Os tratores que apagaram a história e o fim do geoglifo Crichá

Uma história de centenas de anos apagada em poucas horas. Foi esse o destino do geoglifo Fazenda Crichá, sítio arqueológico que fica em Capixaba, cidade de nove mil habitantes nos arredores de Rio Branco, no Acre. Localizado dentro de uma área particular, mas protegido por lei, o Crichá foi aterrado com uma retroescavadeira e virou área de plantação.

A destruição foi denunciada pelo paleontólogo Alceu Ranzi. E admitida pelo proprietário, o fazendeiro Assuero Doca Veronez, presidente da Federação da Agricultura e Agropecuária do Acre. Segundo ele, o aterramento do sítio milenar foi sem querer, “por erro do capataz e do tratorista”.

A fazenda foi embargada pelo IPHAN. Em entrevistas para a Folha de São Paulo e para a National Geographic, Veronez reclamou da medida e disse que aguardava orientações para “mitigar ou reparar” o dano. O pecuarista ainda diminuiu o problema: “O sítio arqueológico é semelhante a centenas de outros existentes na região. Se existem centenas de geoglifos semelhantes, no meu entendimento a gravidade do fato tem uma importância relativa”, afirmou para a National Geographic.

As declarações são contestadas por especialistas, que entendem que o dano é irreparável e enorme — e que não existia outro geoglifo semelhante ao Fazenda Crichá entre as quase mil estruturas que já foram localizadas na Amazônia. Além disso, uma nota técnica do IPHAN enviada ao Ministério Público refuta a versão de que o aterramento teria sido um acidente.

O que são os geoglifos e por que eles são importantes?

Eu estive no Acre em novembro de 2019, dentro do projeto Origens BR, uma expedição pela história e pré-história do Brasil. A viagem virou uma reportagem sobre os geoglifos amazônicos aqui no 360meridianos e outra no YouTube.

Na época, eu e o fotógrafo Fellipe Abreu visitamos cerca de 20 geoglifos ao longo das BRs 357 e 317, entre Rio Branco e Xapuri — a terra de Chico Mendes. Estávamos acompanhados pela arqueóloga Antonia Barbosa, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) do Acre e que realiza pesquisas sobre o assunto há anos.

Geoglifo Jaco Sá, em foto de Fellipe Abreu

Ela nos explicou que geoglifos são figuras feitas pelo ser humano no solo, em geral em regiões planas. Os mais famosos são os de Nasca, no Peru, mas a Amazônia brasileira também está cheia desses sítios arqueológicos. Só no Acre já foram registrados cerca de 800 — a maior concentração desse tipo de estrutura no Brasil. Mato Grosso, Rondônia e Amazonas somam juntos outra centena, enquanto a Bolívia, em especial na fronteira com o Brasil, já catalogou pelo menos 40 deles. Alguns dos geoglifos têm mais de mil anos.

Segundo três pesquisadores com quem conversei, os geoglifos são a maior descoberta da arqueologia brasileira em décadas. Por seu tamanho e complexidade, as estruturas demonstram que a selva amazônica é povoada há milênios. E por grupos humanos complexos, bem maiores dos que vivem na região atualmente.

Só que durante muito tempo cientistas defenderam que isso era impossível. Essa era a tese da norte-americana Betty Meggers (1921-2012), uma das maiores especialistas no estudo de civilizações pré-colombianas na Amazônia, que defendia que a selva, o tipo de solo e outros fatores impediam o surgimento de grandes civilizações na região.

“Os construtores dos geoglifos eram pessoas organizadas, provavelmente seminômades ou então sedentários, porque para construir uma estrutura dessas, sendo que na época obviamente não havia os equipamentos que nós temos hoje, não pode ter sido só um pequeno grupo – e também não foi num curto espaço de tempo que construíram esses sítios. Então tinha que ser um povo bastante organizado para fazer formas geométricas com as médias e formatos perfeitos, ainda mais levando em consideração o clima, a vegetação e o tipo solo”.

Antonia Barbosa, arqueóloga do IPHAN, em entrevista de novembro de 2019

Outro geoglifo no Acre (Foto: Fellipe Abreu)

O que aconteceu com o geoglifo Fazenda Crichá?

No dia 10 de agosto, o Ministério Público Federal enviou um ofício à Superintendência do IPHAN no Acre. No documento, o MPF informa que instaurou inquérito para apurar a responsabilidade pelos danos ao geoglifo Fazenda Crichá. E pede que seja realizada uma perícia para, entre outras coisas, “avaliar se há possibilidade de recuperação dos danos ocasionados” e “valorar os danos decorrentes da intervenção”.

Veja também, na série Origens BR:

As conclusões da perícia, que já foi realizada pelo IPHAN, foram incluídas em nota técnica no dia 13 de agosto, em documento assinado por Antonia Barbosa. Nele, a arqueóloga contesta uma das afirmações do fazendeiro Assuero Doca Veronez, que disse que o material arqueológico continuava no mesmo local, bastando escavar. Para o IPHAN, “diferente de outros sítios amazônicos que possuem uma grande quantidade de vestígios cerâmicos, a importância dos geoglifos é dada nas suas estruturas de terra enquanto assinaturas culturais”.

O IPHAN também desmentiu a alegação de Veronez de que o dano não seria tão importante, uma vez que há centenas de sítios iguais no Acre. Para o órgão, não existe outro geoglifo como o Crichá.

“Destaca-se que sítios com a mesma quantidade de estruturas correspondem apenas a 1% do total de sítios identificados até o momento. (…) Ademais o Sítio Arqueológico Fazenda Crichá é singular dentre seu pares, uma vez que essa composição de formatos ou arranjo espacial é único, não havendo nenhum outro sítio com estas características”.

Nota técnica 10/2020/DIVTEC IPHAN-AC

É fácil entender isso. Basta comparar as imagens de satélite do sítio, feitas antes do aterramento, com as de outros geoglifos que ilustram esta reportagem.

A nota técnica do IPHAN traz também um histórico do sítio desde 2008, quando ele foi avistado pela primeira vez. Naquele ano, pesquisadores estimaram que o sítio arquelógico estava com “grau de integridade de mais de 75%”. O local era usado como pasto para gado, atividade que não compromete os geoglifos.

Em 2014, o órgão recebeu denúncia de que uma área próxima ao sítio estava sendo usada como plantação. Ao visitar o local, o IPHAN constatou que “uma porção (do círculo maior) foi destruída pelo processo da atividade agrícola”. Por isso, um termo de notificação foi entregue aos proprietários, que foram informados das “implicações penais quando da destruição dos sítios arqueológicos”.

Área do geoglifo aterrada (Foto: Acervo IPHAN)

O geoglifo permaneceu sem novos danos até 2019. Segundo o IPHAN, a versão de que o local teria sido tapado sem querer, por erro de um tratorista que trabalhava na área e não sabia da importância do geoglifo, não é verdadeira. A conclusão vem da perícia e também da análise de imagens de satélite feitas em setembro do ano passado.

“O aterramento não se deu de forma acidental ou mesmo não intencional, pois, há vegetação secundária do tipo gramínea no entorno e dentro das estruturas, se toda a área vesse sido arada de forma não intencional o que teríamos é um registro de uma área toda arada, não apenas áreas pontuais com solo exposto”.

Nota técnica 10/2020/DIVTEC IPHAN-AC

Em outras palavras, somente a área do sítio arqueológico foi alvo do trator. A nota lembra ainda que solo foi revirado, o que compromete a estratigrafia, que é o ramo da geologia que estuda as camadas do solo. Isso impossibilita estudos na área, que poderiam indicar quem foram, quando e por que antigos povos amazônicos fizeram o geoglifo Crichá.

O IPHAN conclui dizendo que “não há possibilidades de restauração das estruturas ou recuperação dos danos ocasionados ao geoglifo Fazenda Crichá”. E que, pela importância e singularidade do sítio, “o dano causado é imensurável”.

Antes e depois do aterramento, em imagens de satélite 

Como proteger os geoglifos?

Durante a expedição do Origens BR pelo Acre, em novembro de 2019, Jorge Mardini Sobrinho, superintendente do instituto, destacou os desafios de proteger os geoglifos. Para isso, o órgão foca na educação patrimonial e até tombou sítios arqueológicos semelhantes, uma forma de chamar atenção da comunidade para o valor histórico da área.

O turismo, capaz de gerar renda e valor para os sítios, é outra estratégia de proteção, mas a atividade ainda engatinha. Enquanto isso, outros sítios correm risco. Em 2019, uma imagem feita pela nossa equipe captou alterações em outros sítios, que estavam sendo usados como reservatórios de água para gado.

E há os casos de geoglifos cortados por estradas, embora seja importante lembrar que os sítios não eram conhecidos quando as rodovias foram feitas.

Geoglifo cortado por estrada, nos arredores de Xapuri (Foto: Fellipe Abreu)

Embora sejam completamente diferentes entre si, tanto na forma de construção quanto no objetivo, as Linhas de Nasca, no Peru, também são geoglifos. E os mais famosos do mundo, inscrições gravadas pelo ser humano e que mostram cerca de 300 animais.

Fica a pergunta: o que pensaríamos se um sítio de Nasca, apenas um, fosse destruído? E se fosse um sítio único e cuja “quantidade de estruturas estivesse presente em só 1% do total de sítios”?

Para saber mais sobre o tema

Sacralizando o Solo: O uso simbólico e prático dos Geoglifos Sul-Americanos

Esta obra é resultado de uma monografia de pós-graduação. Mas para compreender o incrível fenômeno dos geoglifos, não basta apenas pesquisar livros e textos. Torna-se necessário presenciar os geoglifos em seu contexto natural. O entorno geográfico diz muito ao pesquisador nesse caso específico. Então, posso dizer que esta obra é também resultado de longas viagens pelo deserto, montanhas e altiplanos sul-americanos. O leitor não vai encontrar nada parecido com esse texto, que se propôs ser inédito em sua abordagem, comparando três grandes grupos de geoglifos de nosso continente: os de Nazca (Peru), Acre (Brasil) e Atacama (Chile). O resultado foi uma pesquisa original, que revelou nuances e ideias inéditas sobre o tema.

Os geoglifos da América do Sul constituem um dos maiores mistérios da arqueologia mundial, e desvendar esse mistério é entregar-se a um complexo jogo da mente humana, que mistura rituais sofisticados, manipulação da natureza e necessidades básicas de sobrevivência. Afinal, por que os antigos povos das Américas precisavam dos geoglifos? Saiba mais: https://amzn.to/3doLs8y


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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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