Não faz muito tempo que li uma notícia interessante: os cartógrafos da revista National Geographic estavam com dificuldade em lançar a edição do livro “Atlas of the World” porque o formato do Ártico estava mudando rapidamente, graças ao aquecimento global. Na matéria, o professor de geografia social, Alastair Bonnett, diz: “É difícil para nos adaptarmos a um novo mundo onde não apenas o planeta está mudando tão rapidamente mas os mapas também estão com dificuldade de acompanhar. Mas precisamos mudar” (tradução livre).
O que me chamou atenção na matéria, além de pensar na gravidade do aquecimento global, é como eu gosto de mapas. Voltei há pouco tempo de uma viagem pela Itália e as minhas salas favoritas, tanto no Museu do Vaticano, em Roma, quando no Palazzo Vecchio, em Florença, são as galerias dos mapas. Poderia perder horas e horas ali, vendo aqueles mapas desenhados como obras de artes, que representavam a visão de mundo daquele tempo. Sou tão obcecada com mapas que tinha uma gaveta lotada guardando dezenas de mapas das cidades que já visitei. E volta e meia me pego à toa olhando o Google Maps ou Google Earth. Mas nunca tinha parado realmente para pensar na cartografia de forma crítica, entender como ela influencia e influenciou a nossa visão de mundo.
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Palácio Vecchio, Florença
“A verdade é… mapas são armas”. É o que afirma Denis Wood, um artista, autor, cartógrafo e professor de design. Ele escreveu mais de 20 livros sobre mapas. A afirmação acima vem do artigo “Como mapas funcionam“, publicado na revista científica Cartographica. Nesse texto, ele explica que, tal como balas, tanques e soldados, mapas fazem parte da subjugação do mundo, da intimidação dos habitantes, a legitimação do status quo e daqueles que o contestam. Wood critica como os mapas são vistos como uma imagem de neutralidade objetiva e, ironicamente, afirma: “Eles apenas esticam o mundo, ou o encolhem (Oh! Incrível conveniência!), para trazê-lo dentro do alcance de nossa visão”.
Não faltam mapas na história do mundo que comprovem a crítica de Wood. Por exemplo, no livro “A história do mundo em 12 mapas”, Jerry Brotton, professor de história renascentista, catalogou mapas que mostram mudanças na história da humanidade. Numa entrevista para o The Atlantic, ele afirma que todas as culturas costumam acreditar que o mapa valoriza o que é real, verdadeiro e objetivo. No entanto, “Todos os mapas são sempre subjetivos. Até as atuais aplicações geo-espaciais online, em todos os nossos celulares e tablets, foram produzidos pelo Google ou Apple ou alguém qualquer, e ainda são, em alguma medida, mapas subjetivos”.
Na lista de Brotton, há exemplos como o mapa mundi de Al-Sharif al-Idrisi, de 1154. Muçulmano, ele criou um mapa que seguia a tradição de sua religião: o sul ficava no topo e a península árabe, e Mecca, no centro. Já o mapa mundi de Hereford, de 1300, é um bom representativo do mundo medieval, centra Jerusalém, coloca desenhos do Jardim do Édem, de Cristo e nas extremidades há monstros, representando os lugares desconhecidos.
Mapa de al-Idrisi
Mapa de Hereford
Brotton lista também o atlas do belga Gerardus Mercator, provavelmente uma das figuras que mais influenciaram a história dos mapas. Acontece que, em 1569, o cartógrafo Mercator decidiu tentar transformar a curvatura da superfície da terra numa forma plana, a fim de conseguir traçar uma linha reta entre uma cidade como Lisboa até o Brasil. O mapa, como você pode perceber pela época, foi desenhado para navegadores europeus. E, para conseguir manter a projeção plana, os territórios ao norte e o ao sul do Equador acabaram distorcidos.
Mapa de Mercator
Acontece que a Projeção de Mercator até hoje influencia como vemos o mundo. E essa visão está bem distante da realidade. Duvida? Dá uma olhada nesse site bem legal, chamado The True Size, que foi criado por dois programadores, James Talmage e Damon Maneice, para que as pessoas consigam entender que os tamanhos dos países que vemos no mapa não são reais. Pode parecer bobagem, a princípio, mas com o site consegui me dar conta de como a Rússia é na verdade bem menor do que o continente africano. Como Portugal é do tamanho da Hungria. E como a diferença de tamanho entre o Brasil e o Canadá (e os outros quatro maiores países do mundo) não é tão massiva assim.
Os maiores países do mundo alinhados. Fonte: The True Size
Comparação entre o Brasil e o Canadá. Fonte: The True Size
A Rússia dentro do continente Africano. Fonte: The True Size
Voltando às críticas de especialistas à cartografia, Wood explica que é impossível realmente classificar e simbolizar o mundo, por isso as pessoas e poderes acabam fazendo isso arbitrariamente. Nenhum mapa, segundo ele, consegue representar as pessoas, os movimentos, as naturezas, as relações. Ainda assim, os mapas são considerados documentos “sérios, legais e de imensa precisão”, e acabam sendo usados para “proteger interesses de desenvolvimento, ou para avançar a visão de como as pessoas deveriam viver, para assegurar uma fonte segura de água potável, ou para extrair esses bens daquele pedaço de terra. Eles são armas, esses mapas, armas na luta por domínio social, armas disfarçadas de representações…”
As críticas de Wood aos mapas estão situadas num escopo maior chamado de “cartografia crítica”. Num artigo chamado “Introdução à Cartografia Crítica“, apresentado numa publicação científica sobre o tema, o ACME, os geógrafos e professores Jeremy W. Crampton e John Krygier, trazem um histórico sobre o tema. Por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma onda entre os cartógrafos de tentar aplicar o método científico na produção de mapas, buscando negar a subjetividade e os aspectos políticos deles ao mesmo tempo que tentavam aumentar sua eficiência e funcionalidade para usuários.
Claro, isso ia acabar em controvérsia. Os autores apontam uma particularmente interessante: a Projeção de Peters. Arno Peters criou, no início dos anos 1970, uma projeção de mapa, tal como Mercator, só que crítica. Ao concluir seu doutorado em História, Peters decidiu repensar o mapa mundi porque considerava que mapas como o de Mercator eram um “retrato totalmente falso, particularmente em relação às terras povoadas por não-brancos… sobre-valorizam o homem branco e distorcem a imagem do mundo em favor dos colonizadores da época”.
Projeção de Peters
Hoje, a UNESCO promove a utilização de mapas com a Projeção de Peters, que reproduz de forma fiel a área dos continentes, mas deforma seus formatos: com isso, o continente Africano aparece muito maior do que o Europeu. Peters chamou sua projeção de: “mapa para um mundo mais solidário”. Mas muitos cartógrafos da época ficaram revoltados. Houve críticas ao ativismo político de Peters, tentando utilizar o argumento da necessidade de uma cartografia objetiva, científica e apolítica.
Esse argumento não colou e, a partir dos anos 1980, a disciplina da cartografia crítica cresceu bastante e passou a influenciar os mapas que são feitos hoje. Além disso, o avanço das tecnologias, lembram Crampton e Krygier, tirou a produção de mapas das mãos das elites, apenas – como grandes oficinas de mapas do ocidente e acadêmicos. Hoje, qualquer pessoa com um computador e internet consegue produzir um mapa, mesmo em 3D. Assim, ao mesmo tempo que grandes corporações como o Google dominam o universo dos mapas, há espaço para produção de mapas artísticos, críticos e que repensem completamente as formas que tentamos representar o mundo.
Mapa do Mundo em 1689
Por fim, acho que é importante lembrar que quando você abrir, por exemplo, um mapa de uma cidade qualquer, aquele mapa foi feito com uma visão muito específica, para te direcionar como turista. Diferentes pessoas que habitam aquela cidade – de um morador de rua a um executivo – fariam para você um mapa diferente da cidade deles.
Talvez, ver mapas como suvenires de viagem ou peças de arte em museus e menos como uma realidade fixa, afinal, faça bastante sentido. Seja o Ártico no atlas da National Geographic ou a forma que o planeta enxerga a África, é bom lembrar que o mundo muda muito mais rápido que o traçado de linhas num papel.
*Imagem Destacada: Galeria dos Mapas, Museu do Vaticano. Crédito: Shutterstock
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Que texto sensacional.
Obrigada Zico
Quando criança adorava pintar mapas, saber as cidades, os países e suas capitais. Cheguei a ter vários atlas. Gostei muito da matéria. Parabéns!
Obrigada por comentar =)
Muito bom o artigo, amei, obrigado.
Obrigada por comentar Daniele
Excelente Artigo!!! Deu até inveja do que voce faz.... No bom sentido claro,....rsrsrs
Parabéns pelo artigo. É excelente!!!!
Obrigada!
Oi Luiza,
E a sala dos globos no Museu Galileu em Florença? É o meu favorito!
Não conheci ainda! Vou anotar no caderninho