A hora é do Gim: a estranha história da bebida do momento

“Uma gim tônica, por favor”, escutei a frase uma, duas, três vezes na mesma noite, até que perdi as contas. No início eu não entendi nada, confesso. Por que o gim era bebida onipresente nos bares, nas barracas na praia e até nas festinhas em Barcelona? Casas noturnas faziam promoções com a bebida em dose dupla ou a utilizavam como chamariz para atrair o público na entrada. “Deve ser coisa aqui do mediterrâneo”, pensei. Inocência minha. Eu não sabia ainda, mas acabava de desembarcar em cheio na febre do gim.

Meu primeiro contato com a gim tônica foi na faculdade e eu só a considerava uma bebida eficiente para manter o grau a noite inteira sem pagar cerveja a preço de balada. Bastava o esquenta no barzinho e uma gim tônica na boate para preservar o suado dinheiro que eu ganhava no estágio. Quando deixei de viver de bolsa, voltei minha atenção para as cervejas e nunca mais me lembrei dela. Afinal, gim era bebida de tiozão, não é mesmo? Era isso que todo mundo pensava.

A tendência de popularização do gim e dos drinks que levam o destilado como base começou lá pelos idos de 2011, ali mesmo, em Barcelona. De acordo com Érico de Angelis, co-criador da loja virtual The Gin Flavors, que comercializa diversas marcas da bebida, além de kits de coquetelaria e ingredientes para as receitas, foram os chefs catalães que deram o empurrãozinho inicial que mudou a imagem do gim: “Eles começaram essa onda de inovar com drinques diferentes, assim como fizeram com a gastronomia. E aí se espalhou pelo mundo”, explica.

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Antes disso, era difícil encontrar uma gim tônica bem servida, o que talvez explique a falta de interesse por elas no passado. Afinal, não basta misturar o gim com uma garrafa de água tônica, de qualquer jeito. A bebida é complexa e seu preparo deve obedecer ao passo a passo, como uma receita. A onda de popularidade acabou ajudando a melhorar a qualidade das gins tônicas servidas por aí e trouxe aos consumidores sabores e acompanhamentos que antes eram pouco conhecidos.

Obtido a partir do processo de destilação de diversos cereais, sendo o zimbro o ingrediente principal, o gim é uma bebida rica em sabores e aromas. Por isso, apreciadores o comparam com o vinho: a experiência muda completamente dependendo da quantidade de zimbro, ervas, cereais e frutas utilizadas na produção. Dá para encontrar notas de frutas cítricas, baunilha, manjericão e até coentro.

É importante levar em conta o tipo de gim que está sendo servido para encontrar os melhores acompanhamentos na hora de criar um drink. Além da gim tônica tradicional, que leva limão e água tônica, há também versões mais criativas e com frutas diversas, pimenta, pepino japonês e outros ingredientes inusitados.

Uma breve e estranha história do gim

De origem holandesa, o primeiro uso do gim foi como medicamento diurético, lá no século 16. Na época, a bebida era chamada de genever e era tipo um vinho bem amargo no qual eram colocadas diversas frutinhas para disfarçar o sabor. Só que, ao longo dos anos, todo mundo resolveu meter o dedo na receita e a bebida chegou ao século 17 causando todas na Inglaterra. Foi ali que o nome foi abreviado para “gim”, que o sabor e aroma foram aprimorados e que qualquer uso remotamente medicinal da mistura foi sumariamente esquecido.

Acontece que os ingleses amaram a bebida. Amaram com tanta intensidade que o final do século 17 é comumente batizado de “the gin crazy”. Na época, devido a políticas protecionistas que impulsionaram a produção de bebidas alcoólicas no país e a um bloqueio comercial imposto pelo rei William III contra a França (encarecendo os vinhos e o conhaque, por exemplo), era mais barato beber gim que cerveja. Foi então que a bebida conquistou o coração de todas as camadas sociais. Nos estratos mais baixos, pelo preço. Entre nobres e burgueses, pela modinha mesmo.

Foi na década de 1730 que o costume – que perdura até hoje – de combinar uma taça de gim quente com biscoito de gengibre, daqueles comuns no Natal, apareceu. “Sempre que o tempo virava, multidões se reuniam em torno das barracas e tendas que vendiam gim quente e biscoito de gengibre ao longo do Rio Tâmisa congelado”, conta James Brown, mestre da destilaria Sipmith, ao site Vinepairs. Estima-se que só em Londres eram produzidos mais de 10 milhões de galões de gim anualmente, e cada londrino bebia, sozinho, 14 galões por ano.

Foi mais ou menos na mesma época que os problemas da política de incentivo à produção da bebida começaram a se tornar grandiosos demais para serem ignorados. As taxas de alcoolismo na Inglaterra alcançaram níveis alarmantes, e muita gente culpava o preço do gim por isso. Anúncios que diziam ‘Bêbado por um penny, caindo de bêbado por um tuppence, palha limpa de graça’ circulavam por toda a cidade.

Todo mundo que já esteve em uma festança sabe muito bem que às vezes é preciso de um adulto responsável para suspender o álcool. Foi o que o governo fez: em 1751, foi aprovado o aumento dos impostos sobre os destilados e se começou a exigir licença para a produção da bebida, o que de uma só vez fez subir o custo da dose e minguar a oferta pelas ruas da cidade. É claro que isso não resolveu coisa nenhuma, mas propiciou o surgimento do mercado negro de gim e levou os antigos bebedores à loucura: teve gente se afundando em dívidas, vendendo os móveis de casa, vendendo filhas e esposas para a prostituição, abandonando a família e até mesmo cometendo suicídio e assassinatos em nome do gim.

No mesmo ano, o governo começou a incentivar o consumo de cerveja e chás e o ilustrador William Hogarth desenhou uma propaganda que pretendia contrapor as consequências do consumo de cerveja com o do gim. A figura “Gin Lane“, que capturava toda a decadente confusão que tomou as ruas de Londres na época, era exibida ao lado da festiva e amigável “Beer Street”. Por volta de 1830, beber cerveja voltou a ser mais barato que beber gim, e ela se tornou, em definitivo, a bebida nacional da Inglaterra.

Saiba mais: A história dos pubs ingleses

Mas o amor dos ingleses pela bebida nunca desapareceu. Elizabeth Bowes, mãe da atual rainha e avó do Príncipe Charles, tinha a fama de consumir uma garrafa de gim por dia e atribuía a esse hábito sua longevidade: ela viveu 102 anos – muito bem vividos, obrigada.

Foram necessários mais de dois séculos para que o gim voltasse aos holofotes, mas – esperamos -, dessa vez sem as catastróficas consequências do passado. No Brasil, a moda desembarcou há cerca de dois anos, quando receitas importadas do velho continente e outras que valorizam os ingredientes nacionais passaram a fazer parte da carta de coquetéis dos bares descolados de São Paulo e em outras capitais do país.

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Natália Becattini

Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na newsletter Migraciones e no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Você encontra tudo isso e mais um pouco no meu Site Oficial.

Ver Comentários

  • interessante como toda proibição abrupta causa a criação do mercado negro.
    o mesmo foi com a cocaína, que perdura até hoje.
    para existir uma proibição e recuperação da população diante do vício, não basta criminalizar, é algo complexo e de longo prazo.

    • É verdade, Márcio! Na minha opinião, criminalizar nunca é a saída. Regulamentar a venda e ter controle de quem e quantos são os usuários, criar políticas públicas de combate ao vício, tanto no aspecto da saúde, quanto na ressocialização dessa pessoa, me parecem sempre alternativas melhores...

      Um abraço e obrigada pelo comentário!

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Natália Becattini
Tags: Happy Hour

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