Do alto de um pequeno cerro, todos esperam ansiosos o relógio bater meia-noite. A única luz vem das estrelas que conseguimos ver através das copas das árvores, de forma que é difícil enxergar o pequeno grupo reunido em círculo poucos metros adiante. Na plateia, todos fazem silêncio, apreensivos. Don Santos, ancião do povoado de Rey Curré, pronuncia algumas palavras, instruções que os mais jovens vão levar nos três dias que se seguem. O estouro de um foguete é o sinal: entre gritos e dança, os membros do grupo vestem suas máscaras. Assim nascem, mais uma vez, os Cabrú˘rójc, o Jogo dos Diablitos da tradicional Festa de Máscaras Boruca, na Costa Rica.
Participante do jogo se proteje antes de colocar a máscara
Rey Curré é um pequeno povoado de ruas de terra, habitado por indígenas da etnia boruca. Localizado entre a selva que colore a região do Pacífico Sul da Costa Rica e cortado ao meio pela estrada interamericana que une as Américas em um grande caminho de asfalto, na maior parte dos dias, a tranquilidade ali só é interrompida pelo ruido dos caminhões que usam a Costa Rica como uma ponte entre norte e sul.
Em algum momento entre a última semana de janeiro e a primeira de fevereiro de cada ano, no entanto, a atmosfera se transforma. Por três dias, eles recebem gente de todas as partes do país e de além da fronteira para assistir a sua maior celebração. Com máscaras coloridas de fabricação própria, os diablitos perseguem um grande touro que simboliza o invasor espanhol que deve ser derrotado.
O jogo ocorre nas ruas de Rey Curré. Duas ou três vezes ao dia, eles passam pelas casas de seus vizinhos e travam batalhas em seus quintais. Como recompensa, recebem boas doses de chicha, uma bebida alcóolica obtida da fermentação do milho e que é produzida especialmente para a ocasião, e tamales de arroz, uma espécie de pamonha muito popular no México e na América Central.
Como respeito a jogadores falecidos, na sexta-feira, primeiro dia do evento, as máscaras são as mais simples possíveis: são apenas talhadas em madeira, sem receber qualquer pintura, e os participantes não podem vestir-se com as folhas de bananeira que os protegem do calor e das estocadas do touro. No sábado e no domingo é que as famosas máscaras coloridas e enfeitadas com penas saem dos armários, mas sem nenhum apego: a maior parte delas terminará quebrada no fim do dia. “É tudo um jogo, uma brincadeira, mas é muito físico, tem que ter preparo”, conta Greivin, um dos netos de Don Santos que faz questão de participar do evento todos os anos. Já no segundo dia ele exibe um pequeno esfolado na testa, mas não se importa.
Quando colocam as máscaras, os borucas abandonam seus nomes e identidades. Vestidos, eles incorporam o espírito coletivo do indígena empoderado, que se orgulha de suas tradições e se levanta para defendê-las do inimigo. Embora mantenha durante todo o tempo a alma festiva de uma confraternização entre amigos, o Jogo dos Diablitos é uma homenagem à resistência dos povos originários. Do outro lado do campo de batalha estão os indígenas que se revesam na fantasia de touro para desafiar seus irmãos. São poucos os que podem desempenhar o papel, já que a estrutura da roupa e os movimentos do jogo exigem força de quem a carrega. Os melhores toureiros são guardados para o domingo.
No fim do dia, depois de matar os diablitos e presenciar sua ressurreição, o touro é finalmente derrotado e queimado. Longe de ser apenas um símbolo hispânico, o animal representa a sombra colonizadora das culturas estrangeiras. “Quando coloco a fantasia, não me sinto espanhol. O que me fascina é ver, de trás da máscara, meu povo se levantando para combater o opressor”, conta Tuco, um dos toureiros guardados para o último dia de festa.
A resistência faz parte do cotidiano boruca. Depois de habitar por séculos a região que hoje é uma reserva indígena, sua cultura foi profundamente alterada pelo contato com os espanhóis desde tempos coloniais – hoje tradições e idioma estão em risco crítico de desaparecimento. O povo, que um dia já formou um império, conta hoje com apenas 2.000 membros. Por muitos anos, até mesmo o Jogo dos Diablitos e a arte de fabricar as máscaras típicas estiveram a ponto de entrar em extinção, tanto em Rey Curré quanto em Boruca, outro refúgio desse povo indígena e que fica a cinco quilômetros dali.
A festa só voltou a se revitalizar há duas décadas, quando Ismael Gonzales, morador de Boruca, começou uma oficina para ensinar crianças a arte de seus antepassados. Com a grande difusão do evento na cidade vizinha – que ali é comemorado na virada do ano -, Curré logo se apressou para também regressar a suas origens e hoje a festa já está consagrada entre os moradores dali, um momento de celebrar amizades e raízes, como um carnaval próprio. “Quando estou jogando, me sinto bem. Espero um ano inteiro para vir jogar por três dias, mas não trocaria a experiência por nada”, conta Greivin.
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Cultura riquíssima. adorei o post.
É uma experiência e tanto! Obrigada por comentar, Carlos!