As irmãs Rosa e Carmen tinham acabado de sair da missa quando precisaram apelar para a santa. O susto foi no dia 7 de junho de 1942, quando as duas foram abordadas por um homem armado. Elas entregaram as bolsas e pediram proteção divina, levantando as mãos para o céu. Foram atendidas. O assaltante foi embora com as bolsas, onde estavam apenas algumas moedas e o missal, e as mulheres voltaram em segurança para casa.
Esse seria só mais um assalto na América Latina, uma ocasião que já estaria há muito esquecida até mesmo pelos parentes das vítimas, não tivesse o acontecimento gerado um quadro. Gratas pela proteção da Virgem de San Juan de los Lagos, as irmãs encomendaram um ex-voto, uma pintura que retratava o acontecido e dava graças. Assim como milhares de mexicanos, as irmãs levaram o quadro para a igreja, o que garantiu a preservação da obra.
Veja também: Luta Livre Mexicana, esporte e espetáculo na Cidade do México
Onde ficar na Cidade do México: dicas de hotéis e bairros
A expressão ex-voto vem do latim e significa algo como “por uma promessa realizada”. O costume de dar graças existiu em diversas culturas, antes mesmo do cristianismo – há registros de ex-votos até em Roma, no Egito e na Grécia. Algo parecido também já estava presente em alguns povos pré-colombianos do México, mas foram os espanhóis que levaram o formato atual para o país. De 1500 em diante, milhares de ex-votos foram pintados no México. Há registros de que até o conquistador Hernán Cortés Pizarro mandou fazer um quadro, para agradecer por ter sobrevivido a uma picada de escorpião.
Os séculos 19 e 20 viram o costume se firmar de vez como uma parte da arte popular e religiosa do México. E tem de tudo: a cozinheira que agradece à santa pelo sucesso de seu restaurante. A mãe que dá graças pelo filho, que sobreviveu a um acidente de carro. O homem que diz muito obrigado por ter sobrevivido a uma doença, o outro que agradece por ter sido livrado de uma prisão injusta e até aquele que agradece a Deus pelo Viagra, que resolveu o problema da impotência sexual e salvou seu casamento. Tudo pintado de forma simples, quase ingênua, e quase sempre sem assinatura do artista contratado, que permanecia anônimo.
Os ex-votos mexicanos têm três características básicas: a cena sempre retrata a situação enfrentada pelo fiel e que exigiu a intermediação divina. Pode ser um assalto, uma doença, um acidente, uma tentação ou qualquer tragédia. No topo da imagem, normalmente flutuando, o artista pinta o santo que ajudou a pessoa naquela situação. Por fim, uma legenda, abaixo da pintura, costuma explicá-la e conter os nomes dos fiéis que tiveram o pedido atendido e que mandaram fazer a oferenda em forma de arte. Em geral os quadros são pequenos, de material barato e pintados na horizontal.
Quase todas as igrejas mexicanas guardam ex-votos, que também são chamados de retablos, palavra cujo significado remete ao local onde os quadros eram colocados, normalmente atrás do altar ou de alguma parede do templo. A Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, tem uma coleção de milhares deles. Ali, o melhor lugar para observá-los é no Museu do santuário, onde um corredor tem vários ex-votos, alguns deles com mais de um século, em exposição permanente. O acervo do Museu é de 2000 peças, todas catalogadas e devidamente preservadas.
Embora nenhum outro lugar tenha tanto cuidado com os ex-votos quanto a Basílica de Guadalupe, outras igrejas do país têm um número até maior de pinturas. No Santuário de Nossa Señora de San Juan de los Lagos, no estado de Jalisco, estão preservadas mais de duas mil quinhentas obras, e também há vários ex-votos nos Santuário de San Francisco de Asís e no de Santo Niño de Atocha, só para citar alguns.
Até por conta do caráter popular e simples dessas pinturas, muitas delas se perderam com a ação do tempo. Outras foram parar em acervos particulares – hoje, ex-votos muito antigos são comercializados por centenas de dólares. Com a chegada do século 20 e os efeitos da Revolução Mexicana, eles passaram a ser admirados como uma forma de expressão de arte popular nacional. Artistas reconhecidíssmos, como o casal Diego Rivera e Frida Kahlo, tinham coleções gigantescas de retablos.
Na Casa Azul, onde Frida nasceu, morou boa parte da vida e morreu, eram guardados 450 peças que foram adquiridas pela artista e seu marido ao longo da vida. Algumas delas estão em exposição no local, que na década de 50 foi transformado no Museu Frida Kalho. São pinturas produzidas entre 1842 e 1934, em geral para a Virgem do Rosario de Talpa.
Os ex-votos tiveram grande influência nos trabalhos dos dois artistas – e também de outros nomes importantes da arte mexicana. No caso de Frida, a influência é ainda mais evidente. Na obra “Retablo”, de 1940, Frida lembrou o acidente que a deixou com três fraturas na coluna, 11 na perna, impediu que ela tivesse filhos e levou a artista a fazer pelo menos 30 cirurgias.
Leia também: Museu Frida Kahlo, no México: visita e história
Retablo (1940, Frida Kahlo)
Na legenda da pintura, ela escreveu: “Os senhores Guillermo Kahlo e Matilde C. de Kahlo dão graças a Nossa Senhora das Dores por salvar nossa filha Frida de um acidente que ocorreu em 1925, na esquina de Cuahutemozin e Calzada de Tlalpah”.
Outros elementos dos ex-votos também estão presentes nas obras de Frida. Como o quadro que ela fez para o pai – e que tem uma legenda que lembra aquelas presentes nesse tipo de arte popular.
Retrato de mi padre (1952, de Frida Kahlo)
Obras como Mi nacimiento, de 1932, La cama volando, também de 1932, e El suicidio de Dorothy Hale, de 1938, são outras que trazem elementos que lembram ex-votos, seja a legenda, a presença de um ser divino acima da cena ou o estilo da pintura. E assim uma das mais tradicionais artes populares do México acabou influenciando o trabalho de artistas importantes, como a Frida.
Mi nacimiento (1932, de Frida Kahlo)
Os ex-votos também eram comuns em outros países europeus na época da Conquista e foram levados para diversas partes do Novo Mundo, embora o formato em que a arte assumiu no México seja único. No Brasil, Minas Gerais concentra a maior quantidade de ex-votos, com destaque para a Sala dos Milagres do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, a pouco mais de 1h de Belo Horizonte.
“Preparem-se para curtir o dia de hoje como um verdadeiro Rockstar”, disse o guia do…
Perdido nas águas turquesa do Caribe, o arquipélago de Guna Yala, ou San Blás —…
Nesse texto você descobre a história do Parque Vigeland em Oslo, na Noruega. Trata-se de…
Nas encostas da Sierra Nevada de Santa Marta, na Colômbia, um povo luta para preservar…
Você já ouviu falar na Santeria Cubana? Mas é muito provável que você esteja familiarizado…
“Eu estabeleci um ‘foot ball club’ onde a maioria dos jovens de Sheffield podem vir…
Ver Comentários
MUITO LEGAL ESSE TRABALHO TRAZENDO O EX-VOTO NA SUA EXPRESSÃO SINGELA E POPULAR DENTRO DOS SISTEMA DAS ARTES . ENCONTRA SE TANBEM NAS ARTE CONTEMPORANEA NA OBRA DE YVES KLEIN NOS ANOS SESSENTA , E RECENTEMENTE NA OBRA DO ARTISTA CONTEMPORANEA RAIMUNDO ROD
RIGUES.
Em.Juazeiro do Norte tem um museu de ex votos para o Padre Cícero. Mas são objetos que representam a graça alcançada, como muletas, vestidos de noiva, canudos de formatura e até camisas de futebol.
Sou doido pra conhecer Juazeiro do Norte, Anna!
Obrigado pelo comentário.
OOOOOOOOOOOW, Incrível!
Que bom que gostou, Gabriel.
Abraço.
Que bacana, Rafa!!
Eu aprendi o que são ex-votos ali em Tiradentes, no Museu da Liturgia, onde alguns deles são expostos. Só que quase todos são agradecendo por curas.
Muito interessante esses outros temas retratados no México! Ótimo post!
Abraço!
Eu me lembro de ver algo sobre isso em Congonhas, Gê. Mas não dá forma que vi no México, que é incrível.
Fico feliz que tenha gostado do post.
Abraço e obrigado pelo comentário.
Deve ser muito bonito na igreja Santuário de Nossa Señora de San Juan de Los lagos com tantas pinturas para se ver ótimo local para se viajar com a família irei visitar em breve.
Essa eu não conheci, mas vi a exposição dos ex-votos no Museu da Basílica de Guadalupe. Achei incrível.
Obrigado pelo comentário, Jonas.