Luta Livre Mexicana: esporte e espetáculo na Cidade do México

Ainda eufóricas por conta da luta, quatro crianças brincavam do lado de fora da Arena Coliseo, na Cidade do México. Entre pulos e gritos, imitavam alguns dos golpes mais famosos da Luta Livre Mexicana. O herói daquele sábado foi Niebla Roja, lutador mascarado de 31 anos que, após confronto com nove oponentes, levou o cinturão, batendo na final o Cavernario, um atleta-vilão que vestia uma tanga de oncinha e não parava de desafiar a torcida.

“Aqui está o novo campeão mundial semi completo”, gritou o apresentador, para a euforia dos torcedores presentes e perplexidade de turistas estrangeiros. Eu entre eles, que vivi ali, na minha primeira noite no país, um misto de sensações. Poucas vezes ri tanto; poucas vezes vi algo mais incompreensível. É luta? É teatro? É esporte?

A resposta é complexa, mas em geral envolve um pouco de tudo. Antes de qualquer coisa, a Lucha Libre é um Patrimônio Cultural do México e já transformou em astros vários lutadores. Não há feirinha de artesanato ou camelô mexicano que deixe de vender as máscaras, uma tradição que começou em 1933, quando The Cyclone McKey, um lutador dos Estados Unidos que teve seus anos de glória no México, resolveu que iria lutar com uma máscara. Ele encomendou a vestimenta de Don Antonio Martinez, um artesão que acabou se tornando especialista na fabricação de vestuário para a Lucha Libre. Até hoje a loja dele, agora comandada por descendentes, é a principal fornecedora desse inusitado material esportivo. Ou seria teatral?

Com golpes extremamente complexos no ar – e que ocupam uma lista enorme na Wikipedia – e combatentes mascarados, a Luta Livre tem uma lógica própria e três tipos de personagens centrais. De um lado estão os lutadores bons, os heróis e que em geral têm o apoio da torcida. Esses são os chamados “tecnicos”. Do outro lado estão os rudos, que são os vilões, aqueles que não se esquivam de usar golpes baixos. Spoiler: nem sempre os mocinhos ganham.

O terceiro personagem é a torcida. De risadas descontroladas a palavrões cuidadosamente pronunciados, os torcedores gritam sem parar. Assim como ocorre em estádios de futebol, muitos vão às arenas para extravasar.“Na luta livre você vem, escolhe seu favorito, seja tecnico ou rudo, grita e desafoga todos os problemas que tem em casa, no trabalho e na vida”, disse Salvador Lutteroth Camou, que dirigiu o Consejo Mundial de Lucha Libre por uma década, numa entrevista antiga para a Agência Efe.  “Esse é o sucesso da luta livre, o bem contra o mal, ter um favorito, vir apoiá-lo e gritar a seu favor. Ou então gritar contra o adversário”, completou ele.

E muitas vezes o espetáculo, digo, a luta, vai parar na torcida, quando um lutador arremessa outro para fora do ringue – e em seguida se joga, de cabeça ou com os pés, no oponente. É por isso que os lugares colados com o ringue são os mais caros. Vai falar que não vale a pena pagar a mais pela chance de repentinamente se ver no meio da confusão?

As regras do combate são simples. O objetivo é derrubar o oponente por três segundos, contados pelo juiz com tapas no chão. A luta chega perto do terceiro tapa várias vezes, mas em geral algo acontece para impedir o término precoce. Tipo um lutador que invade o ringue com uma cadeira e bate nas costas do combatente que está vencendo. Ou um anão que pula, do alto das cordas, no meio do confronto, salvando um lutador que estava para perder.

A Luta Livre assume que não é exatamente um esporte. É também um espetáculo, em que movimentos são coreografados, inclusive para que os lutadores não se machuquem. Mas até que ponto é coreografia e ensaio e até que ponto há realmente uma competição é difícil dizer. Enquanto eu assistia a luta, a impressão é que tudo não passava de teatro. E um extremamente engraçado justamente por ser bizarro, mas também com certa beleza, por conta dos movimentos complexos dos lutadores, boa parte deles feitos no ar.

Membro da terceira geração da família na direção da Luta Livre Mexicana, Lutteroth Lomeli defende que não importa se as lutas são coreografadas ou não. O que importa é que elas são reais. “É uma mistura de esporte e espetáculo, em que porcentagem é difícil dizer”, explicou ele numa matéria publicada pela Exame. E completa: “Os torcedores reais da luta livre não se questionam se há realidade ou não. O que se vê em cima de um ringue e o que se desenvolve pelos lutadores é mais que patente que é real”.

Luta que faz lendas

A maior lenda da Luta Livre Mexicana foi El Santo, um herói de máscara prateada que reinou nas arenas do país por quatro décadas. E não perdeu a máscara. Em alguns confrontos, os lutadores apostam que o perdedor terá sua máscara arrancada pelo rival. O vencedor permanece anônimo e desconhecido da torcida.

A máscara de El Santo só foi retirada por ele mesmo, em programas de TV e com o lutador já aposentado. Ele morreu na década de 80, depois de protagonizar incontáveis lutas, 52 filmes, virar personagem de quadrinhos e até de desenho animado. Foi enterrado com a máscara prateada que fez dele o anônimo mais famoso do México, num velório que reuniu 10 mil pessoas. Como é comum na lucha libre, filho e neto de El Santo seguiram os passos do patriarca e tentaram a sorte nos ringues.

El Santo tira a máscara num programa de TV, na década de 80

Mas a fama de El Santo esconde a carreira bem menos glamourosa da maioria dos lutadores. A BBC estima que existam pelo menos 250 lutadores profissionais da modalidade no país e que os melhores deles chegam a ganhar cerca de 1600 dólares, mas isso somente nas semanas em que são disputados os eventos mais importantes – e a maioria deles ganha bem menos. Isso faz com que alguns lutadores tentem carreiras paralelas, como o Super Astro, um lutador que ainda compete, mas cuja principal fonte de renda vem de uma lanchonete na Cidade do México.

Lesões ocorrem, sangue pode escorrer – em algumas lutas mais extremas a torcida pede por isso – e, embora seja muito raro, há casos de mortes nos ringues, na maioria das vezes por conta de algum movimento errado ou queda não prevista. A mais recente foi em 2015, quando o lutador Pedro Perro Aguayo, de 35 anos, foi atingido por um combatente e desmaiou. O mais assustador desse caso é que ele permaneceu caído por dois minutos no ringue, enquanto outros lutadores duelavam entre si, até que alguém percebeu a gravidade da situação. Ele foi levado para um hospital em Tijuana, mas não resistiu.

Vida de lutas e que ajuda a valorizar as conquistas. Niebla Roja, atual campeão mundial semi completo, desabafou durante uma entrevista após o título, como qualquer atleta faria na mesma situação, e definiu aquele como o momento mais alto de sua carreira. “(Esse título) é um peso muito grande pra mim. De agora em diante vou defendê-lo a todo custo, com sangue e suor, porque o tiveram os melhores, inclusive meu irmão. É algo muito bonito na minha carreira”, disse, afirmando ainda que o nível da competição estava muito alto.

Alguns dias depois, Niebla Roja foi ao chão numa competição de trios. Perdeu a máscara. Ainda no ringue, exigiu revanche. “Ninguém está a salvo das derrotas, mas é melhor ser derrotado na luta por nossos sonhos do que ser vencido sem saber o porquê”, escreveu no Twitter. Que por sinal está cheio de fotos dele – sempre mascarado ou cobrindo o rosto com as mãos, afinal um lutador não pode se descuidar jamais.

Como assistir uma Luta Livre Mexicana

A Cidade do México tem dois endereços principais para a Luta Livre. O maior, e onde ocorrem os eventos mais importantes, é a Arena México, com capacidade para 16 mil pessoas e que sediou lutas de boxe durante as Olimpíadas de 1968. Embora ocasionalmente outros eventos esportivos ainda sejam realizados por ali, o estádio virou a casa da modalidade. Há lutas toda terça, sexta e domingo, começando entre 19h30 e 20h30 (aos domingos começa mais cedo, às 17h).

A outra opção é a Arena Coliseo, onde eu fui e que recebe lutas aos sábados, a partir das 19h30. O local é menor, mas as lutas são as mesmas. Você verá cinco ou seis lutas no espaço de duas horas. As melhores – e mais decisivas – são as finais, mas eu aconselho que você chegue antes e não perca nada. Vendedores ambulantes oferecem comida, bebida (incluindo cerveja) dentro da arena.

Não é preciso comprar seu ingresso da Luta Livre com antecedência, mas se quiser dá para fazer isso online. Os preços variam conforme a localização na arena (quanto mais perto do ringue, mais caro), mas em geral custam entre 50 e 400 pesos. Na bilheteria não são aceitos cartões.

Na Arena Coliseo os ingressos são mais baratos e dá para garantir um lugar na primeira fileira por 200 pesos (coisa de R$ 40). Não fique de bobeira na área próxima às arenas depois da luta, pois ambas estão em bairros que não são exatamente seguros depois do anoitecer. Uma dica: há uber e cabify na Cidade do México. Basta usar da mesma forma que você faria no Brasil.

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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