Histórias de uma geração perdida

Poucos escritores são tão confundidos com a própria ficção como o americano Francis Scott Fitzgerald. Um dos narradores oficiais da Era do Jazz, durante os loucos anos 1920, ele era jovem, brilhante, rico, bem sucedido e bêbado. Não sempre, mas frequentemente.

Amante de carros e dinheiro – e isso exatamente no momento em que carros se tornaram disponíveis e ele tinha uma boa quantidade de grana – o escritor levou a vida como o maior personagem de seus romances. O norte-americano era casado com uma mulher igualmente importante dessa época, a também escritora Zelda Sayre. E, antes que você me pergunte, sim: a escritora foi a inspiração para o nome da outra Zelda, aquela da série de games da Nintendo.

O primeiro livro de Francis Scott Fitzgerald, “Este lado do paraíso”, foi publicado logo que ele voltou vencedor, junto com o restante dos Estados Unidos, da Primeira Guerra Mundial. Foi sucesso imediato, fazendo do escritor um assíduo frequentador da alta sociedade e membro ilustre da geração perdida. Esse termo foi cunhado pela escritora Gertrude Stein, que assim chamou a geração de jovens nascidos no final do século 20 e sobreviventes da Primeira Guerra Mundial.

Os membros da geração perdida levavam a vida de forma pessimista e sem muitos objetivos além da mesa de bar. “Você nunca teve o sentimento que sua vida está acontecendo e você não está aproveitando? Já notou que você viveu pelo menos metade do seu tempo?”, escreveu Ernest Hemingway, outro membro importante dessa geração, no livro O Sol Também se Levanta.

Banquetes, bebedeiras, festas sem fim, consumismo: assim era a vida desses escritores, que não por acaso logo migraram dos Estados Unidos para a Europa, já que no país natal deles ocorria a Lei Seca. Cenário imortalizado em livros como o Grande Gatsby, que se passa em Nova York, e Seis Contos da Era do Jazz. Do casal Scott e Zelda os relatos incluem ressacas, banhos em fontes, confusões com a polícia, prisões, danças nas mesas de restaurantes e até um folclórico passeio de táxi por Nova York. No teto do táxi. Zelda e Francis eram personagens frequentes das capas de jornais, o casal símbolo da geração.

Já no fim da vida (que foi curta, você já deve ter presumido), a situação do casal se complicou. Ela, que, garantem algumas fontes, era esquizofrênica, acabou internada em um hospício, após inúmeras tentativas de suicídio. Lá, Zelda escreveu Save Me the Waltz. A reação do marido não poderia ser pior e passou longe de reconhecer o talento da esposa: ele forçou-a a alterar partes da narrativa, que também tinha toques autobiográficos e falava, entre outras coisas, da vida do casal.

Ele acusou a esposa de usar ideias que vinha desenvolvendo para seu próximo livro, Suave é a Noite, que também tinha a relação do casal como pano de fundo – conta a história de um psiquiatra que vive um casamento frustrado com uma paciente e tem uma vida dedicada ao alcoolismo e aos excessos. Francis, que passou a carreira escrevendo sobre sua vida familiar, não gostou quando sua esposa fez o mesmo.

Sem dinheiro, ele passou a escrever roteiros para o cinema, arte emergente que buscava respaldo na literatura. Seu romance derradeiro, O Último Magnata, faz críticas ao cinema e ao sistema de Hollywood. Conta a história de um produtor de cinema nos anos 30, pós-crise de 29. Os escritores e roteiristas da trama sofrem as mesmas dificuldades que Fitzgerald na vida real.

O cenário já é outro: acabaram-se as festanças e bebedeiras e muitos ainda tentavam juntar os cacos do sonho americano, esfacelado pela crise de 29. O personagem central do livro só toma um porre, um recorde de abstinência para os padrões de Fitzgerald. Pena que ele não seguiu o exemplo. Seu fígado agradeceria.

Alcoólatra e com graves problemas de saúde, o autor morreu aos 44 anos. Já Zelda morreu num hospital psiquiátrico, durante um incêndio. O Último Magnata ficou incompleto, o que explica o aparente final feliz, pelo menos para Cecília, uma das narradoras da história. Terminado, o romance seria um retrato perfeito da época. Mas o personagem Fitzgerald morreu no meio da trama. Nas palavras de Zelda, em uma das cartas ao marido: “Não quero ver como me transformo em velha e feia… teríamos que morrer aos trinta”.

Ironicamente,  O Último Magnata não só foi adaptado para o cinema como também fez sucesso nas telonas. E também O Grande Gatsby, O Curioso caso de Benjamin Button e Suave é a Noite. O casal também aparece, assim como muitos da geração perdida, no livro Paris é uma Festa, de Hemingway. Obra que inspirou parcialmente Woody Allen no filme Meia-Noite em Paris, onde Hemingway, Picasso, Dalí, Gertrude Stein, Francis e Zelda Fitzgerald podem ser encontrados festejando.

O próprio Hemingway, um dos perdidos, disse certa vez  que “todas as gerações são perdidas”. É verdade. E a dos anos 1920 até hoje está cheia de histórias para contar.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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