Ciénaga Grande: Como é a vida nas vilas aquáticas da Colômbia

Nas margens dos rios e lagos da região de Magdalena, na Colômbia, as aldeias palafíticas resistem às mudanças do tempo e aos desafios da modernidade. Trata-se de uma forma de vida única, levada adiante por comunidades inteiras construídas sobre as águas que convivem em harmonia com o ecossistema da Ciénaga Grande, uma das maiores áreas úmidas do país, abrangendo uma região de 4280 km² nas proximidades de Santa Marta, Caribe Colombiano.

Além de ser um reduto único de biodiversidade — um dos mais importantes da Colômbia — a Ciénaga Grande guarda também a cultura e o modo de vida dos povos anfíbios: são cerca de 20 mil pessoas que se sentem mais em casa sobre as águas que em terra firme, e têm na pesca e no turismo suas principais fontes de renda.

A História e a Biodiversidade da Ciénaga Grande

Ciénaga Grande, em português, significa ‘grande pântano’. A região é uma reserva da biosfera da Unesco e, na verdade, é composta de várias Ciénagas. Os povos palafíticos que visitamos ficam na Ciénaga de Pajarales.

Foi um grupo de pescadores em busca de um lugar com abundância de recursos para viver, centenas de anos atrás, que resolveu se instalar ali pela primeira vez. Logo, eles construíram as primeiras casas flutuantes e, com o tempo, esses lugares se transformaram em aldeias palafíticas completas e funcionais.

Aos poucos, uma cultura e modo de vida único também foram tomando forma, e as pessoas que nasceram e cresceram ali se tornaram mestres em viver sobre as águas. Essas tradições acabaram transformando a Ciénaga em não apenas uma reserva ambiental importantíssima, mas também um patrimônio vivo da cultura colombiana.

A região é lar de inúmeras espécies de animais e plantas, muitas das quais só existem ali. Mas tanta biodiversidade está em risco. Como tantos ecossistemas frágeis, a Ciénaga Grande também enfrenta uma série de desafios ambientais, muitos deles causados pelo desmatamento e degradação dos mangues ao redor, o que afeta a saúde das lagoas e dos rios.

Somado a isto, há ainda um grave problema de poluição da água, causada principalmente pelo descarte inadequado de resíduos e pela atividade agrícola nas regiões próximas. Isso coloca em risco não apenas as espécies endêmicas, mas também as comunidades, que dependem desse ambiente único para sua sobrevivência e preservação do modo de vida.

Para lidar com a degradação dos manguezais, diversos projetos de reflorestamento estão em execução nas comunidades. Como não há terra para agricultura, as mudas são plantadas em pequenas hortas construídas dentro das casas de palafita, antes de serem transferidas para o meio ambiente.

Os mangues são cruciais para a natureza e para as pessoas da Ciénaga Grande, pois atuam como barreira natural contra tempestades e são berçários para diversas espécies marinhas.

Buena Vista e Nueva Venecia, os povoados palafíticos

Com suas 63 casas coloridas de palafita, Buena Vista é a primeira parada e uma das comunidades mais pitorescas da região. Com pequenos barcos a motor, percorremos suas vias aquáticas para conhecer o dia a dia local.

As crianças ali aprendem a se mover sobre as águas antes mesmo de aprender a ler e tocam, com remos que chegam a três vezes o seu tamanho, canoas enormes de madeira para transitar pela vila.

Os barcos e remos são necessários para qualquer atividade diária: ir para a escola, ao mercadinho, à igreja ou ao bar. “E há mais bares que casas por aqui”, ri Sara, nossa guia local durante o passeio. Todos os produtos vendidos e consumidos ali também chegam de barco pelo rio, trazidos pelos moradores que vão até as cidades para vender os peixes e frutos do mar obtidos pela pesca.

Por causa da impossibilidade de produzir frutas e vegetais em quantidade e do clima quente que faria com que eles apodrecessem rapidamente se trazidos de fora, a alimentação é baseada em peixes e frutos do mar. Para acompanhar, arroz de coco e mandioca e, em vez de suco, a comida é servida com ‘água de panela’, ou água com rapadura, em português.

A pequena igreja católica, construída em madeira e pintada de azul, só abre as portas uma vez ao ano, quando o único padre designado na região chega para celebrar a missa mais importante. “No Natal? Na Páscoa?”, suponho. “Não, no dia 17 de julho, para as festas da Virgem do Carmén, a padroeira dos marinheiros e pescadores”, me conta a guia.

Ao todo, 1000 pessoas vivem em Buena Vista, grande parte delas crianças e adolescentes. Para atendê-las, ao lado da igreja fica uma pequena escola primária, construída para receber os estudantes de até nove anos. Depois disso, eles têm que navegar todos os dias até Nueva Venecia, o maior povoado palafítico da região e que conta também com maior infraestrutura. Há ainda um pequeno posto médico que abre três vezes por semana e um centro digital com computadores com acesso à internet. Tudo isso sobre as águas.

As instalações são abastecidas de luz por meio de cabos que passam assustadoramente por baixo das vias aquáticas. Mas, por mais irônico que seja, o mais difícil mesmo é o acesso à água potável. As águas da ciénaga são uma mistura de água doce e salgada e, por isso, impróprias para consumo. Por essa razão, toda a água consumida ali é mineral e trazida de fora.

De Buena Vista para Nueva Venecia, são cerca de 15 km pelas águas calmas da Ciénaga. De barco, a viagem dura poucos minutos. Ali, o cenário encontrado é bastante diferente. Com aproximadamente 3000 moradores, a vila foi fundada há mais de um século e conta com casas mais sóbrias e de aparência mais precária. Por outro lado, a cidade tem ainda mais estruturas flutuantes para atender a comunidade.

Ali fica, por exemplo, um amplo galpão que funciona como centro comunitário para festas, reuniões e eventos. Uma ilha artificial feita pelos próprios moradores para sustentar uma igreja é o único pedaço de terra firme encontrado em quilômetros. O espaço acabou se transformando em um campinho de futebol e bola de gude, um dos poucos lugares onde as crianças podem correr em vez de deslizar.

Mas isso deve mudar em breve. Ao lado dela, uma grande estrutura de metal vai sustentar uma quadra poliesportiva que será inaugurada nos próximos meses, graças ao investimento de ONGs internacionais interessadas em sustentar o modo de vida e o ecossistema da região.

Veja o vídeo abaixo para saber mais sobre a Ciénaga!

O Massacre dos Pescadores da Ciénaga Grande

Apesar do otimismo e da resiliência dos moradores da Ciénaga, o lugar já foi palco de uma triste história. No dia 22 de novembro de 2000, seis lanchas com 70 paramilitares colombianos invadiram a comunidade, saquearam as casas e mataram 39 pescadores em frente à igreja. O número de mortos, no entanto, é incerto e pode ultrapassar os 50, já que muitos desapareceram nas águas da Ciénaga.

O motivo alegado pelos assassinos foi a suposta relação dos moradores com os cartéis de droga da Colômbia, algo que nunca foi comprovado. O que acontecia é que, devido a sua posição estratégica, entre a Sierra Nevada de Santa Marta, o mar do Caribe e o rio Magdalena, o lugar acabava sendo usado como corredor fluvial para transportar todo tipo de contrabando, ainda que à revelia dos habitantes.

Esse episódio ficou conhecido como o Massacre dos Pescadores, e teve um impacto devastador na comunidade. Ainda hoje, é lembrado como um dos momentos mais chocantes do conflito armado colombiano.

A vontade da população era transformar o lugar em um campo santo, uma espécie de cemitério ou local de sepultamento, mas a ideia foi deixada de lado para preservar o espaço de recreação das crianças. Em vez disso, pedras com cruzes foram colocadas na base da igreja em memorial a cada um das vítimas.

Crianças jogam bolinha de gude em frente à Igreja, o único local em terra firme em quilômetros

Depois do massacre, a maior parte dos moradores deixaram Nueva Venecia, mas não conseguiram se acostumar com o estilo de vida das cidades. Trânsito, o tipo de trabalho disponível e outros aspectos da vida em terra firme eram, para eles, um grande desafio.

“Depois de um tempo, quando já não tinham mais recursos para seguir nas cidades, eles decidiram regressar. Foi assim que Nueva Venecia se transformou na primeira povoação palafitica resiliente da Colômbia”, conta Sara.

Até 2008, no entanto, a população era contra a entrada de visitantes. Qualquer pessoa de fora que chegasse por ali era vista como uma ameaça, um gatilho para o trauma que haviam vivido. Aos poucos, no entanto, eles começaram a ver o interesse das pessoas como uma oportunidade.

Hoje, o turismo de base comunitária se transformou em uma forma de geração de renda entre as mulheres da Ciénaga Grande que, antes, acabavam sem oportunidade de emprego, uma vez que a pesca é tradicionalmente conduzida pelos homens. Em pouco tempo, essa acabou se tornando a segunda maior atividade econômica da região.

Como conhecer a Ciénaga Grande, na Colômbia

Devido a sua proximidade com Cartagena das Índias, Barranquilla e Santa Marta, a Ciénaga é um destino ideal de bate-volta para quem está por essa região da Colômbia.

Saindo de Santa Marta, basta pegar um ônibus ou uma van no centro da cidade e descer no município de Ciénaga. Dali saem os passeios para as comunidades palafíticas, que ficam a aproximadamente 20 minutos de carro do centro até o porto e mais 1h30 de barco até o primeiro povoado.

O passeio pode ser feito acompanhado de guias locais, que têm acesso aos moradores e podem contar histórias únicas da vida na região. Dá para reservar o seu lugar por aqui.

As vilas também contam com uma pequena estrutura de albergues e guest houses, para quem busca uma experiência mais imersiva.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

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Natália Becattini

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