A luta dos mapuches, o povo que a Espanha nunca conquistou

“Adiante, mapuches, vamos tomar Madrid”. A frase audaciosa é atribuída Lautaro, líder e estrategista militar de um povo que há séculos vive no que hoje são a região centro-sul do Chile e o sudoeste da Argentina. Quando os espanhóis desembarcaram nas Américas, cerca de 800 mil mapuches moravam naquela área.

Se eles nunca chegaram a ameaçar a capital espanhola, conseguiram um feito também impressionante: enquanto incas, astecas e outros povos pré-colombianos caíram perante os conquistadores espanhóis, os mapuches jamais foram derrotados. E olha que o conflito foi longo. A Guerra do Arauco durou cerca de 300 anos e levou a dezenas de milhares de mortes, diminuindo fortemente as populações dos dois lados do confronto. Os mapuches chegaram a atacar Santiago algumas vezes e acabaram obrigando a Coroa Espanhola a ceder.

Em 1641 foi assinado o Tratado de Quilín, em que a Espanha reconhecia a autonomia do território mapuche, garantia liberdade ao povo e até se comprometia a destruir fortes espanhóis que tinham sido erguidos dentro de território mapuche. Em troca, os espanhóis conseguiram a promessa de que os mapuches não se aliariam a outras potências europeias e que ambos lutariam lado a lado em caso de guerra.

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Mas a Guerra foi outra, a da Independência. E com o fim do poder espanhol na América Latina os mapuches foram novamente atacados. Argentina e Chile, nações que surgiram das antigas colônias da Espanha, não quiseram saber do tratado que dava liberdade e garantia as fronteiras do território mapuche. Foram mais algumas décadas de conflitos. Em nome da identidade nacional, os governos republicanos conseguiram tomar grande parte do território mapuche e confinar o povo nas chamadas reduções – aldeias indígenas gerenciadas por jesuítas.

Os mapuches nunca aceitaram a medida e não foram raros os casos de ataques contra os religiosos. Nesta época, a população mapuche estava reduzida a 1/10 da original, com apenas 80 mil pessoas. A perda territorial foi ainda maior, e os mapuches entraram no século 20 com apenas 5% das terras que tinham 100 anos antes.

Impedidos de terem os meios para garantir a própria subsistência, migraram para as grandes cidades, onde acabaram marginalizados. Muitas das terras dos mapuches foram repassadas pelo governo para colonos europeus, principalmente alemães, italianos e espanhóis, num gigantesco e não velado processo de limpeza étnica, enquanto grandes porções delas acabaram nas mãos de empresas. O plano para conquistar as terras mapuches teve um banho de marketing e foi chamado de pacificação de La Araucanía, a região que era habitava por esse povo.

“Nossa cultura passou pela conquista, pela pacificação de La Araucanía, que na verdade não foi uma pacificação, mas a eliminação do nosso povo. Fomos forçados a nos transformar no que somos atualmente”, conta Luis Araneda, que é lonko – o líder espiritual – de Benancio Huenchupan  uma comunidade Mapuche com cerca de 120 membros, no centro-sul do Chile.

Comunidade Mapuche no centro-sul do Chile

As 32 famílias vivem do que plantam e produzem, embora uma parte da produção seja vendida nas cidades ao redor, algo necessário para arcar com custos externos, como luz elétrica. Entre uma e outra garfada no almoço oferecido para nosso grupo (sopa de frango, pães artesanais e café também de produção própria), Luís explicou:

“Já se perdeu muito, hoje não temos autenticidade como mapuches, até nossa língua se fala pouco. Houve uma perda de muita cultura, de idioma, de conhecimento, de práticas ancestrais, de cerimônias, de rituais que eram feitos em comunidade”.

Em 2002, o Censo chileno identificou 600 mil pessoas que se definiram como mapuches, cerca de 5% da população atual do país. Só a região metropolitana de Santiago serve de casa para cerca de 200 mil, enquanto mais 200 mil estão na área de La Araucanía, onde 25% da população é mapuche – esse é um dos maiores grupos étnicos do Chile.  Outros 300 mil vivem na Argentina.

Luis, o lonko da comunidade

A ditadura de Pinochet piorou a situação dos mapuches e mesmo os governos democráticos que vieram depois pouco fizerem pela luta deles, que ainda hoje exigem suas terras. Foi só em 2017 que Michelle Bachelet, que ocupava a Presidência do Chile, pediu perdão aos mapuches pelos “erros e horrores cometidos pelo Estado”.

“A palavra mapuche quer dizer toda a gente que vive na terra. Antes, no mundo, não havia bandeiras, não havia fronteiras. Mapu é a terra, o espaço onde vivemos. Che é a pessoa, o povo”.

A frase é de Luis, que foi apontado como lonko em 2011, numa comunidade que tenta se reestruturar após décadas de afastamento das raízes. Além da consequente marginalização, a perda das terras alterou a cultura e as práticas religiosas dos mapuches – para eles, a terra é mais do que uma propriedade, mas parte da forma como enxergam e se colocam no mundo, o eixo da vida em comunidade. Daí a continua luta para que possam retomar a vida nos locais que seus antepassados habitaram, mesmo tanto tempo depois.

Se a luta dos mapuches segue viva, o clima entre eles e latifundiários e madeireiros fica cada vez mais tenso. Não foram raras as vezes em que protestos terminaram com atos violentos e há casos recentes de líderes mapuches que foram presos com base numa lei contra o terrorismo que foi criada durante o governo de Pinochet.

A maioria das comunidades tenta reaver suas terras por meio do diálogo, mas há pelo menos um caso de um grupo mais radical, a Resistencia Ancestral Mapuche, que promove ataques armados, principalmente na Argentina, mas que atua também no Chile, e cujos membros não se identificam como argentinos e nem chilenos. Eles lutam pela criação de uma nação Mapuche. Aos que discordam da luta, eles costumam mostrar mapas antigos da América do Sul que exibem o território que até a Espanha teve que declarar livre.

Foto destacada: Por RPBaiao, www.shutterstock.com

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Rafael Sette Câmara

Sou de Belo Horizonte e cursei Comunicação Social na UFMG. Jornalista, trabalhei em alguns dos principais veículos de comunicação do Brasil, como TV Globo e Editora Abril. Sou cofundador do site 360meridianos e aqui escrevo sobre viagem e turismo desde 2011. Pelo 360, organizei o projeto Origens BR, uma expedição por sítios arqueológicos brasileiros e que virou uma série de reportagens, vídeos no YouTube e também no Travel Box Brazil, canal de TV por assinatura. Dentro do projeto Grandes Viajantes, editei obras raras de literatura de viagem, incluindo livros de Machado de Assis, Mário de Andrade e Júlia Lopes de Almeida. Na literatura, você me encontra nas coletâneas "Micros, Uai" e "Micros-Beagá", da Editora Pangeia; "Crônicas da Quarentena", do Clube de Autores; e "Encontros", livro de crônicas do 360meridianos. Em 2023, publiquei meu primeiro romance, a obra "Dos que vão morrer, aos mortos", da Editora Urutau. Além do 360, também sou cofundador do Onde Comer e Beber, focado em gastronomia, e do Movimento BH a Pé, projeto cultural que organiza caminhadas literárias e lúdicas por Belo Horizonte.

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