Tudo começa com uma batida seca de uma mão. O garawon – tambor – soa por todo o pátio de uma casa do bairro París, no município de Livingston. Uma anciã dorme em uma cadeira à sombra e sorri sem abrir os olhos. O ritmo ganha força. Um homem surge com as sisiras – maracas -, cujo som parece imitar o sibilar de uma serpente. As janelas se abrem deixando passar o som. As pessoas vão se aproximando, com as palmas das mãos apontadas para o céu. Todos esperam a parte da canção que faz com que a multidão se agite. Aparece uma mulher, que se apresenta com um som agudo. Abre a boca, mas se mantém em silêncio até que surge a primeira palavra, que se propaga como uma corrente elétrica, contagiando tudo ao redor. O canto se mistura ao som da música do Caribe. Então surge a magia, renascem as palavras que estavam guardadas em um baú de lembranças. Expressões mortas voltam à vida. As crianças falam, através das canções, com seus antepassados, movendo os lábios perfeitamente sincronizados. Sua história, sua língua e sua identidade se transformam em música.
Livingston é um município do departamento de Izabal, na Guatemala. Parece mais uma foto tirada de um fundo de tela ou calendário de viagens. Ao seu lado, tranquilo, o Caribe move os barcos coloridos desde onde os meninos saltam para nadar. A umidade é visível em uma selva de um verde radioativo, tão intenso que parece tentar sair para respirar entre tantas palmeiras. A natureza que rodeia a cidade é tão exagerada que seu acesso por terra é impossível.
Mas o melhor de Labuga – Livingston – não é a paisagem. O lugar é um refúgio de multiculturalidade. Ali convivem cinco idiomas: Q’eqchi’, hindi, espanhol, inglês e garífuna. A vida nas ruas é intensa. Os incessantes tuk-tuks parecem ter um tanque de gasolina infinito. Não falta comida nas calçadas, o coco é o ingrediente principal da gastronomia. O artesanato tem muitas formas e cores, mas predominam os instrumentos, pois a música é um elemento essencial para a população de Livingston.
Os garinagu – garífunas – são os responsáveis por essa paisagem musical. Essa comunidade tem origem em Yutumein – San Vicente -, uma ilha do Caribe. Em 1635, dois barcos que levavam pessoas da África para escravizá-las na América naufragaram em frente à ilha, e os prisioneiros nas embarcações puderam nadar até a terra. Ali, foram recebidos pelos caribes, que povoavam a ilha naquela época, e passaram a viver e a produzir descendência com eles. Em 1795, os ingleses os expulsaram de San Vicente, e os garífunas saíram em busca de uma segunda oportunidade. Chegaram a Honduras e, dali, se deslocaram em direção à Guatemala, Belize e Nicarágua.
Um povo que vive resistindo não se desapega de suas raízes facilmente. Em 2001, a Unesco proclamou a língua, a dança e a música garífuna como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, mas eles não consideram isso um ato de generosidade. “O povo garífuna sempre esteve comprometido com sua cultura. O reconhecimento da Unesco não é um presente, mas o triunfo da nossa luta contínua”, diz Mery Lambei, professora e promotora cultural da língua garífuna. “Muitas vezes dizem que só sabemos dançar, mas por trás de nossas danças há uma história de resistência”, completa.
Para a cultura garífuna, a música é parte fundamental da vida. É a forma de se comunicar com seus antepassados, se despedir de seus entes queridos ou de mostrar sentimento que não poderiam se expressar de outra forma. A dança e a letra que acompanham a música contam sua história, e as canções são uma forma de ensinar ao mundo a visão que têm deles mesmos. A música é para eles uma ferramenta insubstituível de difusão e preservação da cultura.
E não apenas na teoria. O orgulho garífuna favoreceu em grande medida a preservação de sua língua. Passeando pelos bairros de Livingston, é possível escutar ainda muitos jovens falando em garífuna, algo pouco comum em outras comunidades nas quais existe uma língua minoritária. Talvez souberam utilizar uma característica comum entre todos, o amor pelo canto, para introduzir a cultura às novas gerações, fomentando o interesse pelas letras das canções através da facilidade de contágio que têm os refrões.
Os gêneros musicais tradicionalmente garífunas, como a punta ou a parranda, ainda têm um público ativo, tanto na hora de escutar quanto para produzir. Também é certeza que outras tendências musicais, como o rock e o reggaeton, cantadas em espanhol ou inglês, cada dia ganham mais terreno, introduzindo novos ritmos e uma finalidade mais comercial que sentimental. Ainda assim, a música garífuna resiste: “Tem a ver com a educação, tem a ver com conhecer sua origem, sua história. Se você me vem com mil canções e gêneros diferentes e eu conheço minha história, não vou me mover daqui”, diz Juan Carlos Sánchez, compositor de música tradicional parranda, um gênero no qual predomina o violão e que hoje sofre forte decadência. “Graças à musica tradicional, podemos manter vivas palavras que já não se escutam, as palavras que nossos avós usavam. Quando você canta em garífuna, só se escuta letra garífuna. É essa língua que devemos usar para sermos escutados por nossos antepassados”, explica Juan Carlos.
Introduzir a língua garífuna em um panorama musical mais atual é o que buscam artistas como Gouule Style. Esse músico e produtor cria canções com ritmos mais atuais, como o trap, o afrobeat e o reggae, populares entre os jovens, mas com letra garífuna. “Os jovens escutam as canções e se identificam com o ritmo. O idioma não importa, o importante é que o movimento esteja no ambiente. Por isso, a música com letra garífuna tem tantas possibilidades de ganhar o mundo como as cantadas em qualquer outra língua”, diz Gouule em seu estúdio, La Buga Records, onde muitos jovens garífunas vão para dar os primeiros passos na cena musical.
Eles sempre terão a música, o ritmo que une toda a família, as letras que se repetem inconscientemente na cabeça de avós e crianças. É como se fosse mais uma constante vital, um fator comum que se apresenta em sua genética, imprescindível para o funcionamento de seu corpo. Quando a música é resistência, é parte fundamental da identidade grupal de um povo, transcende para além de um momento de festa. Enquanto os pés não se cansarem de dançar a chumba, as mãos não se cansarem de dar vida à punta ou as palavras não escorreguem das cordas da guitarra que toca parranda, a cultura garífuna continuará enriquecendo o mundo.
Reportagem escrita por Alejandra Gayol e publicada originalmente no Projeto Wakaya. Traduzida para o 360meridianos por Natália Becattini.
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