A história e luta das Mães da Praça de Maio

“Vocês não podem ficar paradas aqui. Circulando!”, disse o militar. Sem outra alternativa que não obedecer, o pequeno grupo de mulheres reunido na Praça de Maio, em Buenos Aires, circulou. Literalmente – elas começaram andar ao redor da Pirâmide de Maio, monumento erguido em 1811 para celebrar a luta pela independência da Argentina. Ao andar em círculos pela praça mais importante da nação, aquelas mulheres não contrariavam a ordem da ditadura, que proibia a reunião de três ou mais pessoas em lugares públicos, principalmente em frente à Casa Rosada, sede do poder argentino.

Isso aconteceu no dia 30 de abril de 1977. Desde então, elas fizeram a mesma coisa, toda quinta-feira, sempre às 15h30, durante 37 anos. Por 1945 quintas-feiras, as Mães da Praça de Maio circularam a Pirâmide, numa demonstração clara de um dos lemas do movimento: “A única luta que se perde é aquela que você abandona”. E isso elas não fizeram, nem mesmo quando as três fundadoras foram sequestradas, torturadas e mortas por um grupo de militares, em dezembro de 1977.

Elas não pararam nem durante a Copa do Mundo de 1978, quando o mundo inteiro estava com os olhos na Argentina e a tensão política aumentou. Nem depois que a ditadura caiu, em 1983. Se você estiver em Buenos Aires numa quinta-feira, às 15h30, vai encontrá-las na Praça de Maio – agora já de cabelos brancos e bengalas, com idades entre 75 e 92 anos. As Mães da Praça de Maio continuam seu protesto e mostram aquilo que os ditadores tentaram esconder: o governo militar matou 30 mil jovens argentinos. O governo matou os filhos delas. E elas não se esquecem disso – e fazem questão que o mundo saiba, de modo a evitar que algo assim se repita.

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A ditadura militar na Argentina

Como em quase todos os países da América do Sul, a Guerra Fria deu à Argentina um demônio: uma ditadura militar, que ficou no poder entre 1976 e 1983. A ditadura argentina foi a mais violenta do continente, tendo torturado operários, funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes universitários e até estudantes de ensino médio. Assim como o regime nazista, a ditadura argentina usou campos de concentração e inovou na hora de sumir com os corpos das vítimas – se Hitler tinha as câmaras de gás e de cremação, os ditadores argentinos tinham os voos da morte.

Cerca de cinco mil opositores do regime foram arremessados vivos de aviões durante sobrevoos ao Rio de Prata, isso depois de passarem por torturas terríveis. Um dos casos mais marcantes foi o do estudante Floreal Avellaneda, que tinha apenas 15 anos. O corpo dele foi encontrado no Rio da Prata pelos militares uruguaios, assim como o de muitos outros perseguidos. A quantidade de corpos encontrada em território uruguaio foi tão grande que os militares desse país – na época também uma ditadura – reclamaram com o governo argentino. A saída? Os voos para a morte continuaram, mas no Oceano Atlântico, bem longe da costa do Uruguai.

Floreal Avellaneda

A luta sem fim das Mães da Praça de Maio

Se no início o mundo fechava os olhos para o que acontecia na Argentina (e no restante da América do Sul), a Copa de 1978, tão usada pela propaganda do regime, trouxe visibilidade para as Mães da Praça de Maio. Redes de TV e jornais de todo o mundo relataram a luta das mulheres em busca de seus filhos desaparecidos. Logo a ajuda chegou – no ano seguinte, um grupo de mães da Holanda fez uma doação às argentinas, que puderam continuar com o movimento de forma mais organizada.

Quase 40 anos depois, muita coisa mudou. As Mães da Praça de Maio ganharam diversos prêmios internacionais e passaram até a fazer parte da própria praça – os panos brancos que elas usavam nas cabeças para chamar atenção agora marcam o chão ao redor da Pirâmide, numa forma de homenagem depois de tantas décadas de luta.

Os ditadores não estão mais no poder e, ao contrário do que aconteceu no Brasil, alguns deles foram julgados e presos. Jorge Rafael Videla, presidente do país durante a maior parte da ditadura, foi condenado à prisão perpétua em 1986, mas permaneceu apenas 5 anos na prisão. É que em 1990, o então presidente Carlos Menem usou o perdão presidencial para liberá-lo e vários outros líderes do governo militar.

Videla, no entanto, foi novamente julgado e condenado à prisão perpétua. Ele morreu na prisão, em 2013, um ano depois de admitir ter sido o responsável direto por 8 mil mortes. E ele ainda garantiu que não estava arrependido de nada. Os julgamentos de outros militares prosseguem até hoje. Desde o governo de Néstor Kirchner (2003 – 2007), mais de 500 envolvidos nos assassinatos foram condenados.

A luta das Mães da Praça de Maio continua, agora não apenas para buscar a condenação dos torturadores e assassinos, mas também para lutar por direitos humanos e outras causas em geral. Quando eu estive numa reunião delas, na terceira quinta-feira de julho, uma das pautas era a morte de milhares de palestinos na Faixa de Gaza.

Elas têm programas de rádio, organizam manifestações e até criaram uma universidade. “Não aceitamos nenhum cargo político, mas fazemos política. Não somos um órgão de direitos humanos e nem uma ONG, somos uma organização política, sem partido”, explica Hebe de Bonafini, umas das fundadoras do movimento.

Além disso, elas trabalham pela reconstrução de suas famílias. O grupo Avós da Praça de Maio tem estreitas ligações com o grupo das Mães. Na última semana, as Avós anunciaram a recuperação de mais um bebê sequestrado durante a ditadura, justo o neto da presidenta do movimento. Acredita-se que centenas de bebês argentinos, todos filhos de opositores do regime, foram sequestrados e hoje vivem com outra identidade e sem saber de seu passado. Em muitos dos casos, esses argentinos vivem em famílias de militares, que tomaram as crianças como despojo de guerra.

Testemunhar uma caminhada das Mães da Praça de Maio é como visitar um monumento que relembra as atrocidades do nazismo, em Berlim. Não, não é algo legal de se ver. É triste, uma experiência que dá um tremendo nó na garganta. Mas há beleza nessa história também, nem que seja de ver que elas não desistiram da luta. Elas continuam. Mesmo sabendo que provavelmente nunca vão recuperar os restos mortais de seus filhos, mesmo tendo a certeza de que nunca saberão o que realmente aconteceu com eles. Até a vitória.  Sempre.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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