As grandes viajantes: a volta ao mundo de Nellie Bly

” – Eu quero dar a volta ao mundo em 80 dias ou menos. Eu acho que posso vencer o recorde de Phileas Fogg. Posso tentar?

Para minha descrença, o editor me disse que o escritório tinha tido a mesma ideia antes e a intenção era mandar um homem. Entretanto, ele me ofereceu o consolo de que iria votar pela minha ida. Então, fomos conversar com o gerente de negócios a respeito.

– É impossível que você faça isso, foi o terrível veredicto. – Em primeiro lugar você é uma mulher e precisaria de um protetor. E mesmo que fosse possível para você viajar sozinha, você teria que carregar tanta bagagem que isso atrapalharia fazer mudanças rápidas de transporte. Além do mais, você só fala inglês. Então, não faz sentido termos essa conversa, ninguém além de um homem pode fazer essa viagem!

– Muito bem, eu disse com raiva. – Mande um homem. E eu vou começar a viagem no mesmo dia para outro jornal e vou vencê-lo”.

Esse é um trecho traduzido (por mim, livremente) do livro Volta ao Mundo em Setenta e Dois Dias, de Nellie Bly. A história é verdadeira. Nellie, cujo verdadeiro nome era Elizabeth Jane Cochrane, era uma jornalista investigativa americana. Ela decidiu quebrar o recorde do personagem ficcional de Júlio Verne em 1888, quinze anos depois do livro Volta ao Mundo em Oitenta Dias ser publicado. Nenhum homem ou mulher havia conseguido até então. Ela brigou com seu jornal, The New York World – cujo dono era Joseph Pulitzer, isso mesmo, o cara do prêmio Pulitzer – e os convenceu de que era a pessoa para o trabalho.

Toda a carreira de Nellie, nascida em 1864, foi marcada por brigas com homens para provar sua capacidade. Aos 16 anos, ela mandou uma carta anônima revoltada ao editor de uma coluna misógina, intitulada “Para que as garotas servem”, do jornal Pittsburgh Dispatch. Sua boa escrita impressionou o cara, que começou uma campanha para encontrá-la. Quando Elizabeth se apresentou para ele, foi oferecida a oportunidade de escrever uma matéria para o jornal. Mais uma vez, o editor gostou muito do trabalho dela. Ele lhe ofereceu um emprego por tempo integral.

Elizabeth Cochrane, ou  Nellie Bly, em 1890, aos 26 anos

Nessa época era comum que jornalistas mulheres usassem pseudônimos. O editor escolheu “Nellie Bly” baseado numa canção popular da época. Ela começou escrevendo uma série de reportagens investigativas sobre o trabalho feminino em fábricas. Mas logo ocorreu uma pressão editorial para que a Nellie deixasse os assuntos espinhosos de lado e cobrisse o caderno feminino, que falava de moda, jardinagem e coluna social. Ela se recusou a fazer esse tipo de matéria, e, por iniciativa própria, aos 21 anos, viajou para o México para servir de correspondente internacional.

Seis meses no México

No início do livro Six Months in Mexico (disponível em inglês), Nellie conta que decidiu ir ao México pois estava impaciente com os serviços designados a uma mulher nos jornais. Ela viajou com a mãe como acompanhante e, durante os tais seis meses, escreveu matérias sobre as vidas e costumes do povo mexicano. Ela começou escrevendo sobre lugares, história local e pessoas, mas acabou se envolvendo com política.

Na época, o México vivia uma ditadura que tinha Porfirio Díaz no poder. Algumas das matérias de Nellie criticaram o governo, a prisão de jornalistas locais e a censura. Com isso, as autoridades mexicanas ameaçaram prendê-la e ela acabou fugindo do país. De volta aos Estados Unidos, voltou a denunciar o governo tirânico de Díaz e escreveu um livro reunindo as histórias que viveu como correspondente, publicado em 1885.

Ilustração de um dos artigos dela 

Ela voltou a trabalhar no Pittsburgh Dispatch, mas novamente não aguentou ter que escrever sobre amenidades. Juntou suas malas e partiu para Nova York. Ficou quatro meses sem nenhum dinheiro na cidade, procurando emprego, até que conseguiu convencer o The New York World a contratá-la.

Dez dias em um Manicômio

O editor do The World, John Cockeril, perguntou a Nellie se ela toparia escrever uma reportagem disfarçada. A tarefa não era fácil: ela teria que se fingir de louca e convencer a médicos e enfermeiras de sua condição, para que pudesse ser internada em um sanatório feminino, onde passaria dez dias verificando as condições de vida no local. Certa de seu talento como jornalista e de sua capacidade como atriz amadora, Nellie topou o desafio, um trabalho que a tornaria famosa em todo país.

Ela foi mandada para o Blackwell’s Island Insane Asylum, onde viveu em condições terríveis, sofrendo abusos físicos e mentais por parte de médicos e enfermeiras, além de muita sujeira, frio e comida estragada. Ela contou que as pacientes eram amarradas com cordas e obrigadas a ficarem sentadas num banco duro e frio, de 6h da manhã às 20h da noite, sem poder falar ou se mexer, sob risco de apanharem.

Segundo ela, esse foi o melhor método que conheceu, além da tortura, para enlouquecer uma pessoa saudável. Dez dias depois, o pessoal do jornal foi buscá-la. Os dois artigos escritos por Nellie sobre o caso esgotaram a tiragem do jornal e causaram furor em Nova York. A prefeitura passou a investigar a situação nos manicômios e a investir mais dinheiro na manutenção desses lugares. O livro Ten Days in a Mad House foi publicado em seguida, contando toda a história.

Nellie Bly e ilustrações de seus artigos

O nome de Nellie Bly ficou famoso no mundo jornalístico e ela passou os anos seguinte escrevendo histórias de jornalismo investigativo. Bly é considerada uma pioneira na área, tanto pelo tipo de matéria que ela escrevia, focada em situações de pobreza e corrupção, quanto por seu talento em se disfarçar e conhecer de perto os bastidores daquilo que falava. O jornal costumava usar o nome de Nellie nas manchetes, tamanha era a popularidade de seu trabalho. No site Nellie Bly online é possível ler, em inglês, quase todos os artigos que ela publicou.

Leia também: Grandes viajantes: Amélia Earhart e a aviação

Annie e a volta ao mundo em duas rodas

Volta ao Mundo em Setenta e Dois Dias

Chegamos finalmente ao momento que abriu este post: a volta ao mundo de Nellie Bly. Antes de contar como foi a viagem, acho que é interessante lembrar que Nellie não só quebrou um recorde mundial. Ela fez uma viagem sozinha ao redor de um mundo em que mulheres não tinham nem direito a votar. Se eu pudesse viajar no tempo, voltaria a 1889, só para virar melhor amiga dela. Se até hoje existem pressões e medos para mulheres que realizam viagens solo, imagina há 125 anos?

Depois daquela discussão com os chefes do jornal, a possibilidade de uma volta ao mundo em menos de 80 dias continuou rondando, mas nada avançou. Até que no dia 12 de novembro de 1889, quase um ano depois, o jornal avisou para Nellie que gostariam de que ela realizasse a viagem. Um detalhe: ela deveria partir em dois dias.

O vestido e a pequena mala de Nellie

Os preparativos para a viagem foram bastante corridos. Ela foi a um costureiro pedir um vestido que pudesse aguentar qualquer clima durante três meses. Comprou uma pequena mala de mão e, como todo mundo que eu conheço, se viu sofrendo para limitar os pertences que precisava dentro daquele pequeno espaço. Ela chegou à conclusão – como muitos viajantes chegam – que não precisava realmente de nenhum daqueles itens, além do seu vestido versátil (lembrando que ela viajou durante o inverno).

Em qualquer porto que descia, Nellie conseguia encontrar todos os artigos de higiene e escrita que precisava. Ela viu que existiam lavanderias ao redor do mundo para lavar tudo o que ela tinha – com preços bem mais baixos que os de Nova York. Certamente Nellie Bly seria uma excelente blogueira de viagens.

Ela também levou um passaporte e dinheiro numa bolsinha amarrada no pescoço. Algumas pessoas sugeriram que Nellie levasse um revólver. Sua resposta foi a seguinte: “Eu acredito fortemente que o mundo vai me receber assim como eu iriei recebê-lo. Dessa forma, eu me recuso a me armar. Eu sei que se minha conduta for correta, eu sempre encontrarei pessoas dispostas a me proteger, sejam eles americanos, ingleses, franceses, alemães ou qualquer coisa que seja”. Como nós, ela também achava que o mundo tem jeito.

Nellie tinha a opção de comprar todas as passagens direto de Nova York, mas como ela poderia decidir mudar de rota a qualquer momento, só comprou o primeiro trecho, de NYC para Londres. Seu roteiro final foi: Nova York, Londres, Amiens (França, onde ela mudou o roteiro para conhecer Julio Verne), Brindisi, o canal de Suez, Colombo, Penang, Cingapura, Hong Kong, Japão, São Francisco e de volta a Nova York. Foram 72 dias, 6 horas, 11 minutos e 14 segundos para cruzar mais de de 40 mil quilômetros, usando basicamente trens e navios.

A capa do livro, um jogo de tabuleiro sobre a jornada e a ilustração da chegada de Nellie

Ela enviava relatos de sua jornada para o jornal usando telégrafos e correios. Quando voltou, escreveu o livro Around the World in Seventy-Two Days. Se você lê em inglês e ama viajar, recomendo que leia o relato de Bly, que é muito interessante e divertido. Além de contar sobre a jornada em si, ela reflete sobre as coisas que aprendeu e conheceu durante a viagem, além dos perrengues que passou.

Num trecho, ela reclama que não consegue dormir de tensão, porque tem que pegar um navio muito cedo. Então pensa que “essas boas pessoas que gastam tanto tempo tentando inventar máquinas voadoras deveriam devotar um pouco da mesma energia para promover um sistema em que barcos e trens sempre partiriam ao meio-dia ou mais tarde. Isso sim seria uma grande assistência a toda humanidade”. Vale lembrar que o primeiro voo do 14-Bis, de Santos Dumont, só aconteceu 17 anos depois.

Em outra passagem interessante, ela conta como a experiência de viajar sozinha é enriquecedora, e que se estivesse viajando acompanhada jamais teria tido a oportunidade de aprender tanto e conhecer tantas pessoas diferentes. Os seus colegas de navio, por exemplo, relatavam histórias de como a vasta maioria das pessoas estrangeiras não sabia dizer onde os Estados Unidos ficam. O capitão do navio, por exemplo, disse que as pessoas pensavam que os EUA eram uma pequena ilha. Certa vez, chegou a receber uma carta, vinda da Alemanha, endereçada da seguinte forma: “Capitão Albers, Primeira Casa na América”.

Enfim, o livro é um relato de viagem muito divertido, além de ser uma maravilhosa aula de história.

O resto da história de Nellie Bly

Quando ela voltou de viagem, agora uma celebridade internacional, descobriu que o The World se recusava a oferecer a ela um aumento, apesar do crescimento da tiragem do jornal graças ao seu trabalho. Revoltada, pediu demissão. Ainda assim, continuou promovendo sua viagem através da publicação do livro, palestras e uso da sua imagem em cartões, jogos de tabuleiro e outros produtos. Em 1983, o editor do The World convenceu Nellie a voltar a escrever.

No entanto, dois anos depois ela se casou com um grande empresário, Robert Seamen, e acabou abandonando o jornalismo para investir em uma carreira na indústria. Ela inventou e patenteou alguns produtos e assumiu o controle da empresa quando o marido morreu, se tornando uma influente industrialista. Infelizmente, em 1914, a empresa faliu. No mesmo ano, ela partiu para visitar uma amiga na Áustria, onde viu a Primeira Guerra Mundial estourar.

Nellie Bly conversando com um oficial Austríaco durante a Primeira Guerra Mundial

O que era para ser uma viagem de lazer virou trabalho: Nellie ligou para um antigo editor que era seu amigo e se tornou a primeira mulher americana a ser correspondente de Guerra. Cinco anos depois, ela retornou a Nova York, onde seguiu com o jornalismo, dessa vez como colunista sobre empregabilidade, pobreza, e outros temas de interesse público. Morreu em 1922, de pneumonia, aos 57 anos. Um dia depois de sua morte, o The Evening Journal fez um tributo à jornalista pioneira, declarando que Nellie Bly era a “Melhor Repórter da América”.

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Nellie, no início e final da carreira, além de sua assinatura

*Todas as imagens usadas nesse post são de Domínio Público

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Luiza Antunes

Luiza Antunes é jornalista e escritora de viagens. É autora de mais de 800 artigos e reportagens sobre Viagem e Turismo. Estudou sobre Turismo Sustentável num Mestrado em Inovação Social em Portugal Atualmente mora na Inglaterra, quando não está viajando. Já teve casa nos Estados Unidos, Índia, Portugal e Alemanha, e já visitou mais de 50 países pelo mundo afora. Siga minhas viagens em @afluiza no Instagram.

Ver Comentários

  • Se Nellie vivesse hoje, tenho convicção de que ela seria a mais autêntica defensora dos direitos femininos e jamais se calaria diante daqueles que, infelizmente, ainda veem as mulheres como o ser frágil, só dona de casa, por ser um ser inferior. Diante de Deus, a mulher é mais sublime que o homem. A vida na Terra, em todos os aspectos, se deve a ela, especialmente.

  • Oi Luiza!!!!
    Sou viajante (mochileira) há alguns anos...coincidentemente sempre que busco dicas de viagens, minha primeira opção de leitura é "360 meridianos" e recentemente fiz o cadastro para receber os e-mails e simplesmente estou adorando e compartilhando.
    Esse post foi demais!!!!!! (E olha que eu só conhecia Julio Verne que me acompanhou na transiberiana). Me senti uma ignorante por nunca ter ouvido falar em Nellie Bly. Obrigada pelas suas excelentes reportagens! ;-)

  • Uau!! Simplesmente uau!!! O que mais me deixa surpresa é como eu jamais tinha ouvido falar nela antes!!! Uma mulher incrível dessas numa época em que ser mulher independente e com opinião era muito mais difícil do que hoje em dia! Cadê filme sobre a vida dela, gente? Como disse minha amiga p/ quem contei sobre a Nellie, se ela fosse homem já ia ter vários filmes!
    Valeu pelo post inspirador!!

  • Oi Luíza!

    Sabe me dizer se esse inglês é mt mt arcaico? rs Ou será que consigo ler numa boa?
    rs To interessada, e leio bem em inglês atual e "coloquial" digamos assim...
    Vou tentar procurar o e-book tb!
    Adorei a historia dela!!!
    Estou planejando a minha primeira viagem a Asia mas eu ando um pouco ressabiada em fazer sem excursão.

    Parabéns pelo texto!

    Beijos

    • Oi Isabel,

      O inglês não é arcaico, dá para ler numa boa. O livro já caiu em domínio público, esse link é de uma universidade que postou todas as publicações dela.

      Espero que a Nellie te inspire a fazer sua viagem sem medo =)

      bjs

    • Pena mesmo Pollyana. Eu até procurei o livro em português, mas não encontrei. Se você achar, conta para a gente!

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Publicado por
Luiza Antunes

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