A corda do Círio de Nazaré e a fé de milhões


“Você sente a fé de dois milhões de pessoas. É algo muito forte, mágico, você sente ela tremer na tua mão”. Assim o Edivaldo Cordeiro tentou responder uma pergunta complicada: qual é a sensação de segurar na corda do Círio de Nazaré? Ela é um dos símbolos máximos da maior romaria católica do mundo, local onde emoção, fé, calor e dor estão estampadas no rosto de cada romeiro.

Aos 26 anos, o Edivaldo está prestes a completar uma década de corda. Tudo começou com um voto para Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do Pará. “Fiz a primeira promessa para o meu pai, que estava internado. Prometi que, se ele saísse com saúde, então eu iria na corda. Depois, quando nasceu minha filha, ela tinha suspeita de anemia falciforme. Eu fiz outra promessa, de que se no próximo exame dela não aparecesse a doença, eu iria na corda novamente. Ela fez o exame e não apareceu nada. O Círio representa algo muito grande para mim, foi a cura da minha filha. É inexplicável”, diz ele.

Se, nos primeiros anos, o Edivaldo pagou sua promessa sozinho, após o exame negativo da filha ele ganhou a companhia da mulher, que antes também participava do Círio, mas na Cruz Vermelha. E há quatro anos eles entraram no Grupo Unidos pela Fé, que reúne amigos com anos de corda. Eles têm regulamento, camisa oficial e o orgulho de serem o grupo mais organizado que participa da corda do Círio de Nazaré.

Grupo Unidos pela Fé

“Quando a gente está na corda e se sente ali espremido, você não sente dor, mas euforia, felicidade, satisfação, dever cumprido”, conta o Edivaldo, que explica a função do grupo: eles ajudam uns aos outros, se revezam para que todos possam tomar fôlego por alguns instantes e rezam e cantam em conjunto. “Não pretendo sair do grupo, consegui amigos de verdade. Cada um tem sua promessa, são milagres mesmo que aconteceram na vida de cada um”, garante ele.

Na época em que surgiu, há 12 anos, o grupo envolvia 15 pessoas. Hoje são 80. A iniciativa foi de outro promesseiro experiente na corda, o Henrique Ferreira. E ele conta que a criação do Unidos Pela Fé também foi uma forma de pagar promessas. “Eu voltei do Círio e vi as famílias da vizinhança reunidas, mas a minha não se reunia nunca. Até que eu, chorando na sala de casa, pedi para Nossa Senhora. Eu queria trabalhar para poder proporcionar um almoço de Círio para minha família”. Dois anos depois o grupo foi criado. E uma grande festa é feita, todos os anos, na frente da casa do Henrique.

Para ele, a sensação de ir na corda é uma mistura difícil de explicar. “É uma emoção muito grande, um sacrifício que me causa dor, que me dá uma agonia, mas, ao mesmo tempo, eu estou feliz, me sinto em paz. Sinto um cansaço, mas também que eu tenho mais força. A gente não sabe de onde vem, é sobrenatural. É uma dor gostosa, em que você se supera a cada rua que passa”, explica ele.

A corda começou a fazer parte do Círio de Nazaré de forma insperada, ainda no século 19. É que uma enchente na Baía do Guajará alagou a orla, na região do Ver-o-Peso, o que fez a Berlinda, pequena carruagem que leva a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, atolar. Até aquele Círio, a Berlinda era puxada por cavalos, mas os animais não conseguiram fazê-la desatolar. Um comerciante emprestou uma corda, que foi amarrada ao carro que transportava a Santa, e os promesseiros passaram a puxá-la. A partir daí, a corda virou uma tradição, parte essencial de duas das 12 romarias da festa: ela está presente na Transladação, que ocorre na noite de sábado, e no Círio propriamente dito, na manhã de domingo.

São dois pedaços de corda, confeccionados em sisal torcido, cada um deles com 400 metros e 700 quilos. Além das ruas cheias e da própria Santa, nenhuma imagem simboliza melhor o Círio do que os romeiros que carregam, espremidos num calor amazônico, a corda. Achar seu lugar nesse grupo não é tarefa fácil. “Tem toda uma técnica para conseguir entrar na corda, não é de qualquer jeito”, garante o Edivaldo. Segundo uma pesquisa do Dieese, realizada durante o Círio de 2015, 70% dos romeiros que vão na corda têm experiência e já fazem isso há pelo menos cinco anos.

Os pesquisadores do Dieese calcularam que cada corda, seja no Círio ou na Trasladação, é levada por até 7600 pessoas. Vale destacar: sete mil e seiscentas pessoas para uma corda de apenas 400 metros. É muita gente. Por questões de segurança, a corda é dividida em cinco estações, que auxiliam no fluxo na procissão. Até 2004, quando ocorreu o Círio mais longo da história, a corda tinha o formato de U, o que também foi alterado – no formato linear, a procissão flui mais tranquilamente, principalmente ao passar por ruas estreitas.

Soldados separam uma área para a passagem da corda, durante a Trasladação 

O estudo também concluiu que há uma diferença entre o romeiro que participa da corda na Trasladação e aquele que vai na do Círio. Na Trasladação, que é a segunda maior romaria da festa e chega a reunir mais de um milhão de pessoas, predominam as mulheres (55%), enquanto no Círio a corda é dominada por homens (72%). Nos dois casos, o grupo da corda é formado por jovens, sendo que pelo menos 40% deles pagam algum voto relacionado com a saúde, seja a própria ou de algum familiar.

O simbolismo da corda é evidente: ela representa a ligação com o sagrado; tocá-la é participar da fé do Círio de forma intensa. Ela é tão importante que levar um pedaço para casa é a obsessão de muitos, o que faz com que a corda raramente termine a procissão intacta. No Círio de 2017, ela foi rompida e separada das estações às 9h50 da manhã, próxima à Travessa Rui Barbosa. A partir daí, pedaços de corda eram disputados por várias pessoas, ao mesmo tempo em que a romaria continuava.

Por conta disso, a Igreja e a Organização do Círio estimulam que a corda não seja cortada antes de chegar ao destino final, onde o Arcebispo dá uma benção. Um dos objetivos da campanha é evitar que pessoas levem objetos cortantes até a corda, o que poderia causar acidentes. E também desestimular um comércio desrespeitoso. É que já houve relatos de pessoas que se organizaram para romper a corda, vendendo seus pedaços na internet por até R$ 200. Isso, claro, para não falar de brigas e disputas mais intensas pelos pedaços da corda, que não são incomuns.

“A gente fica triste com essa situação, a festa não precisa disso”, diz o Edivaldo, ao lembrar que o Grupo Unidos Pela Fé também é contra o rompimento da corda antes do destino final. O Henrique completa: “Algumas pessoas perdem o foco, esquecem que o Círio é uma festa religiosa. Não é para brigar por pedaço de corda, não é para xingar um ao outro. Nós temos é que lavar nossa alma, sempre rezando”. Eles não são os únicos a pensar assim. Segundo a mesma pesquisa do Dieese, 97% dos romeiros são contra o corte da corda antes da hora.

E para muita gente a corda não é motivo de briga, mas algo para ser compartilhado. Parado na Avenida de Nazaré, logo depois da passagem da Berlinda, vi um homem que aparentava ter vinte e poucos anos chamar uma idosa, que estava numa cadeira de rodas e acompanhava a procissão da garagem de um hotel. “É para a senhora”, ele disse dando um pedaço da corda para uma mulher que ele nunca tinha visto na vida.

Situação parecida com a da Vivian, romeira que há 16 anos faz todo o trajeto do Círio. De joelhos. No fim da procissão, exausta e contando com a ajuda e motivação de voluntários e desconhecidos, ela subiu os últimos degraus que levavam até Nossa Senhora de Nazaré, que já tinha chegado à Basílica. Emocionada, ela tocou no vidro de proteção que guardava a imagem. Pendurados em seu pulso e numa das mãos estavam vários pedaços da corda, presentes de outros romeiros.

Leia os outros textos da Série Círio de Nazaré: 

O Círio de Nazaré e o chorar sem entender

As romarias do Círio de Nazaré e como organizar sua viagem

O Círio Fluvial e os barcos em romaria

O sagrado e o profano no Círio de Nazaré

*O 360meridianos viajou a convite da Secretaria de Turismo do Pará. / Imagem destacada: Osmar Arouck, Wikimedia Commons

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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