O Edmar abriu um sorriso ao explicar como o nome do pai dele acabou batizando um sítio arqueológico. Estávamos falando sobre o geoglifo Jacó Sá, localizado a 40 quilômetros do centro de Rio Branco, no Acre, e que tem mais de mil anos. Em 2018, por conta de sua importância histórica e cultural, o Jacó Sá se tornou o primeiro geoglifo brasileiro a ser tombado como Patrimônio Nacional. “Enquanto existir mundo, o nome do meu pai vai sair na televisão, vai aparecer a imagem dele sempre que falar do geoglifo. E eu fico feliz com isso, ele deixou o nome dele aqui”, diz Edmar.
Geoglifos são figuras feitas pelo ser humano no solo, em geral em regiões planas. Os mais famosos são os de Nasca, no Peru, mas a Amazônia brasileira também está cheia desses sítios arqueológicos. Só no Acre já foram registrados cerca de 800 – a maior concentração desse tipo de estrutura no Brasil. Mato Grosso, Rondônia e Amazonas somam juntos outra centena, enquanto a Bolívia, em especial na fronteira com o Brasil, já catalogou pelo menos 40 deles.
Geoglifo Jacó Sá, perto de Rio Branco (Foto: Fellipe Abreu)
Este texto faz parte do Origens BR, um projeto do 360meridianos que vai investigar a história – e a pré-história – do Brasil. Do período imediatamente anterior ao desembarque dos conquistadores até milhares de anos atrás. O Origens BR conta com o patrocínio da Seguros Promo e da Passagens Promo, empresas que tornaram essa investigação possível.
Desembarcamos em Rio Branco e pegamos a estrada em direção ao interior do estado. Durante três dias, visitamos cerca de 20 geoglifos ao longo das BRs 357 e 317. Estávamos acompanhados pela Antonia Barbosa, arqueóloga do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) do Acre e que realiza pesquisas sobre o assunto há anos.
Rio Acre, em Rio Branco (Foto: Fellipe Abreu)
Na BR 317, que liga Rio Branco ao município de Boca do Acre, no Amazonas, dezenas de placas deixavam claro que estávamos num terreno repleto de passado. “O que nós sabemos é que os geoglifos foram feitos há mais de 1000 anos e que eles possuem diferentes formas geométricas. Foram construídos como lugares para rituais, locais cerimoniais. Os povos construtores não moravam dentro das estruturas, mas próximos delas”, explicou a Antonia.
Seguindo coordenadas geográficas, estacionamos o veículo. Ali, ao lado da rodovia, estava um geoglifo, mas foi preciso subir um drone para que conseguíssemos enxergar qualquer coisa além de elevações no terreno da fazenda ao lado. “Os sítios localizados no Acre são mais geométricos: circulares, quadrados, com tamanhos e dimensões exatas. Já os que estão em outros lugares, em geral, não têm formas muito geométricas, embora sejam feitos da mesma maneira”, disse Antonia. A arqueóloga também explicou que as semelhanças com os geoglifos de Nasca termina no nome. “Nesse caso, até a forma construtiva é diferente. Em Nasca são desenhos feitos no chão. E no Acre é escavado no chão. O tipo de solo e a finalidade também são outros”, diz ela.
Geoglifo Tequinho, com vários quadrados
Durante décadas, pesquisadores acreditaram que a Amazônia seria um lugar inóspito para o desenvolvimento de grandes grupos humanos. A arqueóloga norte-americana Betty Meggers (1921-2012), uma das maiores especialistas no estudo de civilizações pré-colombianas na Amazônia, defendia que a selva, o tipo de solo e outros fatores impediam o surgimento de grandes civilizações.
“O predomínio do método de cultivo itinerante nas baixadas amazônicas representa, portanto, uma adaptação às necessidades especiais do solo e do clima. O fato de que essa é a única técnica agrícola que pode ser usada indefinidamente, sem danos permanentes para o solo, explica seu emprego em todo o mundo tropical. Mas conseguir manter a fertilidade do solo tem, em contrapartida, e é esse o preço pago, uma concentração demográfica relativamente baixa e a instabilidade de fixação dessa população.”
Betty Meggers – Amazônia, a Ilusão de um Paraíso
Em geral, os geoglifos têm os nomes de fazendas, locais próximos ou proprietários do terreno onde são encontrados. Esses são os geoglifos da Fazenda Atlântica (Foto: Fellipe Abreu)
Meggers dizia que os povos amazônicos desenvolveram um complexo modo de vida, “impedindo que a população cresça ou se concentre a tal ponto que venha a pôr em perigo os recursos do meio ambiente local”. Os lugares com maior quantidade de pessoas seriam ao longo dos rios, como deixavam claro os relatos dos primeiros conquistadores que desceram o Amazonas e seus afluentes, tipo o Tapajós.
Alguns anos mais tarde, outros estudos começaram a levantar a hipótese de que a Floresta Amazônica tenha, afinal de contas, servido sim de moradia para grandes grupos humanos. Um desses estudos foi feito pela também norte-americana Anna Roosevelt, que escavou sítios na Ilha do Marajó e em Monte Alegre, ambos no Pará. Segundo a historiadora Maria Yedda Leite Linhares, a Amazônia “foi a área de maior concentração populacional da América no período imediatamente anterior ao contato com os conquistadores”. Já o arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger, que há anos comanda estudos no Xingu, calcula que a população amazônica antes da conquista tinha entre 4 e 10 milhões de pessoas. Hoje, a região tem cerca de 26 milhões de habitantes.
É neste contexto que os primeiros geoglifos do Acre foram descobertos, na década de 1970. Mas se passaram mais 20 anos até que as pesquisas realmente começassem, após o paleontólogo Alceu Ranzi visualizar, meio que por acaso, uma das estruturas – ele estava chegando em Rio Branco, num voo comercial. Quando retomados, boa parte dos estudos dos geoglifos foram feitos por outra mulher, a arqueóloga gaúcha Denise Schaan (1962 -2018).
Geoglifo Piçarreira, que fica às margens da BR 317 (Foto: Fellipe Abreu)
Hoje, dos quase 800, apenas 20 foram escavados. “São sítios arqueológicos gigantescos, então não tem como a gente escavar todas as estruturas. Falta recurso, falta material humano”, diz Antonia. As ferramentas de visualização de imagens por satélite, que ficaram mais acessíveis nos anos 90, facilitaram o estudo desses sítios e levaram ao descobrimento de centenas deles. Para os pesquisadores, a existência dessas enormes marcas no solo amazônico é mais uma prova de que a selva é densamente povoada há milênios.
“Os construtores dos geoglifos eram pessoas organizadas, provavelmente seminômades ou então sedentários, porque para construir uma estrutura dessas, sendo que na época obviamente não havia os equipamentos que nós temos hoje, não pode ter sido só um pequeno grupo – e também não foi num curto espaço de tempo que construíram esses sítios. Então tinha que ser um povo bastante organizado para fazer formas geométricas com as médias e formatos perfeitos, ainda mais levando em consideração o clima, a vegetação e o tipo solo”.
Antonia Barbosa, arqueóloga do IPHAN
Outra pesquisadora que tenta entender o que são os geoglifos é a Ivandra Rampanelli, com quem conversei pelo telefone. Ela destaca que os sítios começaram a ser construídos há dois mil anos e que mesmo séculos depois os povos locais seguiam fazendo marcas na terra – as construções foram interrompidas por volta de 1300 d.C, por motivos ainda desconhecidos.
Em média, cada geoglifo tem 100 m². A valeta de alguns alcança 5 metros e a largura chega a 14 – tudo isso pode variar de acordo com o estado de conservação dos sítios. “Muitos desses sítios arqueológicos foram encontrados em áreas hoje sem floresta, então acredita-se que nessa região existam muitos outros geoglifos”, diz a Ivandra.
“Um quadrado poderia ser agradecimento a alguma coisa cultural deles, a uma colheita boa, ou pela saúde de alguém. Seriam agradecimentos aos deuses, a religião deles. Existem estruturas de quadrado, quadrados dentro de círculos, um círculo dentro do outro, quadrado dentro do outro. E não há um padrão de localização ou uma distância comum entre eles, é aleatoriamente. Então a escolha do lugar onde se iria construir esses sítios arqueológicos pode ter sido algo cultural”.
Ivandra Rampanelli – Arqueóloga
Nos geoglifos já escavados foram encontrados materiais produzidos pelo ser humano, como urnas, potes e machados, embora em número reduzido. “Pode ser que a pequena quantidade encontrada seja porque eles utilizavam muitos materiais orgânicos, que se decompõem rapidamente”, explica Ivandra. Alguns desses artefatos estão expostos no Palácio Rio Branco, sede do governo do Acre, e outros fazem parte do acervo de instituições como o Museu da Borracha, mas ainda não estão expostos ao público.
Veja também, na série Origens BR:
• A Serra da Capivara e os verdadeiros descobridores do Brasil
• Roteiro completo na Serra da Capivara + Petrolina ou Teresina
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• Como funciona uma escavação arqueológica?
Objeto encontrado em escavação em geoglifo (foto: Fellipe Abreu)
O IPHAN é o órgão responsável por fiscalizar e cuidar da preservação dos geoglifos. Jorge Mardini Sobrinho, Superintendente do instituto no Acre, diz que um dos grandes desafios é a educação patrimonial, que envolve procurar os proprietários dos terrenos onde geoglifos foram encontrados e explicar a importância desses sítios e a necessidade de preservá-los. Muitos dos sítios estão em fazendas usadas como pasto para gado, o que, segundo estudos, não compromete a preservação das estruturas. O problema é a agricultura, em especial a feita em larga escala.
O Edmar, proprietário da fazenda onde está o geoglifo Jacó Sá, conta que não sabia o que era aquela construção até a chegada dos pesquisadores. “Eu tinha pensado até em tirar esse barro ou então entupir tudo para ficar igual, no mesmo nível”, conta ele.
“Quando eu cheguei aqui com meu pai, eu tinha 10 anos. Nós fizemos roçado para ter macaxeira, milho, arroz… Mas não sabíamos o que era essa estrutura, nós pensávamos que era obra da natureza. Só achava diferente porque não juntava água ali. E qualquer buraco que a gente faz no meio de um campo, a gente faz dele até bebedor para gado, porque enche totalmente. E esse aí não enche. Chove a noite todinha e no dia seguinte ele tá seco”.
Edmar Araújo de Queiroz – Proprietário da fazenda onde está o geoglifo Jacó Sá
A decisão do IPHAN de tombar o geoglifo Jacó Sá teve a ver também com a educação patrimonial: o tombamento colocou os geoglifos no noticiário nacional, tornando os sítios mais conhecidos, inclusive pelas comunidades onde eles existem. “Tem 800 geoglifos, mas escolhemos esse por uma série de prerrogativas técnicas: acessibilidade, o proprietário tem sensibilidade, cuida, recebe pessoas. É um sítio que vai servir de base para que a população reconheça e saiba que isso é importante”, explica Jorge Mardini Sobrinho. Ela conta ainda que os proprietários ficaram orgulhosos com o tombamento.
Não é comum isso, a pessoa ter um sítio e um órgão federal chegar e dizer: olha, a gente reconheceu, isso aqui tem uma importância. Isso traz toda uma educação, eles ficaram surpresos e valorizaram o local, o que era a nossa intenção (com o tombamento).
Jorge Mardini Sobrinho – Superintendente IPHAN Acre
Geoglifo Jacó Sá (Foto: Fellipe Abreu)
Embora não exista um estudo quantitativo, os geoglifos do Acre já tem despertado interesse de turistas, inclusive estrangeiros. Mas conhecer esses sítios arqueológicos milenares esbarra num problema prático: eles são visíveis apenas do alto. Hoje, a saída é sobrevoá-los, seja de táxi aéreo, seja de balão. Mas há um projeto piloto para a construção de um mirante com estrutura turística no geoglifo Jacó Sá.
Quando você viaja, vai visualizar algum patrimônio. E isso, do ponto de vista econômico, fica para a população local. O dinheiro que você leva gera recursos para a comunidade. No caso do geoglifo, não basta só preservar por preservar – a comunidade tem que ter algum retorno financeiro. (…) Por isso, a gente está tentando estabelecer essa estrutura de observação sem afetar o geoglifo, porque ele tem uma zona de amortecimento, então tem que ter muito cuidado com o sítio, com o numero de pessoas que o acessam, para não ocorrer pisoteio, não ter danos ao geoglifo.
Jorge Mardini Sobrinho – Superintendente IPHAN Acre
O Edmar e sua família aguardam ansiosamente pelo projeto, embora com uma certa descrença – as primeiras notícias sobre a torre de observação são de 2013 e o projeto é de 2009. “É um tesouro, mas que hoje não rende dinheiro pra gente. Tem essa expectativa de fazer o mirante, mas do jeito que tá ruim de dinheiro pro governo… é meio difícil. Se fizesse daria algum retorno. A gente trabalha com leite, poderíamos fazer queijo e vender, produzir fazer alguma coisa e vender para os turistas”, diz ele.
Veja também a série Origens BR no YouTube:
Episódio 1: A Serra da Capivara e seus segredos milenares
Episódio 2: A história de Luzia e dos povos de Lagoa Santa (MG)
Objeto encontrado em geoglifo no Acre (Foto: Fellipe Abreu)
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