Agora que já passou o carnaval e o ano pode começar do lado de baixo do Equador, a bola da vez será a Copa do Mundo na Rússia. Eu sei, a maioria dos caras gays que eu conheço não dá a mínima para futebol (apesar de alguns gostarem bastante!). Mas o fato é que a imprensa começa a virar suas câmeras para o Kremlin, e o mundo passa a prestar atenção total na sede da Copa. E deveria mesmo porque a Rússia é um lugar fascinante.
Ali contém da Sibéria a Dostoiévski, de Czares a Stálin, da rota Transiberiana, que vai até a China, às famosas torres da Catedral Ortodoxa de São Basílio. Morro de vontade de congelar pelas ruas de Moscou ou São Petersburgo com um trago de vodka na mão. Apesar de tantas qualidades, a Rússia ressoa na cabeça de pessoas LGBTQI+ como um lugar a se temer. As notícias não são lá muito animadoras: em 2013 foi sancionada a chamada “Lei Antipropaganda”, que proíbe qualquer tipo de manifestação pública a favor da causa e prevê punições com prisão e multas pesadas. Em 2017, a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou a lei, alegando que ela incentiva práticas homofóbicas.
Para conhecer melhor a vida de um gay na Rússia, a coluna entrevistou o russo Roman Namazov, 29 anos e residente em Moscou, e o designer brasileiro Michel Costa, 30 anos, que também morou na capital por um ano, de agosto de 2012 a 2013. Percebi duas visões bastante distintas entre eles e gostei do papo, então preferi deixar no formato pergunta-resposta como forma de convidar vocês, leitores, para a conversa.
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Roman Namazov: Temos cidades grandes, vilarejos, pequenos condados, então há diferentes percepções sobre isso. Ser gay em Moscou, que é o meu caso, significa ter melhores oportunidades de viver a seu modo, mas ainda se deparando com riscos. O governo, vizinhos que não gostam de homossexuais… mas aqui você pode ir aos clubes, se vestir mais ou menos como quiser. Não acho que ser gay em Moscou seja tão diferente de qualquer outra grande cidade. Claro que você deve ser muito cuidadoso com o que expõe. Na minha vida, o problema não foi o contexto, mas interno. Eu sou assumido, mas não sinto que isso influencie na minha vida, no meu dia a dia. Não beijo homens na rua, não encontro caras na rua e convido para minha casa. A questão para mim era ser honesto com minha família e meus amigos próximos, não enganá-los. Sou aberto com as pessoas em quem posso confiar, mas não digo a qualquer um. Não vejo necessidade de dizer a todo mundo isso, talvez por causa da cultura. Nós não discutimos a vida privada com colegas de trabalho ou na Universidade porque não é algo bem visto na Rússia.
Michel Costa: Minha primeira relação com ser gay na Rússia aconteceu antes de eu me mudar para lá. Meu irmão, também gay, morou no país por muitos anos e me disse que meus alargadores chamariam muita atenção, porque tudo o que é diferente é visto com maus olhos. Eu achei que ele estava exagerando, imaginei ser só uma percepção dele, que é meio careta, mas aquilo me chamou a atenção. Nem cheguei no lugar ainda e já precisava adaptar uma parte de mim. Quando cheguei já estava com essa impressão, fui para lá um pouco antes da “Lei Antipropaganda” ser aprovada. Eu não tinha nenhuma tatuagem na época e meu irmão exagerou quanto aos alargadores, não foi um ponto de atenção. Mas ser estrangeiro na Rússia já é uma questão. Todo mundo olhava para a minha cara, tentando me localizar em algum país sem conseguir porque [nós brasileiros] somos essa mistura. Acho que o estranhamento das pessoas já existe só por eu não ter aquele estereótipo russo. É quase como se eles não tivessem nenhuma informação a respeito da homossexualidade. Para muita gente, gay simplesmente não existe na Rússia.
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Roman: Isso vem principalmente da Igreja Ortodoxa, em minha opinião. Essa ideologia da Igreja, que estereotipa de acordo com o tradicionalismo e deixa uma sensação de insegurança nas pessoas sobre o novo. Mas também vem do papel forte do Estado na história da Rússia, que continua a existir, e controla cada parte da sua vida, inclusive a privada. Isso causou muitos problemas. É uma fraqueza do povo russo achar que não consegue se governar, sempre precisam de algum tipo de poder superior para viver, seja para para construir suas vidas ou para fiscalizar em qual quarto vão passar a noite.
Roman: Nunca fui vítima de homofobia, mas na Rússia você pode ser vítima de violência simplesmente por ser diferente, não apenas gay. Por causa de suas preferências no futebol, ou as roupas que você usa, as cores do seu cabelo. Aqui os gays se vestem normalmente, não gritam ou se apresentam de maneira chamativa. É difícil diferenciar quem é gay, e por isso as vítimas geralmente são pessoas que tentam lutar pelos direitos, ou são muito abertas e não temem possíveis consequências. Sinto que é mais provável ser vítima por outros motivos do que por ser gay.
Michel: Vou contar os dois casos mais extremos que aconteceram próximos a mim. Logo que eu cheguei ouvi a notícia do assassinato de um rapaz gay, conhecido do meu irmão. Todo mundo sabia que ele era mais um caso, muito parecido, de alguém encontrado morto da mesma maneira. Dois caras entravam em apps de pegação para encontrar homens, torturar e matar, e isso já tinha acontecido com quatro pessoas – a polícia não associava um crime ao outro, mesmo existindo um padrão claro. Depois que vim embora fiquei sabendo que um grupo neonazista entrou em uma balada gay chamada Central Station, a mais conhecida da cidade. As baladas gay têm acesso super controlado, para entrar você precisa falar russo ou conhecer algum local. Há vários controles. Os vídeos das câmeras de segurança são bizarros: uns 30 caras invadem a balada do nada e muito rápido, o que é estranho justamente por causa desse controle rigoroso. Era um lugar que eu frequentava.
Roman: Eu não digo a ninguém que sou gay, não divido minhas histórias privadas com pessoas que não conheço, não beijo homens em público. Às vezes me sinto desconfortável se saio com um homem, seja para um encontro ou só com um amigo, porque sinto que pode acontecer algo ruim. Talvez não seja a questão das pessoas com quem eu convivo, mas um sentimento dentro de mim de insegurança.
Michel: Quando comecei a trabalhar em uma empresa russa, adicionei meus colegas de trabalho no Facebook. Aí evitava postar certas coisas ou restringia o conteúdo a eles porque tinha medo. No dia a dia eu não podia andar de mão dada, demonstrar afeto, não sabia se podia chegar em um cara ou não. Eu fiquei com um russo por 7 meses, e ele não era assumido. Todas as vezes que a gente se encontrava na rua nos cumprimentávamos com um aperto de mão. Ele era sempre muito formal, mesmo quando estávamos em casa sozinhos vendo um filme. Só conheci um amigo dele, e fui apresentado como amigo também. Era algo muito forte para ele. Uma vez eu ia ter uma festa do trabalho porque cumprimos metas, e eu o convidei para ir comigo. Ele recusou, dizendo que isso me prejudicaria porque seria muito claro que ele era meu namorado e as pessoas não iam entender.
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Roman: Claro que já pensei, meus amigos também. Mas somos muito próximos de nossa família, nosso país está no sangue. É difícil morar em outro lugar sem estar com a cabeça aqui. Não sei se eu teria uma vida melhor porque não me vejo sem tudo isso. Eu precisaria de um sinal de que as coisas saíram do controle e a única opção é sair. Nós não somos ligados com [os valores] ocidentais, somos mais ligados às nossas tradições. Dá para viver aqui, podemos fazer tudo o que queremos exceto o casamento. Não vejo a legalização acontecendo em 50, talvez 100 anos, mas preciso de motivos maiores para ir embora. As coisas estão melhorando no sentido que vivemos em um mundo globalizado e podemos falar com quem quisermos pela internet, ser abertos, encontrar uma comunidade que nos entende. Mas ao mesmo tempo posso dizer que está piorando no que se refere ao governo, às leis anti-gay com respaldo da opinião pública. Nossa sociedade está ficando mais agressiva, as pessoas estão menos tolerantes.
Michel: Eu voltei para o Brasil, mas posso contar o que vi. Meus amigos gays de lá se dividem em dois grupos: os que trabalham para ter muita grana e viajar quase todo final de semana para fora da Rússia; e amigos que só querem sair e se mudar para sempre. Quando voltei para o Brasil, percebi melhor a comparação. Eu estava privado de muita coisa, e quando cheguei aqui me senti na obrigação de apreciar e valorizar todas as liberdades que a gente tem. Obviamente eu vivo em uma bolha, mas mesmo assim o nível de preconceito é muito diferente. A experiência me tornou uma pessoa mais forte. Hoje eu me imponho melhor do que naquela época nas coisas do dia a dia, comentários, piadas. Meu posicionamento deu uma guinada depois da Rússia: a sensação foi de respirar depois de passar 5 minutos debaixo da água.
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SE EU FOSSE VOCE, IRIA DAR UM SALVE NOS SHEIKS DA ARABIA.
Uma das melhores entrevistas que já li... Por isso agradeço todos os dias por morar no Brasil e principalmente pela nossa constituição ser tão democrática.
Posso imaginar tais dificuldades, triste! Mas veja que não é só na Rússia não...Quando viajei para Berlim, e veja Berlim é considerada uma capital gay...?! Lá li no jornal que o preconceito é enorme , a exemplo de destruir a vida profissional da pessoa , exemplo dado foi do goleiro Oliver Khan da seleção Alemã de futebol, que qdo assumiu ser gay , perdeu patrocínios e sua carreira afundou de vez, então quem é gay lá ,por medo de perder na área do trabalho e sofrer preconceito nem se assume , foi o que li no jornal de lá .
Ótimo proposta apresentar esse tema no 360!
Infelizmente, existem muitos países em que ser livre pra ser quem você é, não é uma opção. O Brasil, embora muito liberal em alguns temas, em outros é tão conservador como a Rússia.
Ser gay no Brasil é bem mais fácil se você for cis, nada afeminado e residente de uma cidade grande. Certamente, nessas condições, você não sofrerá violência ou "muito preconceito". Qualquer caracteristica oposta a acima, você sofrerá preconceito praticamente igual ao q sofreria na Rússia.
Ou seja, no Brasil ou na Rússia é ok ser gay, desde que "não muito gay".
Oi, Pedro. Exato, também existe uma linha de quão gay se pode ser por aqui. Talvez seja mais extensa do que na Rússia, mas que não pode ser cruzada da mesma forma. Acho que as entrevistas, principalmente colocadas em perspectiva, suscitam discussões interessantes. Se puder, divulgue. Um abraço
Sei que não foi sua intenção porque acompanho o seu trabalho e do pessoal do 360 há muito tempo, mas começar o texto com piadinha sobre o estereótipo de gays não gostarem de futebol não é a melhor forma de iniciar um artigo cujo intuito é justamente discutir questões/pautas LGBTQI+.
Dito isto, é curioso ver como o pobre russo naturaliza todo o preconceito imposto pela sociedade russa "não deixo de fazer nada por ser gay, mas não faço nada que demonstre ou me faça parecer gay" e "gays não são atacados por serem pouco gays, só quando são muito gays". Muito triste... Tenho certeza que nós, brasileiros, somos mais livres que os russos - considerando que vivo na bolha de São Paulo - mas gays que vivem em países mais igualitários e inclusivos encontrarão aspectos do nosso comportamento como estes que encontrei no russo.
Olá Luciano! Obrigado pela visita e pela resposta. Gostaria de dizer que eu não coloquei o comentário como piada, não, é uma constatação do universo gay que me cerca. Mas ainda assim faço a ressalva logo em seguida que alguns gostam sim de futebol, e bastante (contrariando o estereótipo).
Quando coloquei as duas entrevistas em perspectiva percebi esse distanciamento das impressões, e a dificuldade de notar os muros que estão na nossa cabeça naturalizados, como você disse. Fico feliz que você tenha gostado e acompanhe a coluna, volte sempre.