Perdido nas águas turquesa do Caribe, o arquipélago de Guna Yala, ou San Blás — como batizaram os colonizadores — é composto por 365 ilhas. Uma para cada dia do ano. Muitas delas são como o ridículo pedaço de terra que eu agora via do horizonte: pequenas e inabitadas.
Outras 49 abrigam famílias, escolas, cidades inteiras: são a casa do povo Kuna, uma população indígena que se desenvolveu entre as águas e que ali mantém sua língua, cultura, tradição e leis próprias, de forma autônoma ao governo do Panamá, ao qual o arquipélago está oficialmente submetido.
Conhecer Guna Yala havia se tornado uma obsessão desde a minha primeira vez naquele país, em 2018. Na época, eu mochilava completamente dura pela América Latina, só podia gastar 15 dólares por noite em hospedagem e devia uma grana pro meu então-namorado-chileno que me salvou depois que eu perdi minha carteira, meus cartões e meu telefone celular em algum ponto do trajeto.
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A ideia de visitar um paraíso auto-gerido por indígenas cresceu em mim como um sonho tropical, uma utopia latina possível. E estava logo ali, a 150 quilômetros da costa que eu contornava por terra.
Entrei em contato com agências, busquei em sites e blogs formas de chegar até lá. Todas elas exigiriam mais tempo e mais dinheiro do que eu tinha para gastar ali.
Mas a travessia de barco entre o Panamá e a Colômbia foi a que mais me chamou a atenção, muito porque esse era o primeiro ponto da viagem que começara no México que eu não conseguiria fazer por terra. Embora vizinhos e ligados por uma pequena faixa de continente, a fronteira entre os dois países é um dos lugares mais perigosos das Américas e está tomada por uma floresta densa, controlada pelo narcotráfico, conhecida como estreito de Darién.
Contrariada por não conseguir fazer o trajeto mais divertido, peguei o chatérrimo caminho do aeroporto, mas prometi voltar.
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Confira como foi a travessia da Colômbia ao Panamá no vídeo acima. E aproveita e se inscreve no meu canal, vai!
Percebi que o barco estava parado quando luz que entrava pela escotilha me despertou. Ainda era bem cedo, mas logo entendi que é impossível dormir com o balanço do mar e o barulho do maquinário na sala ao lado, que, por sinal, também transformava em forno o pequeno quarto da embarcação.
Do lado de fora da janela embaçada, uma ilha redonda e minúscula descansava solitária. No meio dela, apenas uma meia dúzia de coqueiros. Ao redor, o oceano inteiro. Quase o cenário do filme O Náufrago.
— Chegamos! — eu disse, agarrando a canga e o biquini, pronta para subir para o convés. — Aí está Guna Yala.
Atualmente, o arquipélago paradisíaco é habitado por cerca de 50 mil indígenas Kuna, que são os verdadeiros donos de sua terra ancestral.
São eles que ditam as regras e leis e são os únicos autorizados a manter propriedades e explorar o turismo na região. Para isso, contam com um congresso próprio, escolas, hospitais e até uma força policial. Desde 2010, o governo panamenho aprovou, ainda, a mudança oficial do nome do arquipélago de San Blás para Guna Yala, a Terra dos Kuna.
Um amigo revolucionário basco com afinidade com as causas indígenas argumentou que seria impossível chegar a esse ponto de autonomia se os Kuna não tivessem, lá atrás, pegado em armas e se rebelado contra o governo. E, de fato, a situação dos Kuna é bastante diferente das histórias dos povos originários que ouvimos de ponta a ponta no continente.
Mas até 1925, a história era outra. O povo guna é originário da Colômbia e migrou para o Panamá no século 16. No século 19, no entanto, começaram a ocupar o arquipélago para escapar de doenças como malária e febre amarela e, ali, desenvolveram um estilo de vida profundamente conectado com o mar.
Após a criação do Estado Panamenho, em 1903, os indígenas passaram a enfrentar políticas opressivas por parte do governo, que buscava assimilá-los à cultura dominante do país com base na crença de que os povos originários eram selvagens.
Essas políticas incluíam restrições à sua língua, vestimentas tradicionais e práticas culturais, além de tentativas de integração forçada. A tensão entre os Kuna e o governo aumentou e, em 1925, as lideranças indígenas proclamaram sua independência e se reuniram para criar estratégias de resistência e combate armado. Em março daquele ano, o governo cedeu e firmou um acordo de paz reconhecendo a Comarca de Guna Yala.
Foi na mesma época que a bandeira que hoje tremula em todos os congressos Kuna foi criada. Uma suástica negra em sentido anti-horário que representa os quatro elementos e a criação do mundo (note que a adoção do símbolo se deu antes da ascensão do nazismo).
Tradicionalmente um povo pescador, os Kuna conquistaram também sua autonomia financeira com a exploração turística da região, oferecida em forma de hospedagem em cabanas tradicionais, venda de artesanato, transporte de barcos e passeios guiados pelas ilhas.
Em grande medida, os Kuna que ainda habitam as ilhas vivem de forma muito parecida com seus antepassados. Viajam entre uma ilha e outra em canoas simples de madeira em travessias à remo que podem durar todo um dia. Se alimentam de peixes e da produção de suas pequenas roças, falam bem o espanhol, mas preferem se comunicar em língua kuna entre os seus.
As decisões coletivas são tomadas por meio de democracia participativa pelos Congressos Locais, voltado para questões cotidianas e conflitos internos; e o Congresso Geral, formado por líderes de todas as tribos e aldeias e que é voltado para questões políticas, sociais e culturais.
Na escola Kuna, crianças aprendem a língua, a história e as tradições de seu povo. Uma vez terminada, é relativamente comum que jovens deixem o arquipélago para trabalhar ou para a Universidade.
Mas talvez o aspecto mais interessante dessa cultura é que os Kuna são uma sociedade matrilinear, em que a herança e terras são passadas pela linha materna. Quando um homem se casa, ele vai morar na casa da esposa, e os filhos do casal são considerados parte do clã da mãe. Por esse motivo, elas ocupam um papel central na comunidade, e seu nascimento é celebrado com muita festa e chicha.
São também elas que fabricam as molas, que são peças de tecido que se parecem com mosaicos coloridos e que são um dos símbolos mais reconhecidos da cultura Kuna. Essas peças são criadas com uma técnica de aplicação em camadas para formar desenhos. Souvenirs populares entre os turistas, as molas custam a partir de $ 30 dólares e são uma fonte de renda que também garantem que a autonomia das mulheres ali siga forte como sempre.
O conflito com o Governo Panamenho está, há muito, apaziguado e a organização do povo Kuna é motivo de orgulho para todos naquele país. Um outro inimigo, no entanto, ameaça a cultura e o modo de vida da população dos arquipélagos.
Como uma comunidade que depende fortemente dos recursos naturais e do equilíbrio ecológico de seu entorno, os Kuna estão entre as população mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas.
Há anos eles sabem disso, e já começaram a trabalhar para mitigar os impactos que o aumento do nível dos oceanos pode ter em suas ilhas. Algumas delas já tiveram que ser abandonadas, transformando seus habitantes em alguns dos primeiros refugiados climáticos do mundo.
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