João do Rio – e do mundo todo: história e obras do cronista carioca

Após um velório de dois dias que arrastou filas intermináveis ao saguão do jornal A Pátria, o corpo de João do Rio (1881 – 1921) seguiu para seu endereço definitivo. O esquife foi puxado por admiradores ao longo dos cerca de oito quilômetros que separam o Largo do Carioca, onde ficava a sede do jornal, do cemitério São João Batista, em Botafogo. Foi acompanhado por centenas de carros e caminhões. Veículos que, além de gente, transportavam uma montanha de coroas de flores.

Ao longo do trajeto, milhares de pessoas subiam em árvores e postes; se aglomeravam em janelas e calçadas, tudo para uma última despedida ao jornalista, escritor, tradutor e dramaturgo carioca. Pelo menos 100 mil pessoas participaram do cortejo, o que deu a João do Rio o segundo maior enterro que o Brasil já tinha visto. Só o Barão do Rio Branco, herói nacional que tinha morrido oito anos antes, tinha merecido mais enlutados. O impressionante é que toda essa gente, como noticiou A Gazeta de Notícias, se reunia por um homem que “nunca ocupou qualquer cargo público”.

João do Rio era um pseudônimo, o mais famoso dos vários usados por João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto — na intimidade ele era só Paulo Barreto. Em seus 39 anos de vida, o escritor foi amado por ousar escrever. E também muito odiado. Negro, gordo e homossexual, foi o alvo perfeito para os ataques de muitos.

João do Rio em 1921, pouco antes de morrer

E seus inimigos não economizavam no racismo, na homofobia e na gordofobia: João do Rio foi chamado de “balaio de toucinho podre”, “banha rançosa”, “beiçudo etíope”, “pederasta” e “madame bicicleta”. Nada disso impediu sua obra: pouquíssimos escritores produziram tanto nas primeiras duas décadas do século 20; talvez ninguém tenha feito mais. Foram cerca de 20 livros, entre romances, crônicas, reportagens, ensaios e peças de teatro.

As ofensas vinham de outros literatos, como Antônio Torres (1885 -1934), e muitas vezes iam parar nas páginas de jornais e livros. Outro que frequentemente antagonizava com João do Rio era Lima Barreto (1881 – 1922). E olha que o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma tinha a mesma idade e sobrenome, além de também ser jornalista e negro (era neto de escravos). Mas Lima foi uma voz do subúrbio e criticava com veemência estrangeirismos. Segundo Ruy Castro, em Metrópole à Beira-Mar, Lima Barreto se baseou em João do Rio para criar uma personagem de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Era o homossexual Raul de Gusmão.

“Antônio Torres e Lima Barreto eram nacionalistas, às raias da xenofobia; e João do Rio era cosmopolita, afetado, pensava em francês e vestia-se à moda dândi.”

Ruy Castro, em Metrópole à Beira-Mar

Com roupas berrantes, elegantes e alinhadas, além de grande preocupação estética, os dândis surgiram no século 19. E foram uma revolução na forma de se vestir e comportar do homem moderno e intelectual.

Um dos dândis mais famosos foi Oscar Wilde, escritor de O Retrato de Dorian Gray. Em 1895, Wilde foi preso e condenado a dois anos de trabalhos forçados por ser homossexual. João do Rio, que era um leitor voraz de Oscar Wilde, traduziu para o português várias obras dele, e logo se transformou na principal representação de Wilde no Brasil, o que alimentava novos ataques homofóbicos.

João do Rio em 1909

Cronista como poucos no país, João do Rio chegou ao século 21 com A alma encantadora das ruas, talvez sua obra máxima. Nela, o jornalista dá voz para pessoas normalmente ignoradas pelos jornais e livros, como mendigos, crianças de rua, viciados em ópio, músicos ambulantes e presidiários. Para escrever suas crônicas, o escritor mergulhava nesse outro lado da cidade, conversava com as pessoas e vivia de perto as mesmas experiências que elas.

Também é em A Alma Encantadora das Ruas que surge pela primeira vez no Brasil a palavra flanar, que João do Rio importou do francês e definiu como “o mais interessante dos esportes”. Nas décadas seguintes, flanar virou atividade obrigatória para os mais diversos guias, livros e obras de viagem.

“Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte.”

João do Rio, A Alma Encantadora das Ruas

Como era costume na época, muitas de suas obras foram primeiro publicadas em algum jornal carioca, em formato de folhetim ou crônica, e só depois ganharam as páginas dos livros. Não é por acaso que João do Rio foi o mais jovem escritor admitido na Academia Brasileira de Letras, aos 29 anos — seus inimigos chiaram, como de costume.

Ele foi aprovado na terceira vez que se candidatou. Vale lembrar que, poucos anos antes, Júlia Lopes de Almeida, que tinha ajudado a fundar a Academia, ficou de fora porque a instituição resolveu não aceitar mulheres. E Lima Barreto, dono de uma obra com viés autobiográfico e temática antirracista, nunca foi aprovado pela instituição.

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Em 1902, João do Rio tentou cavar uma carreira além dos jornais. Para isso, pediu um emprego no Itamaraty, que procurava jovens intelectuais, mas foi recusado pelo Barão do Rio Branco. Faltavam ao candidato certas características necessárias para a vaga: a aparência, a sexualidade e a cor da pele.

Impedido de seguir carreira diplomática, a ascensão de João do Rio no jornalismo continuou. E foi rápida. O jovem que tinha estreado nas redações na virada do século logo se transformou num profissional respeitado e que frequentava os círculos mais exclusivos do poder. Seus inimigos, inclusive, o acusavam disso, dizendo que ele era apoiador da política de cartas marcadas da República Café com Leite.

Em 1911, João do Rio investiu 20 dos 60 contos levantados por Irineu Marinho (1876 – 1925) para fundar o jornal A Noite. Um ano mais tarde, Irineu Marinho devolveu todo o dinheiro e João do Rio teve que deixar a sociedade da primeira empresa do Grupo Globo. Décadas depois, uma biografia de Marinho revelou que o problema teria sido a origem do dinheiro de João do Rio, um empréstimo de políticos ligados ao então presidente Hermes da Fonseca. Com isso, João do Rio só foi ser dono de jornal em 1920, ao fundar A Pátria. De novo, ele contou com investimento de figurões: dessa vez quem estava por trás era Arthur Bernardes, governador mineiro que seria eleito presidente em 1922.

Apaixonado pelo Rio de Janeiro, não é à toa que Paulo Barreto entrou para a história com um pseudônimo que deixa claro que ele pertence à cidade. Mas João do Rio foi também um viajante incansável — e tem uma vasta obra sobre outras terras. A crônica Dias de Milagre, reeditada e que vai ser enviada aos assinantes do Clube Grandes Viajantes no mês de setembro, narra a experiência dele ao ir de trem para Congonhas, em Minas Gerais, acompanhar o Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Como muitos viajantes que passaram pela cidade antes dos modernistas, que estiveram lá em 1924, João do Rio achou os profetas de Aleijadinho “feios demais”.

Já a primeira viagem dele para a Europa veio em 1908, quando o escritor tinha 27 anos. Ele ainda voltaria quatro vezes ao Velho Continente — bastante para uma época em que a travessia do Atlântico era feita de navio e levava dias. Fora que entre 1914 e 1918 a Europa foi tomada pela Primeira Guerra Mundial, o que impedia o turismo. João do Rio viajou para a cobertura do armistício de Versalhes, que encerrou de vez o conflito.

Conheceu Portugal, França, Reino Unido, Alemanha, Turquia, Espanha, Itália, Rússia, Grécia, Israel, Egito e Argentina. Tinha com Portugal uma relação intensa e alguns de seus livros são sobre o país, como Fados, canções e danças de Portugal (1910). Outra arma para seus inimigos, que o acusavam de ser mais português que brasileiro. No começo do século 20, menos de 100 anos depois da Independência e com poucas décadas de República, muita gente no Brasil ainda não via Portugal com bons olhos.

Algumas de suas obras foram lançadas só naquele país, por editoras como a tradicional Lello & Irmão — aquela famosa livraria da cidade do Porto.

É o caso de Os dias passam…., em que foi publicada a crônica Dias de Milagre. Por mais de 100 anos, só existiu a edição portuguesa, até que a Biblioteca Nacional reeditou e lançou uma versão impressa no Brasil. A edição de Dias de Milagre do Grandes Viajantes foi baseada na versão de 1912, e a adaptação para a linguagem atual e as notas explicativas foram produzidas pela equipe do 360meridianos.

Capa do ebook “Dias de Milagre”, editado pelo 360meridianos. Saiba como receber o livro

Meses antes de morrer, João do Rio virou alvo de novos ataques, dessa vez por parte da Ação Social Nacionalista, movimento xenofóbico de direita fundado em 1920 e que tinha como lema “O Brasil é dos brasileiros”. Uma lei de nacionalização da pesca foi o estopim para a agressão — a medida impedia que portugueses, que na época representavam 1/4 da população do Rio de Janeiro, continuassem trabalhando num setor que há anos era dominado por eles.

João do Rio deu voz aos pescadores portugueses em A Pátria, o que enfureceu os nacionalistas. Em outubro de 1920, cinco militares da Marinha cercaram o escritor num bar, na Galeria Cruzeiro, e o espancaram. O ataque foi condenado por vários políticos e intelectuais, entre eles Ruy Barbosa.

Nove meses depois, João do Rio teve um ataque cardíaco dentro de um táxi, quando seguia do jornal para casa. Morreu em minutos, antes que o motorista conseguisse o copo d´água que o escritor, agonizando, pediu. A notícia se espalhou pela cidade. Estavam mortos Paulo Barreto, assim mesmo, no plural, porque no mesmo caixão iam Godofredo de Alencar, Jacques Pedreira, Claude, Caran d’Ache, Joe, José Antônio e, claro, João do Rio.

Enterro de João do Rio, em 1921

Deixou livros como As religiões do Rio, O momento literário, Cinematographo: crônicas cariocas, Vida vertiginosa e Nos tempos de Venceslau. Apesar da obra grandiosa e da importância incontestável nas primeiras décadas do século 20, viveu um relativo esquecimento e vários de seus livros ficaram décadas sem reedições. E isso sem falar em toda a obra literária de João do Rio que foi publicada em jornais, mas nunca ganhou as páginas de livros.

A produção de Paulo Barreto na imprensa nas duas primeiras décadas do século foi simplesmente assombrosa. Basta dizer que os quinze ou vinte volumes que deixou não absorveram senão uma pequena parte de centenas de crônicas, reportagens, contos, artigos dos mais diferentes gêneros, muitos firmados com outros pseudônimos. É difícil distinguir nessas páginas, escritas quase ao correr da pena, ao trepidar dos linotipos e às fumaçadas de um cigarro, onde termina o jornalismo e começa a literatura. João do Rio conseguia realizar, frequentemente, um acordo entre as duas formas de atividade intelectual.

Brito Broca, em A vida literária no Brasil (1960)

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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