Annie Londonderry e a volta ao mundo em duas rodas

Os anos de 1890 foram revolucionários para as bicicletas. O transporte de duas rodas se modernizou, pedalar tornou-se mais fácil e os preços permitiam que pessoas de qualquer classe social a usassem como meio de transporte ou lazer. Susan B. Anthony, uma feminista, chegou a dizer que “a bicicleta ajudou a emancipar as mulheres mais que qualquer outra coisa no mundo”. Claro que isso não veio sem uma boa dose de polêmica. E no centro dessas discussões estava outra mulher: Annie Londonderry.

O nome verdadeiro dela era Annie Cohen Kopchovsky, uma judia nascida em Riga, atual capital da Letônia, por volta de 1870. Ela se mudou com a família para os Estados Unidos ainda bebê. Ao contrário das outras personagens das nossas histórias, Annie se casou aos 18 anos e tinha três filhos. Era uma dona de casa comum, que morava em Boston com a família.

Sua vida mudou quando dois homens ricos estavam num clube discutindo. Um deles acreditava que a mulher moderna (do século 19) poderia fazer qualquer coisas que um homem faria. O outro disse que não. Eles resolveram fazer uma aposta: uma mulher teria que dar uma volta ao mundo sozinha, de bicicleta, em 15 meses. Mas não era só isso. No caminho, ela deveria conseguir 5 mil dólares.

A volta ao mundo de Annie Londonderry

Ninguém sabe ao certo como Annie foi escolhida para cumprir a missão ou, ainda, o motivo para ela topar aquilo, uma vez que, além de ser “mãe de família”, ela nem sabia pedalar direito e só havia subido numa bicicleta umas três vezes na vida. Mas ainda assim, ela partiu. No dia 27 de junho de 1894, aos 24 anos, ela subiu numa bicicleta da marca Columbia, um modelo para mulheres que pesava cerca de 19 quilos, deixando escandalosamente os filhos e o marido para trás (ela voltaria para casa, 15 meses depois).

Na época, uma mulher deveria se vestir seguindo todo um código restrito. Então, Annie começou sua viagem usando uma longa saia, um corset apertado e blusa de gola alta. Carregava com ela somente uma muda de roupas e uma pistola de mão. Antes de iniciar a viagem, uma empresa chamada Londonderry Lithia Spring Water Company ofereceu 100 dólares de patrocínio. Para isso, ela deveria carregar uma placa com o nome da marca na bicicleta e também deveria adotar o nome Annie Londonderry. E foi assim que ela passou a ser conhecida.

Ilustração de Annie durante a viagem e fotos dela e da bicicleta Sterling. Crédito: Peter Zheutlin

A primeira parte do trajeto foi entre Nova York e Chicago. Ela levou 3 meses nesse caminho. Também perdeu nove quilos e percebeu que seria impossível continuar a viajar da forma como as pessoas esperavam que uma mulher respeitável se comportasse. A bicicleta feminina era muito pesada, então ela trocou por um modelo masculino, uma Sterling que pesava a metade do modelo inicial e ainda tinha marchas.

Ela também percebeu que sua roupa, longa e desconfortável, não servia para realizar qualquer esporte: então trocou as saias e o corset por um modelo de calças chamado bloomers, que seria o que chamamos de calça saruel. Mais tarde ela trocou as roupas de vez por vestimentas masculinas, que usou no resto da viagem.

A bicicleta mudou o mundo

Lembram da fala que eu usei no primeiro parágrafo, relacionando a bicicleta e emancipação feminina? Pois é, a bicicleta permitia que as mulheres, antes confinadas em casa, pudessem ir e vir sem precisar de ninguém. Elas descobriam a liberdade, expandiram seus horizontes para além de suas vizinhanças. Com isso, veio também outro questionamento: por que elas não podiam usar a roupa que desejassem?

Os bloomers foram criados como uma forma de facilitar a vida das mulheres que pedalavam por aí. Só que o uso dessas calças era considerado uma depravação por muitos, uma abominação. Havia até grupos de jovens rapazes que se comprometiam a nunca se aproximar de uma mulher capaz de usar tais vestimentas. Todo o vestuário feminino na época era uma forma de controlar as mulheres e enaltecer sua feminilidade. Mudar isso horrorizava muitas pessoas, que não achavam certo uma mulher se comportar como se tivesse os mesmos direitos que um homem. Vale lembrar que o final do século 19 marcou o início do movimento sufragista feminino. Mas foi somente em 1920 que as mulheres puderam votar nos Estados Unidos (no Brasil, só em 1932!).

Cartazes ingleses mostrando a polêmica das bloomers

Enfim, dá para entender o tamanho da comoção que a Annie Londonderry causou ao sair pedalando pelo mundo sozinha, vestida de homem. Quando ela chegou à França, em dezembro, teve problemas para entrar no país: os oficiais da fronteira desconfiaram da veracidade da história dela e confiscaram sua bicicleta. A imprensa francesa afirmou que Annie era muito musculosa para ser uma mulher. Com sua boa lábia, ela se virou e superou o problema.

Duas semanas depois, chegou em Marselha pedalando. De lá, pegou um navio chamado Sidney, que parou em diversos portos como Alexandria, Colombo, Cingapura, Saigon, Hong Kong, Shangai, Nagazaki e Kobe. Em cada um desses lugares, ela pegava a assinatura do consul americano, para provar que esteve lá.

Como ganhar dinheiro viajando

Se Londonderry já era notícia por conta de seus trajes, a forma que ela inventou para conseguir os 5000 dólares também foi bem polêmica. Além de mudar de sobrenome, ela encheu sua roupa com fitas com nomes de marcas, conseguindo assim vários contratos de publicidade. A propaganda que ficava do lado esquerdo do peito pagou 400 dólares. Pela fita na perna direita ela conseguiu 100 dólares. Os braços e as costas também tinham seus anunciantes.

O que o povo da época achou disso? Que era degradante uma mulher se exibir e circular com publicidade costurada em toda sua roupa e que, de certa forma, o fato dela ter que trabalhar deslegitimava a volta ao mundo. Imagina essas pessoas vendo as camisetas de qualquer esporte hoje em dia, todas cobertas com nome de anunciantes… Annie Londonderry, além de ser primeira mulher a dar a volta ao mundo de bicicleta, foi uma pioneira no marketing pessoal.

Para completar seu projeto de financiamento da viagem, ela também passou a vender fotos promocionais, souvenirs, lenços de seda e autógrafos. Annie também começou a contar histórias sobre sua viagem e seu passado para jornalistas e pessoas que encontrava pelo caminho. Mas ela não tinha o menor compromisso com a realidade, pelo contrário, passou a contar histórias fantásticas, e na maioria das vezes falsas: chegou a dizer que era órfã, herdeira rica, estudante de medicina, sobrinha de um senador, que se envolveu numa guerra, levou tiro, foi sequestrada, assaltada e perseguida por um tigre, entre outras intrépidas aventuras.

Uma nova mulher volta para casa

Ela terminou o trajeto em Boston, no dia 24 de setembro de 1895, 15 meses depois de partir. Mesmo com várias críticas, tipo de que ela tinha viajado mais com uma bicicleta do que usando uma, Annie Londonderry ganhou fama e reconhecimento como a primeira mulher a realizar o feito. Ela também calou a boca de muita gente ao vencer algumas corridas pedalando e deixando homens para trás.

Após o retorno, ela se mudou com a família para Nova York e virou jornalista do New York World, o mesmo jornal que tornou Nellie Bly célebre. Aliás, Londonderry chegou a assinar algumas matérias como “Nellie Bly Junior”. No primeiro texto que ela escreveu sobre sua volta ao mundo,  afirmou: “Sou uma jornalista e uma ‘nova mulher’, se é esse o termo que significa minha crença de que posso fazer qualquer coisa que um homem pode”. Na época, o termo “nova mulher” era usado para descrever feministas, mulheres independentes e bem educadas. Annie Londonderry, com sua coragem e capacidade de enfrentar todos os valores da época para realizar o que queria, foi considerada um exemplo para todas.

Infelizmente, a fama dela passou e ela morreu em 1947, sem ser muito lembrada. Em 2007, o sobrinho-bisneto de Annie decidiu escrever um livro sobre as aventuras de sua antiga parente: Around the World on Two Wheels: Annie Londonderry’s Extraordinary Ride. Em 2013, foi lançado o documentário chamado The New Woman – Annie “Londonderry” Kopchovsky, produzido por Gillian Klempner Willman.

*Crédito Imagem Destacada: Peter Zheutlin

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

Ver Comentários

  • Olá Luiza, como vai?
    Procurando referências sobre viajar sozinha, encontrei seu blog e gosto muito de tudo que vocês postam. Sou uma jovem de 57 anos louca para cair no mundo, mas sem companhia. Confesso que este blog está me incentivando bastante e logo realizarei esse desejo.
    Obrigada por partilhar conosco suas aventuras deliciosas. Beijos na alma.

  • Oi, Luiza!

    Parabéns pela série sobre mulheres! Muito legal mesmo!

    Na área de desenvolvimento de software e tecnologia em geral está havendo um grande movimento para reconhecimento de que mulheres podem fazer e serem o que quiserem. Seus posts caem muito bem nesta época!

    Parabéns novamente! Esperando pelos próximos

    • Oi Renata,

      Muito obrigada. Eu também estou amando escrever sobre isso. São muitas histórias legais e inspiradoras.

      bjs

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Luiza Antunes

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