar a fila e pagar oito euros.

A conclusão é óbvia: não entre na parte proibida das catacumbas. A não ser que você tenha um guia experiente no assunto, alguém que tenha um mapa. Sim, existem mapas. E muitos deles estão com membros de sociedades secretas de Paris.

Tumba de Philibert Aspairt (Foto: Rémi Villalongue, Wikimedia Commons)

As sociedades secretas do submundo de Paris

Tudo começou em 1981. Naquele ano, seis adolescentes entraram nas Catacumbas. A partir de uma das galerias, conseguiram invadir o subsolo de um prédio do governo. Eles vagaram pelo prédio por horas, até encontrarem um tesouro: mapas que mostravam todos os túneis da cidade.

Esses adolescentes passaram os anos seguintes desbravando o desconhecido. Foram eles que fundaram, ainda na década de 80, o UX, grupo secreto citado no começo do texto – alguns deles não curtem o rótulo de “cataphiles”, afinal eles são mais que isso. Eles são exploradores urbanos. Com os mapas e o conhecimento acumulado durante anos, o grupo, agora formado por centenas de adultos, muitos deles artistas com mais de 40 anos, resolveu ajudar a cultura da cidade.

Hoje, o UX tem vários braços. O Untergunther é um deles, um grupo clandestino que invade prédios públicos e… restaura patrimônios que foram abandonados pelo governo. O trabalho mais famoso deles foi consertar o relógio do Panteão de Paris, que estava sem funcionar há cerca de 40 anos.

Já o La Mexicaine de Perforation é o braço que cuida de eventos culturais em lugares como as catacumbas. O cinema descoberto pela polícia foi apenas um dos muitos montados pelo grupo. Enquanto você lê este texto, com certeza existem outros cinemas do tipo, espalhados pelos subterrâneos da cidade.

Lazar Klausmann, o porta-voz do grupo, diz que as investigações da polícia nunca vão impedir o avanço das ações nos subterrâneos de Paris. E garante: eles têm certeza que não fazem nada de errado. “Com aquele cinema, nós deveríamos ter sido premiados por restaurar e preservar uma parte do patrimônio subterrâneo da França. As cavernas estavam em péssimo estado”, explicou ele, ainda em 2004. Eu concordo. Fora isso, a dúvida é saber como ser convidado para uma sessão de cinema nas catacumbas de Paris.

*Imagem destacada: Joshua Veitch-Michaelis, Wikimedia Commons 

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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